“Reencantamento do mundo”: o neopentecostalismo e as mudanças na matriz religiosa brasileira
A intenção deste texto é abordar a questão do "desencantamento do mundo" que permanece vigente em algumas correntes culturais em uso, como se por essa expressão se quisesse anunciar, ou melhor, sentenciar o fim da religião – ou das religiões -, do mesmo modo que outra corrente cultural preconizou o "fim da história" (l).
O nosso objetivo é, portanto, o de analisar o lugar das religiões na pós-modernidade, no mundo supostamente "desencantado" pela racionalidade da ciência, a partir da realidade brasileira atual, em que a religiosidade ocupa um largo espaço e assume elevado significado como valor social.
Nessa perspectiva, a revitalização da religiosidade parece responder ao paradoxal "desencantamento do mundo" no processo de competição das religiões no mercado dos bens simbólicos de cura e salvação, na reafirmação de uma racionalidade religiosa que toca ao indivíduo como ser emergente e consciência absoluta na sociedades pós-moderna.
A concepção de revitalização da religiosidade decorre da percepção da formação de uma religião de massa que se dissemina em templos locais e se expressa vivamente através da mídia eletrônica, alcançando os lugares mais distantes do país; também pela utilização dos espaços político-institucionais, sobretudo posições no legislativo (municipal, estadual e federal), na forma de uma "bancada evangélica".
Diante dessa ofensiva de novas religiões de caráter agressivo na disputa do mercado religioso, as religiões populares, candomblé e umbanda, são vistas como "coisas do demônio", enquanto que o catolicismo é tido como moralmente fraco, segundo a perspectiva pentecostal, mais particularmente a da Igreja Universal Reino de Deus.
A recentíssima série da Rede Globo de Televisão (setembro de 1995), de autoria de Dias Gomes, Decadência, trouxe para a mídia a questão religiosa posta de modo em virtude da reação da Igreja Universal Reino de Deus, que se sentiu caracterizada no seriado comprometendo sua imagem considerando que a personagem dom Mariel supostamente construída à semelhança da imagem do bispo Edir Macedo, representava um pastor corrupto e inescrupuloso (2).
Logo em seguia, precisamente 12 de outubro, a imagem da santa do Brasil foi rudemente provocada: o pastor Von Helde em seu teste de divindade da imagem. Aproveitando a deixa, a Rede Globo de Televisão repetiu doze vezes seguidas a edição da agressão à santa, tornando famosa a cena em que o pastor bate na santa com o pé. Esse fato trouxe para o primeiro plano a sociedade uma realidade indisfarçável, as mudanças na matriz religiosa com a ofensiva do neopentecostalismo, ao desafiar frontalmente a Igreja Católica, e a própria religiosidade brasileira, que, longe de estar em baixa, mostra-se intensificada neste final de século para o qual foi preconizado o "desencantamento mundo" ou até mesmo o fim da religião.
Religião e virtude
A observação empírica está e contextos da vida cotidiana, mas preferimos buscá-la no contexto específico da política, dada a sua forma de expressão e sua ressonância, caracterizando a religiosidade como um valor de elevada positividade, requerido pelo discurso social do senso comum como imprescindível na composição da imagem do homem público.
A transformação da religiosidade em virtude pôde ser vista de modo enfático durante a última campanha eleitoral de 1994 para a Presidência da República, governos dos estados, Câmara de Deputados, Senado nacional e assembléias legislativas estaduais, em que a acusação de ateísmo foi utilizada contra candidatos. Em situação oposta o enaltecimento da fé, da devoção religiosa como virtude exigida no homem público brasileiro.
Comecemos com o exemplo da eleição para prefeito de 1994, em São Paulo, maior cidade do país, em que Fernando Henrique Cardoso, então candidato a prefeito, declarou-se ateu. Esse foi um dos pontos enfatizados pelo seu principal adversário, o ex -Presidente Jânio Quadros, que se elegeu. Para alguns analistas políticos da época, essa foi uma das razões da derrota de Cardoso.
Na campanha eleitoral de 199l para a Presidência da República, esse mesmo argumento foi intensamente utilizado, dessa vez pelo adversário mais expressivo, Luis Inácio Lula da Silva Mas, ao contrário da vez anterior, Fernando Henrique Cardoso se disse crente, de formação religiosa.
Outro aspecto interessante dessa ênfase religiosa foi o breve esquecimento da Casa da Moeda de gravar nas primeiras novas cédulas do real (moeda que substituiu o cruzeiro), a inscrição "Deus seja louvado", cunhada pelo ex-Presídente da República, José Sarney. Coube ao ministro da Fazenda, um católico confesso, de tradição beneditina, cuja imagem pública era a de um beato, corrigir esse esquecimento. Com relação a esse personagem, a questão da religiosidade como pré-requisito do homem público virtuoso foi posta numa situação de ambigüidade em razão de suas declarações em off de não ter escrúpulos em esconder fatos considerados como adversos para o governo e "faturar" aqueles outros tidos como favoráveis. A conversa, captada por antenas parabólicas, tomou-se de domínio público, e o homem virtuoso mostrou-se ardiloso, diabólico, por trás de sua aparência piedosa.
Nesse episódio, seguido de um mea culpa público, a questão da religiosidade foi novamente posta em evidência. Estes registros que fazemos têm apenas a função de ilustrar o peso que tem a religião na sociedade brasileira, mesmo num território profano por excelência, que é o da política. Outro exemplo é a acusação ao candidato eleito governador do estado do Paraná de ser o "anticristo", por ser judeu.
Nosso objetivo é, assim, o de compreender o significado da religiosidade na sociedade brasileira atual, cuja tônica é a expansão das religiões populares, principalmente o candomblé nos grandes centros urbanos, a exemplo de São Paulo (prandi, 1991; 1995); do pentecostalismo em todo o país (4) (Fernandes, 1994) e dos movimentos carismáticos da reação católica. Nosso ponto de reflexão é o do domínio da racionalidade, do pragmatismo religioso para a vida cotidiana frente à diluição das concepções mais abstratas e filosóficas, na vertente weberiana de concepção da religião como orientada "para que vás muito bem e vivas muitos anos sobre a face da Terra" (Weber, 1991:279).
Pós-modernidade e o reencantamento do mundo
Atribuir a uma época uma denominação específica é conceituá-la, ou seja, é transformá-la em categoria e objeto de reflexão. Assim, a pós-modernidade se constitui em um momento social diferente do anterior (a modernidade), mas sem o manifesto, a exemplo do modernismo, que marcou a construção de uma nova fase histórica, e se qualifica pelos aspectos gerais de globalização do espaço e do tempo, integração planetária, sistema econômico universal, comunicação planetária instantânea, conhecimento como mercadoria, redução drástica do trabalho produtivo, autonomia da cultura em relação à economia etc. (Lefebvre, 1985; Lyotard, 1979; Guiddens, 1991; Schaff, 1992;Augé, 1993).
A pós-modernidade estaria, assim, demarcada pelo domínio da tecnologia e sua ampla utilização na vida cotidiana da sociedade de massa, construindo um tempo da mais alta racionalidade, da confiança irrestrita nas possibilidades do cálculo, portanto um mundo desencantado, em que tudo é possível prever e planejar.
Já nos fins dos anos 60, Berger (1993: 19) constatava um arrefecimento no ardor religioso da sociedade americana em razão da racionalização crescente decorrente do processo de secularização.
Mas aquilo que parecia ser uma tendência para Berger é contestado por Rouanet em seu sugestivo ensaio Mal-estar na modernidade, em que reconhece "um grande projeto de ressacralização do mundo" (1993 :10; 11), o pleno domínio do misticismo numa variada combinação de crenças em duendes, anjos, cristais, demônios, santos, deuses, medicinas paralelas etc. Ter-se-ia operado uma reversão da tendência indicada por Weber e reiterada pelos estudiosos que o seguiram?
A chamada pós-modernidade apresenta-se repleta de ambigüidades. O elevado desenvolvimento científico não parece assegurar uma confiança pessoal do indivíduo, que antes parecia ser um corolário inevitável. No senso comum há uma idéia bem assentada de que novos desafios seguem-se, sempre, às conquistas da ciência. Assim, a AIDS é tomada como uma verificação empírica dessa situação no domínio da medicina, precisamente quando se anunciam as muitas curas do câncer, progressos na engenharia genética, no retardamento da velhice e tantas outras descobertas e invenções no campo da saúde.
Por outro lado, a medicina posta à disposição das populações tem demonstrado uma perceptível perda de qualidade, imersa numa crise tão profunda e ampla que se aceita a idéia do "sucateamento" do sistema público de saúde. Frente a essa crise, as promessas das religiões que afirmam o poder de cura têm uma significativa acolhida entre aqueles que necessitam de atenção médica.
Afirmar a hipótese de uma "desconfiança" na ciência parece não satisfazer a explicação da religiosidade intensificada e diversificada, considerando a evidência da medicina, que mais proximamente toca aos limites da individualidade, como supra-religiosa e largamente requisitada, assim como a qualificação de "científicas" dada a muitas práticas adivinhatórias, a exemplo da astrologia. A nossa hipótese vai noutro sentido, da emergência do indivíduo numa sociedade multicultural cujo referencial mais elevado é a possibilidade da individualidade, ser e circunstância sócio-cultural em que esse indivíduo assim constituído tem a liberdade de ver o mundo a partir da própria experiência existencial (MeIlo, 1994; Sennett, 1988; Sanchis, 1995; Chalvidan, 1988).
Essa nova circunstância, sem qualquer outro referencial histórico parecido, está relacionada também à diversidade espantosa de informações e campos do saber, bem como à dinâmica do tempo que envolve o indivíduo num "infernal emaranhado de coisas" que o conduz como num torvelinho.
Sem ponto fixo de onde partir, sem território firme para apoiar-se, sem horizonte visível aonde chegar, embarcado no processo vertiginoso de transformações de toda ordem, o indivíduo sente o "mal-estar na racionalidade" e apega-se a promessas e possibilidades de administrar o próprio destino (Lipovetsky, 1991; Rosset, 1989).
Declinam as grandes religiões, crescem as práticas individuais
Outra hipótese vai no sentido de reconhecer um estado generalizado de desinformação em decorrência do excesso de informações fragmentadas oferecidas pela mídia e compartilhadas por todos de modo massificado, sem quaisquer depurações, com alto poder de dessignificação da realidade (Benjamim, 1991) – uma realidade que perde sentido e o sentido buscado na "ficção">, que é aqui concebida como religiosidade.
O fato observável é o do declínio das grandes religiões, notadamente do catolicismo (Sanchis, 1995), e o crescimento de outras, a exemplo do candomblé e da umbanda (Prandi, 1991; Fernandes 1994), das igrejas pentecostais, com destaque para a Universal Reino de Deus; das práticas religiosas adaptadas aos modos individuais de culto e de outras práticas mágicas (astrologia, I-Ching, tarô, cristais, duendes, anjos cabalísticos, concepções holistas, psicanalismos, alimentação e medicinas naturistas (6) etc. Crescem também a farta literatura de auto-ajuda e o esoterismo da própria medicina científica. (Foucault, 1977, 1978; Illich,1975, 1976; Koestler, 1968; Laplantine,1989).
O destino individual parece ser o âmago da questão. Há sempre uma crença, por mais incongruente que seja, de que é possível responder -se em face dos acontecimentos (acasos e propósitos) adversos, sobretudo doença e morte, azares e desordens da vida; de mediar magicamente essas situações angustiantes e indesejáveis. Nesse sentido, o ser é ou procura ser religioso, místico. Nessas situações é difícil viver a racional idade sem senti-la como um mal-estar.
Afirmar que o indivíduo é fraco diante da adversidade é simplificar a percepção do sentimento religioso como um fenômeno sócio-cultural amplamente observado, considerando que entre os "fortes" e os "felizes" esse sentimento também é encontráve1. A hipótese que nos ocorre é a da reconstrução do senso comum pela mídia e pela política através da ideologia democrática da liberdade de e para consumir, em que a fé e a devoção são reafirmadas como virtude na ideologia religiosa em voga. Na ordem do mundo da desinformação compartilhada, da liberdade do indivíduo e do individualismo como religião, a religiosidade toma-se a principal via da ressignificação do mundo, do sentido da existência (7).
As religiões de massa (pentecostais) têm acentuado as possibilidades de atendimento às questões práticas da vida cotidiana, desde a cura das mais diversas doenças até soluções para problemas econômico-financeiros e sentimentais, a partir do cristianismo; enquanto que as religiões não-cristãs, outrora étnicas, hoje universalizadas, ampliam consideravelmente seus campos de ação em decorrência de sua capacidade de atender às demandas de clientes e fiéis.
Vem da igreja católica a maioria dos fiéis para as demais religiões, considerando-se o monopólio historicamente estabelecido. Essa passagem do catolicismo para outras religiões deve-se, em parte, à maior eficácia na mediação com o sagrado, sobretudo pela inteligibilidade dos processos que ligam os fiéis aos santos do panteão afro-brasileiro, ou à identificação imediata da presença do demônio nas adversidades pessoais e sociais entre os praticantes pentecostais.
Em outros termos, podemos considerar a entropia (Reeves, 1988: 55) do catolicismo, ou seja, sua dimensão e sua estabilidade, que o fazem distanciar-se das configurações particulares dos pequenos grupos sociais que não sentem na ortodoxia da igreja o reflexo de suas identidades.
O inverso dá-se em relação ao candomblé, que demonstra uma insuspeitada vitalidade (8), expandindo-se em número de terreiros, sobretudo nas grandes cidades, com a incorporação de adeptos de classes sociais mais elevadas, inclusive na condição de iniciados e sacerdotes. O mesmo raciocínio é válido para o pentecostalismo, cujo crescimento é notável (9).
Vida cotidiana e religiosidade
Vimos acima que a questão do "desencantamento do mundo" deve ser procurada na superação de crenças em forças ocultas e imprevisíveis e no controle das coisas da vida pelo cálculo. Vimos ainda que na sociedade pós-moderna o cálculo, a probabilidade e a previsibilidade, que implicam controle de risco, são elementos componentes da razão instrumental em uso. Mas estamos, também, diante de um mosaico de fórmulas mágicas, de doutrinas esotéricas, de medicinas paralelas, de psicanalismos, enfim, de um amplo receituário de modos de vida e superação de obstáculos que se desprendem da razão e que qualificam a razão instrumental como derivada do imaginário mágico da sociedade, de tradições históricas e míticas em que os arquétipos são fundamentais.
Esse cenário não é para nós, entretanto, visto como um reencantamento do mundo, mas racionalização de um repertório disponível e eficaz no sentido re proporcionar ideologicamente segurança psicológica e identidade às pessoas desencontradas no quadro mais geral das fragmentações do mundo pós-moderno, das realidades múltiplas vivenciadas ou virtuais que requerem a composição, também, de múltiplas identidades.
A busca de algum redutores da dinâmica das transformações, de pontos fixos e referenciais estáveis, a exemplo do signo astrológico, de arquétipos e de uma base fundamental (ancestralidade mítica?) é capaz de proporcionar ao indivíduo a alteridade para pensar a si próprio. Mas, longe de ser um mergulho na superstição e na crença pura e simples, é uma busca de lugares sagrados no espaço e no tempo diante das mudanças aceleradas e das realidades virtuais, mas sobretudo da ideologia religiosa em voga, da qual certos segmentos da ciência fazem coro.
A religiosidade pode ser um componente da superstição, mas dela se diferencia. No senso comum, a superstição traduz um senti; mento que não tem um fundamento racional. E uma associacão entre idéias, fatos e coisas numa matriz de causalidade incongruente. Enquanto sentimento, a superstição configura-se como um estado de espírito predisposto a atribuir a razão de ser de algum acontecimento à interferência de causas aleatórias e sem relação lógica entre si e com o acontecido-associação e construção de coincidências em situações vividas.
A religiosidade pressupõe a predisposição para a crença, mas de modo sistematizado, racionalizado, que regula a vida das pessoas enquanto vivenciação e normatiza sobre as mediações com as forças divinas. Bourdieu, (1971: 295-334), seguindo o pensamento de Weber, analisa a distinção entre religião e magia a partir do princípio que separa o sagrado do profano. Demonstra a oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos, sendo estes objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e estranhos ao sagrado e ao corpo de gestores do sagrado.
A religião é uma organização que ordena e administra o sagrado através de seu corpo de especialistas; tem uma estrutura constituída de sacerdotes e leigos e exerce-se através de cultos. A magia, por seu lado, é constituída de ações eventuais e destituída de culto. A crença na religião é, assim, uma construção elaborada, externa aos indivíduos, constitutiva da teologia.
No passado, a religião cristã assumiu uma inf1uência jamais vista em qualquer ideologia política (lO). A descoberta da América trouxe os jesuítas e sua missão de fundamentar a base ideológica dos projetos de colonização. Esse domínio ideológico-religioso tinha a sua razão de ser no domínio exclusivo da educação e da produção de conhecimento, e o conhecimento subordinado aos interesses dominantes.
O conhecimento científico encontrou na religião, mais precisamente na igreja, um obstáculo ao seu livre desenvolvimento, mas esse embate, ao longo da história, foi mais favorável à ciência, em razão da racionalidade crescente e dos usos práticos, na forma de aplicações tecnológicas, desse conhecimento. Nos tempos atuais, não há mais a rivalidade entre ciência e religião. Se retomarmos a Durkheim e Weber, e mesmo a Marx, veremos o quanto é equivocado supor, verdadeiramente, uma concorrência entre religião e ciência. É o próprio Durkheim (1989:119) que demonstra que a fonte de vitalidade e de perduração da religião não é o conhecimento positivo do mundo.
Para o filósofo Russel, "uma religião puramente pessoal, conquanto que se contente em evitar as asserções que a ciência pode refutar, poderá sobreviver tranqüilamente nos tempos mais científicos" (1971: 8). E parece ser essa a tendência – o culto individual, tal como observou Sanchis (1995) :
"O processo de individualização é mais condizente com o curso da história contemporânea. Há o crescimento da importância do indivíduo como elemento matricial da vida social. ( … ) Acho que uma das idéias que tentei passar é que o campo religioso tende a gerar o enfraquecimento das instituições e um fortalecimento da religiosidade em si".
Não temos receio de afirmar que a religiosidade se expressa nas consciências individuais e atinge seu mais alto grau de conversão quando o indivíduo sente nele próprio a interferência do sagrado como algo misterioso a interceder em seu favor, mesmo diante do exercício de práticas não religiosas, a exemplo daquelas da medicina oficial. Essa imersão na individualidade retira o caráter de confronto entre razão e fé.
Religiosidade e instituições religiosas – conclusão
A distância entre religiosidade e instituições religiosas é empiricamente demonstrável, sobretudo na época em que o indivíduo se toma consciência de si mesmo (Sennett, 1988; Chalvidan, 1988). Mas essa constatação depara-se com uma outra: a do poder das instituições religiosas na produção ideológica. A hipótese aqui trabalhada é que as instituições religiosas são opostas a essa individualização, e a filiação do indivíduo às instituições representa a negação da individualização, ou seja, o indivíduo aliena-se à religiosidade grupal e anônima. Esse paradoxo social atinge seu ponto mais elevado quando se observa a igreja católica opor-se às campanhas antiAIDS, mesmo que por meandros dos valores postos em questão, teológicos e morais; ou ainda quando retoma sua feição mais conservadora (ll) ao afastar-se de compromissos sociais básicos assumidos pela corrente da Teologia da Libertação (l2). Essa atitude da Igreja parece ser, no mais geral, um afastamento recomendado das preocupações cotidianas da vida dos fiéis. Em sentido oposto, o pentecostalismo, mais especificamente a Igreja Universal Reino de Deus, cola-se ao cotidiano de vida e se propõe, em seu proselitismo, resolver os problemas de seus adeptos e clientes no atacado e no varejo.
Para os pastores da Universal Reino de Deus, igreja que se espalha pelo mundo e a que mais cresce no Brasil, os problemas pessoais podem ser resolvidos a partir da entrega a Jesus, pois Jesus cura e conduz à satisfação dos desejos, uma vez que não se deve conceber a presença neste mundo como sacrifício ou fracasso. Problemas econômico-finaceiros dependem do empenho da fé em resolvê-los, proporcional ao dízimo e aos pactos (ofertas), e estes são expressos pela maior quantia (não a que pode ser dada sem sacrifício, mas aquela que faz falta, pois só essa falta prova o empenho da fé, e assim o fiel/cliente será recompensado por Jesus).
Poderíamos dizer que a Universal Reino de Deus é uma igreja ajustada ao modelo neoliberal do capitalismo hegemônico. E essa sua atualidade a faz pertencer à dinâmica da sociedade pós-moderna, apesar do suposto anacronismo do demônio como fonte de todo mal e, ao mesmo tempo, o mal necessário, pois sem ele, sem a simplicidade de sua concepção, dificilmente se poderiam realizar tantos e tão elevados contratos para cura e solução de problemas econômico-financeiros, políticos e afetivos. Pequenos e grandes milagres cotidianos e a ênfase no discurso, tal como reconhecido por Weber: "as ações religiosas ou magicamente exigidas devem ser realizadas para que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos sobre a face da Terra"(l991:279).
É precisamente nesse aspecto pragmático da negociação pentecostal que se assenta o poder de atração dessa religião sobra as massas: são as soluções para os problemas da vida cotidiana, são as ofertas, com impressionante agressividade, de cura e salvação a um só tempo; e por salvação não apenas o que se refere à transcendência, mas muito mais a que resolve a vida, a riqueza, o sucesso; a que arranja emprego, que traz a sorte, que conforta na doença e cura
O conflito com o demônio é evidente, e é contra o ser diabólico que se dirigem os esforços exorcizantes dos pastores pentecostais. As desgraças do mundo e da vida pessoal são realizações do demônio. A simplificação da explicação para as adversidades da vida na figura desse demônio- tão diferente daquele da religião católica – e do dinheiro como expressão de fé, como meio para acionar a salvação e cura opera como um redutor das tensões pessoais, familiares e sociais diante da responsabilidade pessoal com o próprio destino. Assim compreende o fiel a sua condição de vida, pois ela é obra do jogo praticado entre Deus e o Diabo. Essa é uma religião pragmática, por isso a denominamos de religião de negociação. Tudo é muito simples, os termos da cura e salvação são os de contratos, verbais ou escritos, usuais na vida cotidiana
Numa outra dimensão estão as religiões afro-brasileiras, sobretudo em suas expressões mais popularizadas: candomblé e umbanda. Novamente aqui afirmamos a tese da racionalidade dos processos da ação dessas religiões: a compreensão racional da negociação com o divino, o que as torna compatíveis com o modo de ser da sociedade pós-moderna. O ponto mais nítido está na questão da saúde, em que temos, de um lado, a moderna medicina oficial, e do outro as soluções religiosas, também da religiosidade das medicinas alternativas.
Nessa sociedade extremamente mutante, em que cada indivíduo participa desigualmente da contemporaneidade (no tempo, no espaço e nos bens e produtos), em que predomina a mais elevada racional idade, há lugar para deuses e demônios, para a libertação da consciência e para a sua alienação. Diante deste cosmos social, incompreensível para o senso comum, talvez tenhamos que concordar com Huxley (1980: 7): "A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu estado bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas".
GEY EsPINHEIRA (Carlos Geraldo Andrea Espinheira) é sociólogo e professor adjunto 4 do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, e pesquisador associado ao Centro de Recursos Humanos CRH/UFBa
Notas
(1) Cf. ANDERON, Perry. q fim da história: de Hegel a Fukuyama. Trad. Alvaro Cabra!. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1992.
(2) A reportagem da Folha de S. Paulo de (B.OO,I19S6 é considerada por advogados da igreja a prova de que Mariel é inspirado em Macedo. Mostra que trechos de uma entrevista dada por Macedo à revista Veja em 1990 foram reproduzidos literalmente no livro de Dias Gomes. Folha de S. Paulo, 1-10, 21/911995.
(3) É interessante observar, como o fez Isambert (1993:357), que a famosa expressão de Weber deveu-se a uma tradução equivocada do termo entzauberung como desencantamento, quando o mais apropriado seria desenfeitiçamento, exorcização. Assim, para ele o sentido weberiano seria: "não há, fundamentalmente, nenhuma força oculta e imprevisível em jogo, de modo que nós dominamos todas as coisas pelo cálculo".
(4) "Participante de encontro promovido em Petrópolis (66 km do Rio) pelo Vaticano para discutir o desafio das seitas na América Latina, o bispo de Santo André (SP), Dom Cláudio Hummes, estimou em 'pouco mais de 20 milhões' o número de evangélicos no Brasil". Fernando Molica, Folha de S. Paulo, 1-11, 30/8/1995.
(5) Cf. HUXLEY, Aldous. principalmente em O gênio e a deusa; A ilha; Contraponta; As portas da percepção e o Céu e o inferno. (vide bibliografia)
(6) Por naturismo a concepção mística da natureza como "Algo superior" inteligente e sábio, fonte de uma "energia vital" emanada de uma "organização" criadora de todas as coisas. (7) Cf. tendências teóricas no sentido da convergência ciência/religião. a exemplo de Guitton, 1992; Capra, 1994. entre outros.
(8) Vale a pena referência à observação de Camargo (1973:24): "Realmente as religiões com função de preservação de patrimônio e interesse étnico-culturais somente crescem de modo vegetativo, acompanhando o desenvolvimento demográfico das populações a elas vinculadas". O candomblé e a umbanda deslocaram-se hoje dessa condição e têm outros significados sociais.
(9) A existência de 20 milhões de evangélicos no país, como reconheceu o bispo católico no encontro patrocinado pelo Vaticano, em Petrópolis-RJ, está a indicar um crescimento de 150% entre 1980 e 1995 que entre 1980 e 1991 (último censo) a população cresceu cerca de 23%. (Folha de São Paulo. p. 1-11; 3)/8/1995).
(10) Cf. Febvre. 1995; Voltaire, 1993, Bloch, 1993; Michelet. 1992; Rosset. 1989
(11) A Igreja Católica se abriu para os problemas políticos e sociais da América Latina nos últimos 50 anos mas perdeu espaço para outras propostas religiosas. Principalmente evangélicas e orientais. A opiniãoé do padre José Oscar Beozzo., piesidente da Cehila (Comissão de Estudos de Historia da Igreja na América Latina). Folha de S. Paulo/1995.
(12) Cf. Lowi 1991 Boff 1993.
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