Marx e Engels jornalistas
Tanto os biógráfos, como os estudiosos do pensamento socialista costumam dar ênfase à contribuição filosófica e política de Marx (1818-1883) e de Engels (1820-1895), esquecendo-se, praticamente, do trabalho de ambos no campo jornal[istico. Embora esta atividade esteja relegada a um segundo plano no balanço da contribuição que Marx e Engels deram à evolução do pensamento político dos séculos XIX e XX, suas incursões no jornalismo também mereceram destaque especial nas comemorações do centenário da morte de Engels, promovidas em vários países no último mês de novembro.
Enquanto Engels se destacou no jornalismo, produzindo análises didáticas do cotidiano da atividade politica na Europa, Marx passou por todos os estágios de uma redação de jornal. Em 1842, com apenas 24 anos, Marx inicia suas atividades no jornalismo, vindo a ocupar o cargo de editor-chefe da Gazeta Renana, um dos principais diários da cidade de Colônia, mantido pela burguesia liberal. Ali não se contenta apenas com os trabalhos da redação. Sai a campo e produz desde reportagens, entre as quais se destaca a série de matérias retratando a situação dos vinhateiros do Vale do rio Mosela, a cobertura do debate sobre a lei que reprime o roubo de lenha na Alemanha, até artigos de fundo sobre a liberdade de imprensa e sobre as atividades da Dieta Renana.
Biógrafos de Marx destacam que durante suas atividades na Gazeta Renana o jovem filósofo se inteira das primeiras manifestações socialistas e comunistas, que já ecoavam na França. Segundo Maximilien Rubel, foi através dos artigos de Moses Hess e de G. Mevissen, publicados na Gazeta Renana, que Marx se familiariza com o pensamento socialista de Saint-Simon, de Fourier e de Proudhon.
Jovem, solteiro e dono de um texto ousado, Marx dá vida e combatividade ao jornal que se torna um dos mais polêmicos da Alemanha. No início de 1843, ao retomar seus ataques contra a censura prussiana, Marx é notificado de que, por decisão governamental, a Gazeta Renana será interditada a partir de primeiro de abril. O pretexto legal para a proibição de circulação do diário parte de uma solicitação do czar da Rússia, que se aborrece com um violento artigo do jornal contra o absolutismo. A Gazeta Renana deixa de ser publicada a partir de 31 de março de 1843.
Dessa sua primeira incursão a fundo no jornalismo, interrompida de forma abrupta em fins de março de 1843, quando Marx deixa a Alemanha e parte para a Holanda, onde vivem seus avós maternos, ficará uma marca indelével: a valorização da liberdade de imprensa e o gosto pela redação que o acompanhará por toda a sua vida. Segundo Jacob Gorender, no prefácio à obra O Capital, lançada no Brasil pela Editora Abril, "A experiência jornalística foi muito útil para Marx, pois o aproximou da realidade cotidiana. Ganhou conhecimento de questões econômicas geradoras de conflitos sociais e se viu diante do imperativo de pronunciar-se acerca das idéias socialistas de vários matizes, que vinham da França e se difundiam na Alemanha … ".
Ainda em 1843, Marx casa-se com Jenny von Westphalen e passa a colaborar em diversos jornais europeus como articulista político. Em 1844, intensifica-se a amizade com Engels, que surgira durante seu trabalho na Gazeta Renana , e ambos passam a produzir, sistematicamente, artigos para várias publicações de tendência socialista.
Uma segunda fase de contribuição substantiva para o jornalismo será intensificada com o lançamento da Nova Gazeta Renana, por Marx e Engels, em 1848. O jornal tinha por objetivo a defesa da perspectiva proletária socialista no decurso das revoluções democrático-burguesas daquele ano, em toda a Europa continental. Engels era redator ativo do jornal e só deixou a redação para lutar ao lado dos insurrectos na Alemanha. Após a derrota da insurreição, a Nova Gazeta é fechada, em maio de 1849, e Marx tem 24 horas para deixar o país, partindo para o exílio, em Paris, onde reside por alguns meses. Engels, por sua vez, se refugia na Suíça. O reencontro de ambos dar-se-á na Inglaterra, no final daquele mesmo ano. Em Londres, eles voltarão a praticar o jornalismo.
O trabalho de Marx para o NYH não será tranqüilo. O NYH utiliza seus artigos como editoriais
Em 1851, atendendo pedido de Charles Dana, redator do New York Herald, Marx assume o cargo de correspondente do jornal em Londres. Essa atividade jornalística se estenderá por onze anos e será a única que lhe garantirá uma remuneração profissional durante toda a sua vida atribulada por dívidas, quase sempre resgatadas mediante contribuições de amigos e familiares e em especial de Engels. No início de seu trabalho como correspondente do New York Herald (NYH), Marx tem problemas com o inglês, língua que ainda não dominava com fluência e quem acaba escrevendo uma série inicial de 19 artigos sobre A Revolução e a Contra Revolução na Alemanha, assinada por ele no diário novayorquino, é seu amigo Engels. Dominando melhor o inglês, a correspondência jornalística de Marx ganhará consistência e ele passa a enviar regularmente artigos e comentários para o jornal até meados da Guerra de Secessão americana, vindo a perder este seu único emprego em 1862. Mas esta não será sua atividade exclusiva nesses anos todos. Simultaneamente com as suas tarefas de jornalista, Marx se dedica a dezenas de outras atividades, redigindo uma parte substantiva de suas reflexões políticas e filosóficas e contribuindo com centenas de artigos para jornais europeus e britânicos, sobretudo aqueles editados pelo emergente movimento do proletariado.
Seu trabalho para o NYH não será tranquilo, entretanto Edwin Emery, em sua vasta história da imprensa nos Estados Unidos, destaca que o Herald foi o único jornal nortista a defender os direitos constitucionais do Sul. Na véspera da Secessão, ele tirava cerca de 130 mil exemplares, sendo um dos maiores dos EUA, então. Segundo o mesmo autor, "O Herald era o jornal americano de maior popularidade na Inglaterra, por terem os ingleses mais simpatia pelos sulistas, com os quais mantinham estreitas relações na qualidade de industriais têxteis e de produtores de algodão, respectivamente".
Em sua correspondência com Engels, Marx se desabafa dizendo que o jornal utiliza seus melhores artigos como editoriais, publicando com a sua assinatura apenas as matérias mais medíocres. Seus despachos sobre o movimento pan-eslavista também sofrem problemas dentro da redação do Herald. Um jornalista polonês, A. Gourovsky, pan-eslavista notório, censura parte de sua correspondência que chega ao jornal, causando-lhe grandes dissabores.
Desgostoso com os rumos que o seu trabalho jornalístico acaba tendo e sofrendo restrições por parte da redação do jornal, que faz objeções às suas análises sobre a Guerra de Secessão americana, Marx reduz o seu trabalho como correspondente, a partir de 1861. No ano seguinte, seu contrato com o jornal acaba sendo cancelado e ele perde sua única fonte regular de renda Em carta a seu amigo Kugelman, o filósofo e jornalista queixa-se da grande falta que lhe faz os proventos que recebia como correspondente.
A partir dos anos 60, até a sua morte, tanto Marx como Engels contribuirão com mais ênfase para o fortalecimento da imprensa operária européia, uma vez que a imprensa liberal burguesa vai restringindo, cada vez mais, o espaço aberto a ambos. Este cerceamento chega ao auge após o massacre da Comuna de Paris, em 1871, marco divisor em toda a Europa dos reais interesses de classe e da reação sanguinária da burguesia contra o proletariado.
Embora suas preocupações financeiras diminuam, depois dos anos 70, com o ingresso de recursos advindos da herança familiar e de contribuições de amigos, Marx irá diminuindo paulatinamente a sua produção jornalística para se dedicar inteiramente às tarefas de revisão e reelaboração de sua obra máxima, O Capital, cujo primeiro volume é editado em 1867. O segundo e o terceiro volumes só são editados após a sua morte, ocorrida em 1883, graças ao trabalho de ordenamento feito por Engels.
Sobre este período da vida de ambos, escreve Maximilien Rubel: "O amigo, a quem Marx e sua família devem a tranquilidade de seus últimos anos, multiplicará os gestos de afeição e camaradagem. Em numerosos escritos, ele se tornará o defensor da teoria de Marx, ao mesmo tempo que o propagador obstinado de suas idéias políticas comuns".
Engels vem a falecer doze anos após Marx, em 1895. Ele prossegue ao longo de seus últimos anos dando a sua contribuição para o fortalecimento de uma imprensa socialista e proletária, procurando disseminar o pensamento marxista junto aos trabalhadores e suas lideranças políticas.
JAIR BORIN é jornalista, professor-associado da Escola de Comunicações e Artes da USP, e AFRANIO CATANI, professor doutor da Faculdade de Educação da USP.
EMERY, Edwin. História da imprensa nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
GORENDER, Jacob. Apresentação a O capital. São Paulo, Editora Abril, tomo I, 1983.
McLELLAN, David. Karl Marx: vida e pensamento. Petrópolis, Vozes, 1990.
RUBEL, Maximilien. Crônica de Marx. São Paulo, Ensaio, 1991.
EDIÇÃO 41, MAI/JUN/JUL, 1996, PÁGINAS 13, 14