Novos marcos institucionais para a formulação de política industrial no Brasil
O termo "crise do Estado" definitivamente entrou para a agenda política. A essa expressão associamos as dúvidas e incertezas quanto ao futuro dessa forma de organização social caracterizada por um organismo político-administrativo que, como nação soberana ou divisão territorial, ocupa um território determinado, é dirigido por governo próprio e se constitui em pessoa jurídica de direito público, internacionalmente reconhecida Também expressa as tensões, conflitos e dificuldades para que essa forma de organização social possa operar como vinha fazendo até então, levando à ruptura dos padrões tradicionais de funcionamento e perturbando assim o status quo de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade.
Para a falta de independência e o relativo enfraquecimento dessas unidades nacionais tem contribuído o surgimento de novas forças, criadas pelas descobertas tecnológicas do século XX, que têm o poder de moldar a economia mundial independentemente da vontade deste ou daquele governo.
O recente encerramento (em 15 de dezembro de 1993) da Rodada Uruguai do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) que culminou com a formação da Organização Mundial de Comércio/OMC foi um passo definitivo nessa direção. Não menos importantes são as reformas institucionais que vêm ocorrendo no País visando adaptá-lo a essas novas demandas.
O que nos propomos neste trabalho é examinar alguns aspectos dessa "nova institucionalidade" e em que medida ela condiciona as possibilidades de se fazer política em nível nacional visando ao desenvolvimento do país dentro de uma lógica que não seja puramente a lógica do "mercado globalizado", mas que leve em conta outros aspectos, tais como redução das desigualdades sociais e regionais, melhor distribuição dos frutos do progresso econômico, criação de' emprego, acesso da indústria nacional a segmentos mais modernos e dinâmicos do mercado internacional através da construção de novas vantagens competitivas com apoio do Estado.
Para tanto, centraremos nossa análise na forma como a conclusão da Rodada Uruguai do GATT e a criação da OMC (Organização Mundial de Comércio) afetam a capacidade do Estado brasileiro de fazer políticas autônomas de desenvolvimento, em particular as chamadas "políticas industriais".
Desde logo, deixamos claro que, diferentemente de outras políticas públicas, de corte eminentemente horizontal, quando se fala de "política industrial" (e não de "políticas de industrialização"), temos em mente políticas de corte eminentemente setorial e voltadas para o desenvolvimento específico de um determinado segmento industrial que, por qualquer critério, tenha sido escolhido pelo Estado como merecedor de atenção especial. Essas políticas, em última instância, se traduzirão em algum tipo de vantagem no processo de concorrência intercapitalista no qual tal segmento industrial esteja inserido.
Tais critérios podem estar relacionados com a capacidade de uma dada indústria gerar empregos, ou seu potencial de geração ou economia de divisas, ou a possibilidade de melhorar as relações de troca internacionais daquela economia através da transição para segmentos industriais tecnologicamente mais dinâmicos e avançados e com maior potencial de penetração nos mercados internacionais.
Independentemente dos motivos, a questão relevante que aqui é objeto de análise é a capacidade atual do Brasil, dada essanova institucionalidade internacional, de fazer de forma autônoma políticas que levem à alteração das vantagens competitivas de sua economia como um todo no processo de concorrência intercapitalista.De acordo com a exposição de motivos do Presidente da República, ao submeter ao Congresso Nacional os textos dos acordos para aprovação, os resultados finais teriam sido altamente positivos para o Brasil:
"A conclusão exitosa da Rodada Uruguai representa. antes de mais nada, garantia de preservação e fortalecimento do sistema multilateral de comércio, ao afastar o risco de fragmentação das trocas internacionais em blocos estanques. Seu alcance trará novo e necessário impulso à atividade econômica internacional, ao possibilitar, pelo aumento das trocas e pelo estímulo aos investimentos, a retomada do crescimento, com melhoria dos níveis de emprego" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 2)
Dentre os principais avanços da Rodada Uruguai em termos de liberalização de comércio, a mensagem destaca que haverá maior acessoa mercados na medida que "deverá ocorrer redução tarifária média global de 40%, TUJS seis anos subseqüentes à entrada em vigor dos resultados da negociação" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 2) e destaca como fatos positivos a reincorporação do comércio de produtos agrícolas às regras gerais do GATT, o desmantelamento gradual, para o comércio de têxteis, das barreiras não tarifárias adotadas sob a égide do Acordo Multifibras (AMF) e a regulamentação das chamadas novas áreas, ou seja, serviços, propriedade intelectual e investimentos. Ainda segundo a mensagem do presidente, a criação da OMC diminui "a capacidade de arbítrio das grandes potências comerciais na aplicação unilateral e indiscriminada de medidas de proteção aos setores ineficientes de suas economias" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 2).
Em seguida, a mensagem do presidente arrola os ganhos mais concretos auferidos pelo Brasil, em que destaca:
I – "a média ponderada das tarifas aplicadas sobre os produtos brasileiros terá queda de 36% na União Européia, cerca de 24% nos EUA e 57% no Japão ( … ) Alguns importantes produtos de nossa pauta de exportações tiveram suas tarifas reduzidas a zero, ressaltando-se polpa, papel, madeira, cerveja e não ferrosos" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 3). a documento ainda destaca que "para obter esses resultados, não teve o Brasil de fazer concessões adicionais ao processo de abertura comercial iniciado unilateralmente em 1987" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 3). A oferta brasileira de consolidação de toda a pauta tarifária foi de um teto máximo geral de 35%, e particular de 55% para alguns produtos agrícolas mais sensíveis.
II – No que se refere à agricultura a mensagem destaca que o acordo agrícola "congela e inicia a reversão da tendência ascendente de políticas protecionistas, que se traduziam em pesados esquemas de subsidiação à produção e à exportação, bem como em contigenciamento ou proibição de importações" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 3).
III – Quanto aos têxteis, o texto destaca que "o acordo sobre têxteis e vestuários prevê o desmantelamento do contingenciamento às exportações têxteis, efetuado ao amparo do Acordo Multifibras, em período de 10 anos" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 3), sendo que após esse período o comércio têxtil estará totalmente reintegrado às regras gerais do GATT.
IV – Quanto ao acordo sobre serviços, a mensagem presidencial destaca que estes, embora já em 1992 participassem com mais de 57% para a formação do PIE brasileiro, representavam apenas cerca de 10% do valor de nossas exportações, e que "a liberalização dos mercados mundiais deve ser vista pelo prisma do aporte que trará para o crescimento das nossas exportações de serviços, à medida que se desenvolva o país" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 4). Destaca ainda que a lista de compromissos iniciais assumidos pelo Brasil nessa questão contém um número limitado de setores, restringindo-se à oferta de manter a situação atual, que se refere basicamente à instalação de prestadoras de serviços em território nacional.
V – Quanto ao acordo sobre propriedade intelectual, a mensagem se limita a afirmar que o mesmo atende aos interesses do Brasil na medida em que estabelece normas multilateralmente acordadas e limita a capacidade individual de arbítrio por parte dos signatários.
Finalmente, quanto aos aspectos institucionais, a mensagem afirma que "um dos ganhos mais relevantes para o Brasil na Rodada Uruguai refere-se ao fortalecimento das regras multilaterais de comércio" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 4) e que os novos códigos anti-dumping e o novo acordo sobre salvaguardas passaram a ter regras mais claras e firmes. a presidente conclui sua mensagem afirmando estar convencido "de que a aprovação do presente conjunto de acordos constitui relevante contribuição brasileira para o fortalecimento do sistema multilateral de comércio" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 5).
A considerar, portanto, a visão oficial'do governo brasileiro, a assinatura desse conjunto de acordos foi um fato positivo para o Brasil.
Entretanto, uma leitura mais atenta dos acordos mostra um outro lado, ausente na avaliação oficial e que tem tudo a ver com nossa hipótese inicial: a de que "a nova institucionalidade" que se forma limita de forma drástica a possibilidade de países como o Brasil executarem políticas autônomas de desenvolvimento industrial e econômico.
Em primeiro lugar, pode-se ler no mesmo documento acima citado (Câmara dos Deputados, 1994, p. 6), no item 3 do despacho do então ministro das Relações Exteriores Celso Amorim ao então Presidente, Itamar Franco, a seguinte afirmação: "Submeto a Vossa Excelência projeto de Mensagem ao Congresso Nacional, no qual se ressalta que, conforme consagrado na referida Ata Final, os pertinentes são de vinculação geral e obrigatória, ou seja, as partes que a compõem não podem ser consideradas isoladamente, mas, estritamente, em seu conjunto".
Portanto, só poderão ser sócios da Organização Mundial de Comércio-OMC os países que aceitarem os acordos da Rodada Uruguai como um conjunto não dissociáve1. Essa "inovação" em relação aos acordos anteriores é altamente restritiva. As opções são aceitar todos os acordos assinados ou ficar fora da OMC.
Quanto à questão da liberalização comercial, não há dúvidas, conforme destacado no documento, de que pelos menos do ponto de vista dos produtos industriais alcançou-se algum. sucesso. Conforme destaca a mensagem presidencial, OS países reduziram suas tarifas em cerca de 40% de média ponderada As tarifas foram reduzidas em um universo de comércio de 464 bilhões de dólares de importações dos países desenvolvidos, enquanto apenas 148 bilhões não foram objeto de rebaixas. No total de posições tarifárias as categorias isentas passaram de 20% para 43%.
Em particular quanto às importações de países em desenvolvimento, a cifra passou de 22% para 45%. E preciso considerar, no entanto, que as tarifas, principalmente nos países desenvolvidos, têm cada vez menos importância como instrumento de controle de acesso aos mercados. (DIAS, Vivianne Ventura. 1996. p. 67).
No comércio de produtos agrícolas, os avanços não foram tão significativos. No acordo inicial apresentado por Arthur Dunkel no projeto de Ata Final em dezembro de 1991 previa-se o "princípio de tarifação total das medidas de proteção e apoio", cujo objetivo era garantir maior transparência dos subsídios e a redução gradual das tarifas num período de seis anos. A idéia era começar com um corte de 36% da média tarifária e um mínimo de 15% para cada posição tarifária, baseados na situação de setembro de 1986. Previa-se também uma "caixa verde", isto é, uma lista de produtos sobre os quais seria possível estabelecer proteção tarifária e subsídios, sujeitos porém a certo grau de acionabilidade por parte dos que se julgassem prejudicados à luz das regras gerais do GATT. O acordo formal, entretanto, ficou muito aquém do previsto inicialmente. Manteve-se o princípio da taxação geral mas a base da redução tarifária não foi mais a de 1986. Num primeiro momento o acordo foi alterado no sentido de permitir agregar o apoio interno aos produtos agrícolas no período 1986/89, e na reta final do acordo Estados Unidos e CEE entenderam-se sobre novos ajustes restritivos e o ponto de partida para as reduções de subsídios incorporou também os subsídios de 1990/91. Sobre o valor assim definido, previu-se uma redução tarifária de 20%, em parcelas iguais, ao longo de seis anos. As reduções foram flexibilizadas, não mais incidindo sobre cada posição tarifária. Inviabilizou-se dessa forma o recurso às políticas da "caixa verde" à luz das regras do GATT. Os resultados foram portanto, bem mais modestos do que esperavam os países em desenvolvimento no que tange ao acesso aos mercados agrícolas europeu e americano. Por outro lado, a garantia de acesso mínimo de 3% a 5% do consumo interno para exportações de terceiros países durante os seis primeiros anos do acordo não traz nenhum benefício adicional para o Brasil em relação a CEE e EUA, nossos principais mercados de exportação de produtos do complexo agro-industria1.
O mesmo se pode dizer em relação ao "Acordo sobre Têxteis e Vestuário". Um prazo de dez anos para que as restrições não-tarifárias previstas no Acordo Multifibras (AMF) deixem de vigorar não é o que se podem chamar de grande conquista para o livre comércio, principalmente se levarmos em conta que os maiores exportadores de produtos têxteis e confecções são exatamente os países em desenvolvimento. Além disso, ao longo desses dez anos, os países membros poderão adotar medidas de salvaguarda ao amparo do referido acordo sempre que sua produção nacional estiver ameaçada (Parágrafo 2 do artigo 6 do "Acordo sobre Têxteis e Vestuários" – Câmara dos Deputados 1994 p. 83). Estranho que tais medidas de salvaguarda se apliquem em relação à exportação de um conjunto de produtos em que os países em desenvolvimento são mais competitivos, quando, em relação ao inverso, as exigências são de abertura total…
Outro acordo que merece reparos é o Acordo sobre Medidas de Investimento relacionadas ao Comércio. O parágrafo 2° do Artigo II do acordo afirma:
"Uma lista de TRIMS (Trade Related Investiment Measures) incompatíveis com a obrigação de tratamento nacional (1) prevista no parágrafo 4 do artIgo III do GATT 1994 e com a obrigação de eliminação geral de restrições quantitativas prevista no parágrafo 1 do Artigo XI do GATT 1994 se encontra anexo ao presente acordo" (Câmara dos Deputados, 1994, p.123).
Quando se vai ao referido Anexo, à página 126 do documento, lê-se o seguinte:
"As TRIMs incompatíveis com a obrigação de tratamento nacional prevista no parágrafo 4 do Artigo III do GATT 1994 incluem as mandatórias ou aquelas aplicáveis sob a lei nacional ou decisões administrativas, ou cujo cumprimento é necessário para se obter uma vantagem, e que determinam : a) que uma empresa adquira ou utilize produtos de origem nacional ou de qualquer fonte nacional, especificada em termos de produtos individuais, em termos de volume ou valor de produtos ou em termos de uma proporção de volume ou valor de sua produção local; b) que a aquisição ou utilização de produtos importados por uma empresa limite-se ao montante relacionado ao volume de produção local" (Câmara dos Deputados, 19M. p. 126).
Sabe-se tais tipos de medidas foram largamente utilizadas pelos países em desenvolvimento de industrialização recente como Brasil e Coréia do Sul, tanto como forma de estimular o desenvolvimento da sua indústria nacional como obrigar empresas multinacionais a transferir parte substantiva de seu processo de produção para o país onde estivessem instaladas com o objetivo de gerar divisas e transferir tecnologia.
Outra questão sobre a qual a mensagem do presidente nada diz é quanto ao acordo de subsídios e medidas compensatórias. Pelo referido acordo os subsídios foram divididos em três tipos: Subsídios proibidos, subsídios recorríveis, e portanto possíveis de ações compensatórias, e subsídios irrecorríveis ou permitidos (parte IV do acordo).
"Com exceção do disposto no Acordo sobre Agricultura, serão proibidos os seguintes subsídios, conforme definidos no Artigo I;
(a) subsídios vinculados, de fato ou de direito, quer individualmente, quer como parte de um conjunto de condições, ao desempenho exportador, incluindo-se aqueles indicados a título de exemplo 110 Anexo I;
(b) subsídios vinculados, de fato ou de direito, quer individualmente, quer como parte de um conjunto de condições, ao uso preferencial de produtos nacionais em detrimento de produtos estrangeiros" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 212).
O parágrafo 2 do artigo 3 do Acordo é fático: "O Membro deste Acordo não concederá ou manterá os subsídios mencionados no parágrafo 1°" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 212. O Anexo I do Acordo traz uma Lista I1ustrativa de Subsídios à Exportação que ficam banidos irrevogavelmente. Ver Câmara dos Deputados, 1994, p. 243-246).
Quanto à segunda categoria – os subsídios recorríveis-, incluem-se quaisquer medidas de governo não especificadas na primeira categoria que impliquem transferência diretas de fundos, potenciais transferências direta de fundos, quando receitas públicas devidas são perdoadas ou deixam de ser recolhidas ou quando o governo forneça bens ou serviços além daqueles destinados à infra-estrutura geral, diretamente ou instruindo órgão privado a realizar uma ou mais das funções acima descritas. Quando quaisquer das medidas acima produza efeitos danosos aos interesses de outros membros, isto é:
"(a) dano à indústria nacional de outro membro; (b) anulação ou prejuízo de vantagens resultantes, para outros membros, direta ou indiretamente, do GATT 1994 ( … );
(c) grave dano aos interesses de outro Membro". (Câmara dos Deputados, 1994,p.214), e o "Membro não tomar as medidas adequadas para remover os efeitos danosos ou eliminar o subsidio no prazo de 6 meses a contar da data que o OSC (Organismo de Solução de Controvérsias) adotar o relatório do grupo especial ou do Órgão de Apelação, e na eventualidade de ausência de acordo sobre compensação, o OSC autorizará o Membro reclamante a tomar contramedidas, proporcionais ao grau e à natureza dos efeitos danosos que se tenham verificado, a menos que o OSC decida por consenso rejeitar o pedido" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 218).
Quanto à terceira categoria – os subsídios irrecorríveis- isto é, aqueles permitidos pelos novos acordos, o parágrafo 2 do Artigo 8 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias considera que "os seguintes subsídios serão considerados irrecorríveis:
(a) assistência para atividades de pesquisa realizadas por empresas ou estabelecimentos de pesquisa ou de educação superior vinculados por relação contratual, se a assistência cobre até o máximo de 75% dos custos de pesquisa industrial ou de 50% dos custos das atividades pré-competitivas de desenvolvimento ( … )
(b) assistência a uma região economicamente desfavorecida dentro do território de um Membro ( … )
(c) assistência para promover a adaptação de instalações existentes a novas exigências ambientalistas ( … )
Com exceção, portanto, das medidas previstas na terceira categoria, as demais formas de subsídios à produção local ou são totalmente vedadas ou passíveis de medidas compensatórias pelo membro que se julgue afetado. O escopo para utilização de subsídios como instrumento de "política industrial", nos marcos do novo Acordo, fica extremamente reduzido. Isso está claramente relacionado com as baixas taxas de crescimento da economia mundial e a feroz disputa entre os grandes oligopólios por mercados cativos em áreas tecnologicamente mais avançadas, e que nos marcos da regulação acima estabelecida permanecerão ad eternum nas mãos dos países desenvolvidos.
Um fato que reforça a opinião acima a forma pouco clara com que o Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do GAIT 1994 trata da questão da solução das controvérsias (Artigo 17 do Acordo) quando da aplicação de uma medida anti-dumping2 por um determinado país em relação a empresas ou setores econômicos de outro membro.
Mais do que o direito compensatório, arma dissuasória contra os subsídios, e até mesmo mais do que as próprias tarifas, taxas anti-dumping vêm se transformando, atualmente, no principal instrumento de defesa do mercado contra a penetração estrangeira. Tanto o Brasil como outros países em desenvolvimento têm sido vítimas da aplicação indiscriminada desse instrumento, tanto na Europa como nos Estados Unidos, como forma de obrigar nossos exportadores, nas áreas em que são mais competitivos, a chegar a "acordos voluntários'de restrições de exportações" (VERs). Trata-se de uma maneira "espúria" de forçar um acordo, considerando que o prejuízo em termos de vendas perdidas e os gastos envolvidos na solução da controvérsia muitas vezes não justificam levar a causa até o fim.
Esperava-se da Rodada Uruguai que o avanço pretendido na multilateralização das relações comerciais estabelecesse regras mais rígidas no sentido de impedir o uso espúrio desse instrumento (como hoje) e principalmente de dotar o GAIT de poderes para rever uma taxa anti-dumping adotada unilateralmente por um país-membro. Os negociadores americanos, visando preservar o espaço de atuação de sua própria Lei de Comércio, exigiram uma suavização dos controles sobre a utilização das medidas anti-dumping, alegando ser uma condição necessária para aprovação do pacote da Rodada Uruguai no Congresso dos Estados Unidos.
A "solução de compromisso" alcançada reflete-se no parágrafo 6 do Artigo 17 do respectivo Acordo. De acordo com o citado parágrafo:
"O grupo especial (da Organização de Solução de Controvérsias – OSC), ao examinar a matéria objeto do parágrafo 5 (que trata do estabelecimento, a pedido do reclamante atingido pela adoção de uma taxa anti-dumping de um grupo especial no âmbito da OMC para avaliar sua procedência ou não), (a) ao avaliar os elementos de fato da matéria, determinará se as autoridades terão estabelecido os fatos com propriedade e se sua avaliação dos mesmos foi imparcial e objetiva. Se tal ocorreu, mesmo que o grupo especial tenha eventualmente chegado a conclusão diversa, não se considerará invalidada a avaliação; (b) interpretará os dispositivos pertinentes do Acordo segundo regras consuetudinárias de interpretação do direito internacional público. Sempre que o grupo especial conclua que um dispositivo pertinente do Acordo admite mais de uma interpretação aceitável, declarará que as medidas das autoridades estão em conformidade com o Acordo, se as mesmas encontram respaldo em duas interpretações possíveis" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 146).
Conclusão: se o estabelecimento dos fatos foi apropriado e a avaliação objetiva e não distorcida, embora o "painel do GATT' possa ter chegado a outra conclusão, prevalecerá a solução nacional. Haja subjetividade.
Essas "novas barreiras à entrada" em áreas que são hoje objeto de duras disputas entre conglomerados econômicos, países e blocos de países na arena do comércio internacional não se revelam apenas na questão da nova regulação dos subsídios. Medidas de idêntico teor aparecem nos demais acordos anexos à Ata de Marraqueche. Vejamos, por exemplo, as disposições do novo regime sobre a propriedade intelectual.
A inclusão do tema da propriedade intelectual no GAIT foi um dos pontos mais controversos da Rodada Uruguai. Até a Rodada Tóquio, o esforço concentrava-se na redução das barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio internacional de mercadorias. A Rodada Uruguai foi um ponto de inflexão nesse processo, e toda a discussão voltou-se para os chamados "impedimentos estruturais" ao livre comércio [ver Tyson (1992) e Lawrence (1993)]. Na realidade, um eufemismo para falar das políticas industriais aplicadas pela maioria dos países com o objetivo de adquirir competitividade nos setores mais dinâmicos da economia mundial. Nesse contexto, tanto as medidas discutidas relativas a investimentos (TRIMs) e subsídios à produção de bens e serviços quanto a questão da propriedade intelectual ganharam grande relevância. Tal fato está relacionado com a emergência de um conjunto de novos paradigmas tecnológicos (a microeletrônica, a biotecnologia, os novos materiais) que asseguram às empresas inovadoras nessas áreas lucros de monopólio que rapidamente desaparecerão, caso haja uma rápida difusão desses novos conhecimentos.
Aumento do grau de monopólio sobre as invenções: patentes no GATT
Num cenário que aponta para um crescimento lento da economia mundial, a preocupação com apropriabilidade dos lucros gerados por estas inovações torna-se um problema central. Isso explica a transferência de um assunto que estava sob controle da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), órgão vinculado à ONU, para a esfera do GAIT, sob a "capa" do Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Como afirmou recentemente o ex-ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, "A OMC é muito mais do que uma organização de comércio. Vai tratar de tudo que diz respeito à globalização da economia" (Folha de S. Paulo, 20/01/1995). No caso particular do tema "propriedade intelectual", embora a Mensagem Presidencial afirme que o acordo "atende aos interesses do Brasil" (Câmara do Deputados, 1994, p. 4), não há como negar que, na verdade, ele foi desfavorável aos países em desenvolvimento. Limitou, como no caso das novas regras sobre subsídios e investimento direto estrangeiro, o número de instrumentos disponíveis para execução de política industrial. A avaliação dos efeitos do acordo sobre propriedade industrial não pode ser feita sem levar em conta simultaneamente o nível de capacitação das empresas domésticas e as características de apropriabilidade das referidas tecnologias, na medida em que elas funcionam como barreiras à entrada de países e empresas atrasados. Ele não tem o mesmo significado para o Brasil e para os EUA. O instituto da patente foi concebido como uma forma de estimular o inventor de um novo produto ou processo a torná-la público e colocá-lo à disposição da sociedade em troca do monopólio legal de sua exploração por um período limitado de tempo. Seu objetivo seria, portanto, o de facilitar a difusão das inovações.
O acordo sobre patentes celebrado no âmbito do GATT caminha no sentido inverso. Aumenta o grau de monopólio sobre as invenções e dificulta ainda mais o acesso de potenciais concorrentes a essas informações. Como pode alguém em sã consciência afirmar que isso é bom para o Brasil e os demais países em desenvolvimento? Por acaso estamos nós entre os líderes na produção de inovações tecnológicas, e, portanto, interessados em fechar o mercado para evitar a entrada de novos concorrentes? Exatamente o contrário! Para se ter uma idéia, basta considerar o seguinte: dos 3,5 milhões de patentes existentes no mundo nos anos 70, só cerca de 200 mil foram concedidas a residentes em países em vias de desenvolvimento. A imensa maioria delas, cerca de 84%, estava em mãos de estrangeiros, em particular das transnacionais dos cinco países mais ricos do mundo (ver Hobbelink, 1991, p. 2). Outro fato significativo: menos de 5% da patentes de propriedade de estrangeiros são utilizadas em processos produtivos nos países em desenvolvimento (verHobbelink, 199I,p.2).
É ilusório achar que com a aprovação do novo acordo os países desenvolvidos tenderão a investir mais nos países em desenvolvimento, trazendo para cá novas tecnologias, dado que o TRIPs aumenta o grau de apropriabilidade, e portanto a segurança dos investimentos por parte das empresas inovadoras. Durante anos o Brasil não reconheceu patentes de remédios, e nem por isso as multinacionais do setor deixaram de se instalar aqui. Aliás, vejamos o seguinte: segundo informações do ex-Diretor Superintendente da CODETEC, José Carlos Gerez, em 1990 o mercado total de medicamentos no Brasil era de US$ 3,7 bilhões de dólares. Desse total, somente 3%, algo na ordem de US$ 115 milhões, eram de produtos protegidos por patentes em seus países de origem. Desses 3%, ou US$ 115 bilhões, cerca de US$ 23 milhões estavam sendo copiados por empresas nacionais, ou seja, 0,6% do mercado nacional total de medicamentos (ver Gerez, 1992, p. 16). Se em outras áreas já cobertas pela legislação de marcas e patentes os prejuízos causados pela "pirataria" são muito maiores do que isso, por que tanto esforço das multinacionais de medicamentos para mudar a lei? O motivo não está no passado. Está no futuro! Está nos novos desenvolvimentos da engenharia genética, da microeletrônica, dos novos materiais, que, por antecipação, os países desenvolvidos e as grandes multinacionais tentam manter como reserva de mercado.
A grande novidade do acordo não foi sequer a extensão da patenteabilidade para remédios, alimentos e processos e produtos biológicos, embora tal fato seja da maior importância para as grandes multinacionais que atuam nesse setor. Tão relevante quanto isso é o fato de que o mesmo artigo 27 do
Acordo que estende a patenteabilidade a qualquer setor tecnológico estabelece que "as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto ao seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente" (Câmara dos Deputados, 1994, p. 302). Pelo novo acordo, portanto, fica estabelecido o que informalmente se chama "patente de importação". De acordo com a legislação patentária que vigorou até o momento no Brasil, uma das condições para a concessão de uma patente é a sua exploração efetiva em território nacional. Não era permitido ao proprietário de uma patente abastecer o mercado nacional apenas através de importação para usufruir do beneficio do monopólio no país. Isso era uma forma de forma de forçar a empresa interessada no mercado nacional a produzir localmente a mercadoria, e assim não só gerar empregos no país como capacitar os técnicos e a mão-de-obra nacional na produção daquele produto ou família de pro- . dutos. Nesse sentido, a lei de propriedade industrial funcionava como um instrumento coadjuvante de política industrial. A "patente de importação" ao eliminar essa obrigatoriedade, terá como conseqüência óbvia a concentração da produção de mercadorias que envolvam tecnologias mais sofisticadas nos países desenvolvidos, visando evidentemente aumentar o grau de apropriabilidade das inovações e estender ao máximo os ganhos de monopólio gerados por esses novos conhecimentos.
É no mínimo uma ingenuidade achar que uma lei mais rigorosa de propriedade industrial favorecerá os investimentos estrangeiros no país, principalmente se levarmos em conta que, além da eliminação desses entraves não-tarifários às importações, o Brasil reduziu drasticamente suas tarifas alfandegárias. Que razão teriam essas empresas para correr riscos, se o mercado está aberto e os custos de transporte são mínimos?
O conjunto de acordos assinados pelo Brasil e aprovados pelo Congresso Nacional no final de 1994, como condição de sua adesão à OMC, traz embutida uma nova institucionalidade internacional à qual o país comprometeu-se a adequar sua própria legislação no que for necessário. Essa nova institucionalidade é altamente limitadora do exercício da soberania nacional por parte do Estado brasileiro. Num quadro de "globalização" crescente da economia mundial e de aprofundamento da inserção do Brasil nessa economia cada vez mais globalizada, toma-se difícil desenhar políticas autônomas de desenvolvimento, à margem dos interesses estabelecidos dos grandes conglomerados econômicos com atuação internacional.
Luís ANTONIO PAULINO é engenheiro, com mestrado em Administração Pública pela EASP/FGV, e doutorando em economia na UNICAMP. Notas
(1) Entende-se por "obrigação de tratamento nacional" o dever de qualquer País-Membro da OMC outorgar a empresas de qualquer outro Membro o mesmo tratamento dispensado às suas próprias empresas.
(2) Medidas anti-dumping são restrições que um país estabelece à entrada de mercadorias
. importadas, sempre que se comprove que .estas estão sendo internalizadas a preços abaixo do seu custo real e concorrendo deslealmente com os demais produtores.
(3) De acordo com a nova Lei de Patentes praticamente já aprovada no Congresso brasileiro, a obrigatoriedade de exploração no território brasileiro deixa de existir sempre que a mesma for economicamente inviável. Em tal situação, será admitida a exploração da patente via importação. Desnecessário dizer que a figura da inviabilidade econômica é totalmente subjetiva. Qualquer empresa poderá alegar tal motivo para não produzir localmente um produto e abastecer o mercado interno com mercadoria importada. Destaque-se ainda que a nova lei impede que terceiros importem produtos patenteados colocados no mercado interno pelo próprio titular da patente ou seu licenciado.
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