Em 1990, quando a crise do socialismo se aprofundou na Europa, os cientistas políticos das grandes universidades norte-americanas e os analistas da Casa Branca e do Departamento de Estado previram a rápida queda do regime cubano. Os dirigentes contra-revolucionários de Miami foram aconselhados a acelerar os planos para a transição.

Transcorridos cinco anos, a União Soviética desagregou-se, e a Rússia tem um governo capitalista. Na Europa, o socialismo foi varrido do poder. Em todo o Ocidente, o único país onde o socialismo sobreviveu e resiste é aquele onde o julgavam mais fraco: Cuba.

Os fatos demonstraram que as previsões dos especialistas norte-americanos assentavam em análises superficiais de realidade cubana e dos sentimentos do povo da Ilha .

Fidel Castro tem afirmado repetidamente que, para se compreender a Revolução Cubana e as suas origens, é indispensável conhecer bem a história de Cuba – não apenas a das lutas da sua geração, mas a história da Ilha na sua longa duração e, sobretudo, a das guerras de libertação do século XIX.
E de Fidel também a afirmação de que José Martí foi o autor intelectual do assalto a Moncada, a 26 de juiho de 1953. Essa assertiva tem feito sorrir intelectuais europeus e americanos. O seu ceticismo irônico expressa uma atitude mental não muito diferente da que assumiam destacados universitários soviéticos ao ouvirem referências ao marxismo martiano.

Uns e outros não perceberam que a metáfora e o conceito traduzem aspectos do particularismo cubano que não mereceram atenção suficiente dos cientistas políticos. Sem descer às raízes daquilo que na Revolução Cubana é único e irrepetível não se pode entender o porquê da sua continuidade. As respostas não são dadas pela exegese de fórmuias e peias tentativas de definição do marxismo martiano recorrendo ao instrumentai analítico tradicional. É outro o caminho a seguir para se chegar à compreensão daquilo que, na teoria e na práxis revolucionária de Cuba, foi e continua a ser diferente.

Costuma-se dizer que a Revolução Cubana foi desde o início um desafio permanente à lógica da história e se impôs contra ela. É uma evidência. Mas esse desafio tem precedentes, mergulha raízes na cadeia de movimentos insurrecionais contra o império espanhol, sobretudo na segunda metade do século XIX.

Cuba e Porto Rico foram as únicas colônias americanas que ficaram à margem da revolução libertadora posterior à invasão da península por Napoleão Bonaparte.

Paradoxalmente, foi a oposição da Inglaterra que impediu, então, a anexação de Cuba pelos Estados Unidos. Os interesses do imperialismo britânico fizeram da Grã-Bretanha, ao longo da primeira metade do século XIX, praticamente o único fator de contenção do ritmo de expansão para o sul da república norte-americana. John Quincy Adams, que foi um dos mais talentosos presidentes dos EUA, escreveu nas suas Memórias: "assim como uma maçã separada da árvore peia força do vento não pode, mesmo que queira, deixar de cair no solo, Cuba, rompida a ligação artificial que a prende à Espanha, separada desta e incapaz de se manter por si mesma, terá de gravitar necessariamente para a União Norte-Americana, somente para ela (1)".

Nas vésperas da proclamação da Doutrina Monroe (que foi uma saída habilidosa para uma situação difícil no relacionamento com a Inglaterra, e não uma afirmação de poderio), os Estados Unidos estiveram prestes a intervir em Cuba contra a Espanha. Mas Monroe e Adams recuaram, conscientes de que os ingleses expulsariam as tropas da União sem grande dificuldade, dada a sua esmagadora superioridade naval. No imaginário americano permanecia a lembrança da guerra de 1812, quando Washington foi destruída pela Royal Navy, e a Casa Branca e o Capitólio incendiados pelos ingleses (2).

A teoria da fruta madura foi, aliás, desmentida pela história. Cuba não teve o destino de Porto Rico, não se tomou colônia dos Estados Unidos.

A teorização sobre a real poiititik, na versão difundida pelo marketing mediático, semeou tamanha confusão no mundo contemporâneo que mesmo entre povos com nívei de instrução elevado muita gente admite hoje que a morai é incompatível com a política. A tendência para aceitar como fatalidade essa perigosa e falsa conclusão dificulta muito o entendimento do que, na história de Cuba, parece absurdo. Porque a componente ética é ali determinante – no andamento das coisas, nas ações dos homens, no movimento da sociedade.

Cintio Vitier, num livro belíssimo e importante3 que desce às raízes da eticidade cubana, ajuda a abrir portas que, para os europeus, têm permanecido fechadas. O autor de Testimonios consegue sintetizar em palavras simples comportamentos e formas de sentir inerentes àquilo que se poderia chamar a excepcionalidade cubana. Atinge esse objetivo documentando através de exemplos expressivos a maneira como os problemas morais do homem se apresentaram e chocaram em períodos cruciais da história intelectual e política de Cuba. longe de Cintio Vitierum sentimento de arrogância. Não identifica na diferenciação qualquer superioridade. A eticidade cubana existe, tal como emergiu e se projetou a vietnamita durante o conflito que opôs aquele povo aos Estados Unidos. E porque é real e pesa na história deve ser levada em consideração, até porque o particular faz caminho para o universal.
A proclamação da Primeira República em 1868 – início da chamada Guerra dos Dez Anos – não teria acontecido sem o amor peias causas impossíveis que então caracterizava o romantismo revolucionário cubano. No finai do conflito, havia na Ilha um soldado espanhol para cada cinco habitantes …

O que impressiona é a continuidade. Martí, a quem seus compatriotas ainda hoje chamam O Apóstolo, retirando da palavra o conteúdo religioso, foi sempre defensor de uma concepção ética da poiítica. E um herói diferente dos padrões habituais – nem homérico nem carlyliano. Entre o seu povo e ele existe uma relação de afeto, sem adulação, absolutamente incomum. Tão forte que nem Batista ousou se opor ao culto da sua memória e ao estudo da sua obra (quase desconhecida em Portugal), não obstante o autor de Nuestra America ter vivido e morrido por valores que o ditador abominava.
Por que a permanência e a solidez dessa ponte de admiração?

Martí foi um pensador originai, um poeta e ensaísta de talento, um cronista lúcido de seu tempo, um estilista primoroso como escritor. Mas não é o seu gênio literário que explica o que há de excepcionai na sua presença na memória coletiva cubana, de geração para geração.

Martí assumiu e levou às últimas conseqüências desafios que transcendiam os meios de seu povo.
Desde a juventude, foi um idealista na acepção filosófica da palavra. Da sua passagem pelos cárceres de Havana, quando tinha 16 anos, ficaram-lhe as seqüelas das grilhetas que lhe colocaram nos pés. A palavra idealismo faz hoje sorrir, mas é indispensável inserir o jovem cubano (filho de um sargento espanhol) no contexto do mundo colonial em que cresceu. Havia nele muito dos grandes moralistas franceses do século XVIII, anteriores à Revolução de 1789. Essa herança vinha-lhe do estudo da obra de José de Luz Y Cabaliero, um compatriota seu, El Maestro, que viveu na primeira metade do século e foi talvez o espírito mais culto da sua geração em toda a América latina. Os seus ensaios e polêmicas suscitaram o interesse e o respeito de Iongfeliow, Goethe, Humboldt, Michelet e outras personalidades eminentes.

Luz chegou à conclusão de que os grandes problemas de Cuba resultavam da escravatura. Para ele, entretanto, esse cancro social era sobretudo um pecado ético. Vindo da Igreja, na tradição universitária do mundo colonial espanhol, Luz exerceu uma influência enorme na formação de sucessivas gerações. O Maestro tomou uma postura radicai no combate peia abolição. "Antes queria que se desmoronassem as instituições dos homens, reis e imperadores, os próprios astros do firmamento [afirmou já no fim da vida] do que ver cair do peito humano o sentimento de justiça, esse sol do mundo moral".

Na opinião de Martí, o mérito maior de Luz foi ter semeado homens pelo exemplo e pela obra.
Em nenhum outro país a fidelidade à utopia, a defesa de uma concepção moral da aventura humana terá sido tão persistente e prolongada. A história parece ali, por vezes, repetir-se.
O brado de Céspedes ("Ainda nos restam doze homens, o suficiente para fazer a independência de Cuba!") em Yara seria (com outras palavras, não muito diferentes) retomado por Fidel após o massacre de Alegria del Pio, quando dos expedicionários do Granma sobravam duas dezenas … É também a mesma raiz ética do pensamento revolucionário cubano que levou AntonioMaceo em 1878, a recusar a capitulação,ao tomar conhecimento do Pacto de Zanjon.Eticidade épica foi a expressão utilizada por José Martí para qualificar a mundividência e os atos de Ignacio Agramonte, outro dos heróis intemporais da Guerra dos Dez Anos.

Na sua longa duracão. o combate libertador do povo cubano não ficou porém assinalado somente peia trajetória desses personagens tutelares e do povo combatente, sujeito da história como herói coletivo.
Na história atormentada da Ilha houve, obviamente, outros comportamentos. Nem tudo foi luz; a sombra deixou também memórias. Os modernos gusanos de Miami emergem como herdeiros naturais dos plantadores que apoiaram até o fim o império espanhol, dos antigos anexionistas, daqueles que festejaram a intervenção americana em 1898, dos apologistas da Emenda Plata e dos cortesãos de Machado e Batista

Aos anos breves e sofridos de epopéia sucederam com freqüência prolongados períodos de inação e de pantanosas cumplicidades com os responsáveis pelos males do povo oprimido.
A semente da eticidade nunca desapareceu, contudo; a fome do impossívei marcou a vida mesmo nas fases em que a esperança coletiva parecia desvanecer-se.
Martí, obviamente, não era marxista A sua revolta nasceu, primeiro, do amor da liberdade com fundamentos exclusivamente morais. Não suportava a injustiça e a opressão. A sua admiração por Marx, manifesta num artigo escrito em 1883, após a morte do autor de O capital, tinha motivações morais.

"Porque ele se colocou do lado dos fracos, merece ser honrado. Não foi apenas dinamizador titânico das cóleras dos trabalhadores europeus, mas também um observador pro-
fundo na razão das misérias humanas e destinos dos homens, e homem atormentado peia ânsia de fazer bem. Ele via em tudo o que em si próprio continha: rebeldia, caminho para o alto, luta."
Martí – como recorda Cintio Vitier – traduzia Marx para a sua linguagem, tai como Julio Antonio Melia, transcorridas quatro décadas, iniciaria a "tradução de Martí para a linguagem marxista-leninista que, sem perder a seiva martiana, será a da nova revolução anunciada pelos precursores desses anos e conduzida até a etapa finai peia Geração do Centenário de 1953".

O que fascina Melia em Martí é a lição dialética da sua obra como arma eficaz numa luta que se insere noutro contexto mundial. inevitavelmente demarca-se, quando necessário, do idealismo apaixonado do revolucionário de 1895. Melia sabe que a democracia pura, tal como a antevia Martí, num relacionamento harmonioso de todas as classes sociais, é uma impossibilidade absoluta A República "com todos e para todos" é uma utopia. Mas percebe-se do conteúdo revolucionário das críticas de Martí à ferocidade do capitalismo norte-americano o significado profundo do desabafo de 1880 numa carta a Miguel Viondi: "O impossível é possível, os loucos somos ajuizados".

Transcorridas algumas décadas, Fidel teve também a intuição da grande importância não somente do exemplo de Marti, mas igualmente da contribuição originai que o seu pensamento criador poderia trazer à ideologia da revolução com que sonhava. Em algumas das cartas que escreveu do Presídio da Ilha de Pinos transparece a consciência do significado dessa ponte contraditória, ou seja, da complementaridade dialética da teoria de Marx e da obsessão ética, de matriz idealista, de Martí.
Atualmente, o aprofundamento dos estudos sobre a contribuição do pensamento martiano para a especificidade do socialismo em Cuba levou ao reconhecimento de evidências que há poucos anos eram ainda recusadas mesmo em setores influentes da direção do Partido cubano.

Nesse período, quando a teorização de ideólogos da Academia das Ciências da URSS pesava muito, a expressão marxismo martiano suscitava reparos. Para alguns soava a heresia. No mínimo, aqueles que a utilizavam apareciam como levianos.

Sem contestarem o valor da obra de Marti e a dimensão do herói, professores sem imaginação, repeti dores de conceitos rígidos da má historiografia soviética, identificavam em José Martí um "democrata revolucionário" cujo idealismo filosófico não podia ser transposto para o presente por colidir com princípios o materialismo dialetico. Tal atitude envolvia uma visão redutora da história.

A fundação em 1977 do Instituto de Estudos Martianos (5) representa um sério revés para o grupo sectário que em Cuba,se esforçava por implantar modelos soviéticos na área da Cultura e das Ciências Humanas em gerai, com especial ênfase na Universidade.
Mas somente em 1985, quando a Retificação tomou a iniciativa de denunciar publicamente os efeitos nefastos dessa mentalidade e dos comportamentos dela decorrentes, pôde assumir amplitude o debate sobre a complexa e rica contribuição de Marti para o ideário da Revolução.

As ciências sociais renasceram e os estudos históricos retomaram então o curso de que haviam sido desviados no início dos anos 70, quando, no dizer de Jorge Ibarra, a Faculdade.de História da Universidade de Havana passou a ser dominada peio espírito de uma escola de quadros com visão monolítica da história.

A visão de Martí e a compreensão de que seu pensamento se constitui em fonte permanente de ideologia para a revolução iniciada peia geração do centenário – e para outras revoluções no terceiro mundo – foi prejudicada, no período a que nos referimos, pela cegueira dos cultores cubanos do dogmatismo subjetivista, desvio do marxismo, analisado por Lukacs. Os que viam nele apenas um democrata revolucionário e um grande escritor humanista esqueciam o contexto histórico e revolucionário em que se moveu o fundador do Partido Revolucionário Cubano.

Os mesmos intelectuais identificavam em Antonio Guiteras apenas um político nacional-reformista e nacional-revolucionário, utilizando uma terminologia então muito na moda Estranha cegueira histórica. Na realidade, Guiteras foi um continuador da eticidade revolucionária cubana. Os mal chamados "Cem Dias" do governo de Grau San Martin, quando Guiteras era secretário de Gobernación, configuraram mais um desses desafios à lógica aparente da história que tanto seduzem os revolucionários cubanos. Entre 10 de setembro de 1933 e 14 de janeiro de 1934, Guiteras fez aprovar um feixe de legislação que, pelo seu caráter progressista, comoveu a América Iatina e alarmou os Estados Unidos. Bons exemplos foram os decretos que criaram a jornada de oito horas e o salário mínimo, estabeleceram a redução das tarifas de eletricidade e a recusa de pagamento da dívida ao Chase Manhattan Bank, confiscaram as terras ilicitamente na posse dos heróis da ditadura e determinaram a sua distribuição a pequenos e médios agricultores. Importante também foi a dissolução dos velhos e apodrecidos partidos políticos.

A resposta imperial não se fez esperar. Uma esquadra americana apareceu em águas cubanas. O governo de Roosevelt, por muito liberal que fosse na política interna, não podia se conformar com o mau exemplo oferecido. Cuba pretendia governar-se como país autônomo, repudiando através de uma política o estatuto de semicolônia imposto pela ordem norte- americana para o hemisfério. E, para cúmulo, o desafio provinha de um jovem ministro de 27 anos que empolgava as massas com um discurso de contornos moralizadores. O presidente Grau, político dócil, intrinsecamente conservador e formado pelo sistema, capitulou perante as pressões de Washington: renunciou.
A memória e a lição de Martí, em vez de se apagar, cresceram com o rodar dos anos, com o acúmulo da miséria e da opressão e com o reforço do controle imperial.

No início dos anos 50, Havana ajustava-se à imagem que dela apresentava Hoiiywood: cassino e bordel dos turistas americanos endinheirados. A corrupção alastrava como lava a escorrer da cratera de um vuicão. Batista governava como déspota, mas, nas áreas econômicas, não tomava uma decisão sem antes consuitar o embaixador norte-americano.

Foi nessa atmosfera que um grupo de jovens, a vanguarda da geração do centenário, concebeu e ievou adiante um ato de contornos quixotescos, cujas probabiiidades de êxito, à partida, eram mínimas. Esse ato foi o assaito ao Quartei de Moncada, em Santiago. Militarmente, o objetivo não foi atingido. Os atacantes caíram em combate, foram assassinados posteriormente ou submetidos a julgamento e condenados a pesadas penas.

Fracasso miiitar, Moncada teve, contudo, uma repercussão política mundial. Fez história e entrou na memória dos povos iatino-americanos.

Dirigindo-se ao tribunai da ditadura, que o condenou, Fidei fez da sua defesa inventário e programa.
Há alguns anos tive a oportunidade de percorrer demoradamente a parada de todo o velho edificio de Moncada Estive na saia onde Fidel pronunciou o discurso 'A história me absolverá' – que funcionou de guia para a ação revolucionária. Ali, entre as paredes do antigo hospital-caserna do exército colonial da Espanha oitocentista, senti aquilo que os livros dificilmente podem transmitir. A atmosfera toma o desafio mais próximo, facilita a compreensão da forma e do conteúdo do repto do jovem revolucionário e dos seus companheiros. Aquilo que na Europa nos parece adjetivo ganha em Moncada densidade substantiva; a hipérbole desfaz-se ao descer ao solo vermelho de Cuba, o espaço histórico reduz-se e os atos dos homens aparecem ligados por pontes mal conhecidas.

"No Oriente [afirmou então Fidel Castro] ainda se respira o ar da epopéia gloriosa e, ao amanhecer, quando os galos cantam como clarins a tocar a alvorada chamando os soldados, e o Sol sobe radioso sobre as abruptas montanhas, cada dia parece que vai ser outra vez o de Yara ou o de Baire."
As referências à insurreição de 1868 e ao grito de independência de 1895 são apenas prólogo da atribuição a José Marti do ato revolucionário que o faz responder a ele, Fidel, no banco dos réus. O herói nacional é, afinal, o autor intelectual de Moncada. O desafio, repetido à lógica aparente da história, vem, mais uma vez, da tradição ética e revolucionária do século XIX.

A primeira iniciativa política; do jovem Fidel antes de Moncada, logo após o golpe de Estado de Batista, em 10 de março de 1952, foi de caráter jurídico. Acusando o ditador de haver praticado um crime merecedor de mais de cem anos de cadeia, advertiu: "Sem uma concepção nova do Estado, da sociedade e da ordem jurídica, com base em profundos princípios históricos e filosóficos, não teremos uma Revolução que produza Direito".

A opinião era válida. Mas deixa transparecer uma atitude de ingenuidade, aquela ingenuidade que, após a derrota da ditadura, levou Fidel a acreditar que Urrutia, que para ele era a imagem do Direito, poderia ser um Presidente capaz de se colocar ao serviço da revolução social que apenas começava.

Mas todo o esforço para tentar compreender o Fidel dos anos 50 em função da sua obra posterior poderia levar a conclusões arriscadas. Fidel era de uma sinceridade absoluta ao afirmar já então as suas convicções marxistas. Mas faltava-lhe a experiência que a vida lhe proporcionou como protagonista decisivo na vitória, no desenvolvimento e na defesa de uma grande revolução. Foi essa experiência, sobretudo, que lhe deu outro entendimento da história e dos fenômenos econômicos e sociais.

Ainda na Sierra, combatendo – vencer era o seu primeiro objetivo -, estava longe de imaginar que, empurrada pelos acontecimentos e peia agressividade do imperialismo, a Revoiução Cubana viria a ser um laboratório de criatividade marxista, rompendo a tendência para a estagnação e o dogmatismo que, também no tocante à ideologia, corroía os alicerces do socialismo na União Soviética.

Paradoxalmente, a fidelidade ao universo ideológico martiano, inseparável de um idealismo romântico exacerbado, terá sido determinante para a excepcionalidade revolucionária cubana e para um complexo processo de osmose que está na origem de uma práxis que enriqueceu o marxismo.

Tudo foi lento. Há quarenta anos o idealismo pesava mais do que a assimilação do materialismo histórico. Três dias antes do assalto a Moncada, num manifesto dirigido à nação, os jovens do movimento invocavam a necessidade de "prosseguir a revolução inacabada que Céspedes iniciou em 1868, Martí continuou em 1895 e Guiteras e Chibás atualizaram na época republicana". E mais adiante: "A Revolução declara o seu amor e a sua confiança na virtude, na honra e no decoro do homem".

Os futuros heróis eram poetas da Revolução. Preparavam-se para morrer por um ideal entoando cânticos à vida.
A derrota de Moncada não quebrou nem a esperança nem o estilo do punhado de sobreviventes.
Fidel, no tribunal da farsa, diria:

"Para os meus companheiros mortos não reclamo vingança. Como as suas vidas não tinham preço, não poderão pagá-las com as suas todos os criminosos juntos. Não é com sangue que podem pagar-se as vidas dos jovens que morrem pelo bem do povo; a felicidade desse povo é o único preço digno que se pode pagar por elas".

Nas palavras de “A história me absolverá” identificam alguns analistas a opção marxista de Fidel. Mas na exegese do texto forçam o seu conteúdo. Pelo que fez e é, Fidel não precisa de que antecipem a história, transmutando-a. A história me absolverá é sobretudo uma peça ética e épica, o epílogo natural do desafio de Moncada e o prólogo de um futuro desafio. E em Martí e nos clássicos gregos, e não em Karl Marx, que se pode encontrar o precedente e o espírito.

A prisão enriqueceu muito Fidel. Saiu dela com uma mundividência diferente. Mas nem o sentido do combate nem a eticidade mudaram. Ao deixar Cuba em 7 de julho de 1955, a sua mensagem era uma reafirmação de fidelidade ao projeto dos revolucionários que rejeitavam a idéia do impossível: "Penso, como martiano, que chegou a hora de tomar direitos, e não de pedi-los; de arrancá-los, em vez de mendigá-los". E, retomando o discurso de Martí sobre Bolívar, assumiu o compromisso: "De viagens como esta não se regressa, ou se regressa com a tirania esfacelada aos pés!".

Cumpriu. Em 2 de dezembro do mesmo ano, desembarcava em terra cubana, com nove dezenas de companheiros, do iate Granma, procedente do porto mexicano de Tuxpan.
Era o começo de uma guerra inimaginável através da qual um punhado de guerrilheiros levaria adiante façanhas que superam os feitos de Xenofonte e seus companheiros na travessia do Império Persa. Muitos deram força de evidência à afirmativa de Melia, velha de trinta anos: "até depois de mortos somos úteis".

O desembarque foi um desastre. Esperados pela soldadesca de Batista, os expedicionários foram massacrados. Fidel não desesperou. Perante os poucos sobreviventes que escaparam afirmou, indomável: "Ganharemos a guerra; vamos começar a luta!".

Incontáveis vezes os homens da guerrilha, romanticamente auto-intitulados de Exército Rebelde, repetiram as palavras de Martí segundo as quais "a guerra revolucionária é um fato moral e os seus meios devem ajustar-se aos fins".

Finalmente, derrotaram o exército de Batista equipado pelos Estados Unidos. Não houve tanques, nem canhões, nem aviões capazes de levar a melhor contra tal gente.
Aquela guerra foi um absurdo, um repto ao racional, um desmentido à lógica da história que não voltaria, em circunstâncias similares, a repetir-se. A cordilheira dos Andes, contrariamente ao que previu o Che, não se transformou (era impossível) na Sierra Maestra da América latina A generosa aventura iniciada em Nancahuazu, na Bolívia, teve um desfecho trágico que fez desvanecer a esperança utópica.

A guerrilha voltou na América latina a ser retomada com resultados contraditórios. Mas fracassou quando concebida como núcleo de uma estratégia orientada para a tomada do poder. O êxito somente chegou em situações como a da Nicarágua, em que a guerrilha rural foi uma forma de luta complementar de outras.

Hoje, transcorridos quase quarenta anos do desembarque do Granma, historiadores e cientistas políticos começam a admitir, na Europa e nos Estados Unidos, que o idealismo martiano foi, afinal, fator determinante para o êxito da Revolução Cubana. Se os expedicionários do Granma, ao embarcar em Tuxpan, ao procurar refúgio na Sierra Maestra após a chacina de Alegria del Pio não acreditassem que a guerra é um "fato moral", não poderiam ter derrotado o impossível.

Martí dizia que o importante não é a quantidade de armas disponíveis, mas o número de estrelas em frente dos combatentes. Fidel, pelo Seu lado, foi qualificado de irresponsável quando, em 1989, afirmou que, se a União Soviética viesse um dia a desagregar-se e o socialismo acabasse na Europa, Cuba resistiria e, mesmo sozinha, encontraria forças para defender o socialismo.
A União Soviética desagregou-se e tornou-se capitalista. E Cuba resistiu e resiste.

Bolívar teve a percepção de que a República Norte-Americana viria, com o passar dos anos, a constituir um forte obstáculo para a unidade das antigas colônias da Espanha. A grande potência mundial era então a Inglaterra, mas o vencedor de Carabobo y Junín desconfiava da política sinuosa dos Estados Unidos, que haviam criticado as teses pan-latinas defendidas no Congresso do Panamá, e não faziam segredo das suas ambições anexionistas relativamente a Cuba. Foi Martí, entretanto, o primeiro revolucionário da América Latina a identificar no nascente imperialismo americano o grande inimigo dos povos do continente.

Inicialmente impressionado pelos aspectos formais da democracia norte-americana, Martí percebeu rapidamente não somente a natureza desumanizada e agressiva do capitalismo como também o perigo que a política expansionista dos EUA representava para as débeis nações latinas do Sul.
Na sua carta a Gonzalo de Quesada, escrita cinco anos antes da guerra de 95, Martí antecipava a história das agressões norte-americanas:

"Sobre a nossa terra, Gonzalo, há outro plano mais temeroso do que tudo o que até agora conhecemos e que é iníquo: pressionar a Ilha, precipitá-la na guerra para ter o pretexto de intervir nela e, com o crédito de mediador e de garante, ficar com ela" (7).
Era tão forte, tão obsessiva a preocupação de Martí com a ambição imperial dos Estados Unidos que dias antes de ser abatido pelas balas espanholas em Dos Rios escreveu ao seu amigo Mercado: "Vivi no monstro, conheço-lhe as entranhas e a minha funda é a de David".
A advertência não foi esquecida. Meses antes de entrar em Havana sob as aclamações do povo, Fidel escreveu a Célia Sanchez:

"Quando esta guerra acabar principiará para mim uma guerra muito mais prolongada e ampla: a guerra que vou travar contra eles. Dou-me conta de que esse será o meu verdadeiro destino".
Era correta essa percepção do futuro. O desenvolvimento da história confirmou que sem a consciência lúcida da ameaça latente representada pela política do imperialismo, sem a fidelidade atenta e severa a uma eticidade que encontra em Martí a fonte e o modelo, os dirigentes da Revolução Cubana não teriam podido responder vitoriosamente aos desafios quase sobre-humanos que assumiram. Sem a convicção aparentemente não racional de que está ao seu alcance infletir o rumo da história, contrariando-lhe o que parece ser a sua lógica, e sobrepondo-se à vontade estratégica da potência mais poderosa do planeta, o povo cubano não estaria resistindo com firmeza ao bloqueio mais prolongado e cruel que a história registra.

Os nomes não fazem a ideologia. Durante décadas o movimento comunista mundial perdeu excessivo tempo em debates estéreis em tomo de questões ligadas à nomenclatura das ideologias revolucionárias.
A importância das ideologias está naquilo que elas são como elemento de mudança social, nas marcas que deixam na história.

O objetivo aqui não é o de suscitar qualquer tipo de debate em torno da expressão marxismo martiano. O que me parece significante é o enorme peso do pensamento martiano no processo de elaboração gradual da ideologia da Revolução Cubana.

Os historiadores do século XXI, ao estudarem o fascinante percurso da Revolução Cubana na sua luta por afirmação e sobrevivência, certamente vão descer às raízes da contradição: o único país do Ocidente onde hoje um Partido Comunista no poder assume, com grande apoio popular, a herança do marxismo-leninismo é aquele cujos dirigentes revolucionários reivindicam simultaneamente, incorporando-a na teoria da práxis, a herança de uma concepção idealista e quase romântica da história, na qual o respeito pelos valores éticos é fundamental.

Os governantes e os acadêmicos soviéticos tiveram sempre dificuldade em entender muitos aspectos fulcrais da Revolução Cubana. O rumo seguido por ela não se amoldava ao modelo de socialismo já então pervertido existente na União Soviética. Contudo, a Revolução Cubana manteve sempre uma fidelidade maior aos princípios do marxismo-leninismo como teoria viva, dinâmica e dialética do que aqueles que a dogmatizavam e deformavam, erigindo-se em seus intérpretes exclusivos.
Agora, quando Cuba se bate pela humanidade inteira, creio que o significado da admiração dos cubanos por Martí começa a ser melhor compreendido em muitas universidades européias. A perseguição da utopia por Martí encontra continuidade na perseguição da utopia pelas gerações que se orgulham de ser filhas de mais bela revolução do nosso tempo.

MIGUEL URBANO RODRIGUES é jornalista e escritor, ex-deputado na Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa.

Notas
(1) In Memoirs of John Ouincy Adams. Nova York. (2) V A Doutrina Monroe. Miguel Urbano Rodrigues.
(3) Ese Sol dei mundo moral. Cintio Vitier. Ediciones Unión. Havana.
(4) Muitas dessas cartas foram reunidas em livro sob título Cartas de Ia Prisión.
(5) Hoje dirigido por Cintia Vitier.
(6) V Revista Temas. n. 1. Havana. 1995.
(7) In Marti e Estados Unidos. José 8enitez. Havana: 1983.

EDIÇÃO 41, MAI/JUN/JUL, 1996, PÁGINAS 15, 16, 17, 18, 19, 20