O povo brasileiro está indignado com o massacre dos trabalhadores rurais , em Eldorado de Carajás, no sul do Pará. Mais uma vez fica demonstrado o método das classes dominantes brasileiras no tratamento da questão agrária: a violência mais brutal. Em agosto do ano passado houve a chacina de Corumbiara, em Rondônia A sociedade também repudiou o fato, porém nada se apurou e não houve nenhuma alteração da política agrária do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro levou a que um grande número de intelectuais questionassem se a reforma agrária continuaria na ordem do dia. Se ela teria ainda algum sentido econômico. Francisco Graziano, em seu livro A tragédia da terra, afirma que "o capitalismo brasileiro, especialmente no Sul e Sudeste do país, avançou o suficiente para não mais permitir a existência de latifúndios improdutivos, deixando ocioso um meio de produção tão importante como a terra". E ao falar sobre o caráter da reforma agrária, afirmou que a distribuição de terras em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul só poderá ser pensada na hipótese de uma reforma agrária socialista, "na qual se propusesse a coletivização dos meios de produção".

No entanto, a vida tratou de refutar essas teses e a reforma agrária retorna, com força, ao cenário político nacional. São várias as razões que explicam tal retomo. Por um lado, a manutenção das amplas áreas de latifúndios improdutivos ou com baixa produtividade, apesar do desenvolvimento capitalista no campo. Por outro lado, os reflexos da política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso e as conseqüências sobre o Brasil do processo de globalização da economia mundial.

O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro é uma realidade

O desenvolvimento do capitalismo no campo tem se acelerado, particularmente a partir da década de 70. Houve um crescimento significativo da produção agrícola e da produtividade. Em 1975 o Brasil tinha 29 milhões e 239 mil hectares de área plantada e uma produção de 38 milhões e 368 mil toneladas de grãos. Já em 1989, com 39 milhões e 341 mil hectares de área plantada, o Brasil alcançou a safra de 70 milhões e 271 mil toneladas, atingindo, em 1994, 81 milhões de toneladas.

O desenvolvimento do capitalismo no campo foi acelerado pelo forte subsídio ao crédito agrícola. Tratava-se de estimular a produção para o mercado externo, através de subsídios sobretudo às grandes e médias propriedades agrícolas. Entre 1970 e 1980 o financiamento para propriedades até 99 hectares caiu de 38,65% para 34,4%, enquanto os financiamentos para propriedades de mais de 100 hectares subiu de 61,4% para 65,60/0, e para as propriedades de 1.000 a 9.999 hectares subiu de 15,6% para 20,3%. Entre 1980 e 1985 o Estado reduziu seus investimentos na agropecuária de 250 bilhões de cruzados para 124, em valores constantes. A conseqüência foi a queda da safra agrícola

Com o Plano Cuzado, os investimentos foram retomados e o resultado foi a supersafra de 1989 com 72 milhões de toneladas de grãos. A nova retração dessa política levou a outra queda na safra agrícola, que em 1990/1991 atingiu apenas 55 milhões de toneladas, obrigando o país a importar US$ 1,5 bilhões em grãos. O Pacote Agrícola de Collor veio para alterar essa situação, concedendo juros de 12% ao ano, enquanto os juros das indústrias estavam em 30%. A análise da evolução dessa política evidencia que quando o Estado investe na agricultura, assegurando maiores lucros, o setor se dinamiza, e quando isso não ocorre, ele se retrai.

Alguns indicadores mostram a aceleração do desenvolvimento capitalista a partir da década de 70 (Quadro 1). Enquanto em 1950 o país tinha 8.372 tratores, em 1970 possuía 175.769, em 1980 atinge 545.204 e em 1985 já possui 652 mil tratores.

Os dados mostram uma aceleração da mecanização da lavoura a partir de 1970, como conseqüência do processo da "modernização conservadora" da agricultura brasileira.

Outro fator indicativo da penetração do capitalismo no campo diz respeito ao uso de fertilizantes. Em algumas regiões o percentual de estabelecimentos agrícolas que usam fertilizantes ficou praticamente estacionado, como na região Norte, que em 1960 tinha '1,6% das propriedades que utilizavam fertilizantes e em 1980 4,2%. Já na Região Sul as propriedades que utilizavam fertilizantes subiram de 22,8 para 60,5% no mesmo período, na região Centro-Oeste de 6,4 para 40010. "tais dados mostram o desenvolvimento do capitalismo na região Sul e a celeridade do eu crescimento na região Centro-Oeste.

Portanto, a aceleração do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro é um fato. Hoje, existem setores da produção agrícola altamente desenvolvidos, com tecnologia modema, que estão ligados, através de computadores, com as bolsas de valores de todo o mundo.
Porém, se é fato que essa aceleração se eu a partir da década de 70, é falso afirmar ue inexistem no país latifúndios improdutivos.

O desenvolvimento capitalista no Brasil adotou o caminho do aburguesamento do latifúndio.

No debate sobre a reforma agrária surgiram erros teóricos que terminaram por confundí-lo. Os comunistas pregavam uma reforma agrária antilatifundiária, caracterizando o latifúndio brasileiro como expressão de restos feudais. Aí evidentemente há um erro do ponto de vista teórico: não existindo no Brasil feudalismo, não se poderia falar da existência de restos feudais. No entanto, o que se procurava trazer à luz do dia era a existência da coerção extra-econômica na apropriação do trabalho excedente.
Falando sobre isso, em seu livro Novos dados sobre as leis do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, Lênin afirmava que do ponto de vista econômico, nas condições da economia norte-americana, falar em restos escravistas tinha o mesmo significado econômico de falar em restos feudais. Ou se, havia em comum entre restos escravistas e restos feudais a coerção extra-econômica da apropriação do trabalho excedente. Apesar do erro teórico contido na afirmação da existência de restos feudais no Brasil, a análise da estrutura agrária indicava a necessidade : uma reforma agrária.
Caio Prado Jr. se colocou contra a formulação dos comunistas, afirmando, em seu livro A Revolução Brasileira, que as relações de produção predominantes em nossa agricultura sempre haviam sido capitalistas desde a colônia Ora, se a afirmação dos comunistas não era inteiramente correta, também não o era a afirmação de Caio Prado Jr., já que as relações de produção no Brasil Colônia eram escravistas-mercantis, e não capitalistas. O trabalho assalariado, a livre venda do trabalho como mercadoria, que é a característica fundamental do modo de produção capitalista, não estava presente no modo de produção daquela época.

O que havia de verdade na formulação de Caio Prado é que a produção do país se voltava para o mercado e se baseava em grandes unidades produtivas. Porém a conseqüência prática tirada de tal formulação era a de que a luta no campo deveria se voltar para a garantia dos direitos dos assalariados rurais, subestimando assim a questão da reforma agrária.

A afirmação de determinados setores de que a reforma agrária era condição sine qua non para o desenvolvimento brasileiro foi contestada pela prática Aliás, Lênin já falava, em seu livro O programa agrário, da existência de dois caminhos possíveis para o desenvolvimento do campo: "o caminho do tipo prussiano e o caminho do tipo norte-americano".

O primeiro é o caminho do aburguesamento do latifúndio "condenando os camponeses a decênios da mais dolorosa espoliação e do mais doloroso jugo", e o segundo é o caminho da reforma agrária, o caminho norte-americano. Todos os dois caminhos permitem um certo grau de desenvolvimento do país. Ocorre que o primeiro se dá com o aprofundamento da concentração da renda no campo e o agravamento das condições de vida dos camponeses. O segundo permite um desenvolvimento mais acelerado e mais harmônico do país, social e regionalmente.

Historicamente, o caminho brasileiro de desenvolvimento se deu através da grande propriedade, inicialmente através das sesmarias. Apesar da luta histórica dos setores democráticos e dos trabalhadores rurais pela reforma agrária, somente em momentos pontuais ela ganhou maior relevância como política de governo. Isso ocorreu principalmente durante o governo do Presidente João Goulart e durante o governo do Presidente Sarney, quando pela primeira vez se elaborou um Plano Nacional de Reforma Agrária. No Brasil as classes dominantes impuseram o caminho de aburguesamento do latifúndio, apesar da luta continuada dos trabalhadores e dos democratas pela realização de uma reforma agrária.

O desenvolvimento desigual do capitalismo no campo

Um fator que tem induzido certos estudiosos a chegarem a conclusões errôneas sobre o atual nível de desenvolvimento da agricultura no país é o estudo somente dos dados em nível nacional, sem uma análise mais apurada das particularidades regionais. Um exame mais profundo e científico irá demonstrar graus de desenvolvimento capitalista diferenciados, gerando conseqüências em relação à reforma agrária a se propor. (Ver Lênin, Novos dados sobre as leis do desenvolvimento do capitalismo na agricultura).

O caráter intensivo da produção agrícola é indicado pelo investimento capitalista realizado, que se expressa, entre outros fatores, na mecanização da lavoura, no uso de fertilizantes e no maior grau de utilização do trabalho assalariado.

Analisando o número de tratores utilizados nas diversas regiões do Brasil, constata-se que enquanto as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste detinham 19,76% do número de tratores existentes no Brasil, em 1980, somente as regiões Sul e Sudeste detinham 80,24%. E mais, somente São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná detinham 62,5% do total de tratores do país. É sabido que mesmo nesses estados há regiões onde o capitalismo é muito mais desenvolvido do que em outras. Nessa análise destaca-se a aceleração do desenvolvimento capitalista da região Centro-Oeste, que em 1970 tinha 10.250 tratores e em 1980 tinha 63.391.

Fator relevante para aferir o baixo grau de penetração capitalista diz respeito ao percentual dos estabelecimentos que usam somente a força humana Evidentemente, quanto maior a utilização da força humana, menor é o desenvolvimento capitalista. Em 1980, na região Sul, havia 17,1 % de estabelecimentos que somente usavam a força humana No Sudeste, 45,9%; no Centro-Oeste, 46, 1 %; no Nordeste, 69,3%; e no Norte, 93,0% (Quadro 2). Esses dados comprovam os diferentes graus do desenvolvimento capitalista, nas diferentes regiões do Brasil.

Outro elemento indicativo do grau de desenvolvimento capitalista é o uso de fertilizantes. Em 1980 somente 4,2% dos estabelecimentos da região Norte usavam fertilizantes, 15,7% no Nordeste, 40% na região CentroOeste, 56,4% na região Sudeste e 60,5% na região Sul (Quadro 2). Em 1980, somente em São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná localizavam-se 53,4% dos estabelecimentos que utilizavam fertilizantes químicos no Brasil

Certos produtos agrícolas têm vanguardeado o processo de desenvolvimento capitalista no campo brasileiro. A soja é o principal deles. Em 1975 o país produzia mais de 9 milhões e 800 mil toneladas desse produto. Já em 1993 produzia mais de 22 milhões e 700 mil toneladas. A produtividade da soja foi crescente, pois enquanto em 1975 tinha um rendimento de 1.699 kg/ha, em 1993 atingia 2. 138 kg/ha. O grosso da produção de soja no Brasil provém das regiões Sul e Centro-Oeste.

Também o milho cresceu em produção e produtividade. Enquanto em 1975 produziu mais de 16 milhões e 300 mil toneladas, com• produtividade de 1.505 kg / ha, em 1993 produziu mais de 29 milhões e 100 mil toneladas, com uma produtividade de 2.454 kg/ha. A produção de milho concentra-se principalmente nas regiões Sul e Sudeste.

Quanto a arroz e feijão, o quadro é completamente diferente. O arroz teve um pequeno aumento na produção e queda na área plantada Em 1975 o país produziu mais de 7 milhões e 700 mil toneladas de arroz, com uma produtividade de 1.456 kg/ha. Em 1993 a produção foi de mais de 10 milhões e 100 mil toneladas, com uma produtividade de 2.291 kg/ha. A grande produção de arroz no Brasil se situa na região Sul, e, em menor escala, na região Centro-Oeste.

No que se refere ao feijão, também houve uma queda na área plantada, com aumento insignificante na produção e na produtividade. Enquanto em 1975 o país produziu mais de 2 milhões e 300 mil toneladas, com rendimento de 551 kg/ha, em 1993 produziu mais de 2 milhões e 500 mil toneladas, com rendimento de 617 kg/ha. A maior produção de feijão está na região Sul, seguida do Nordeste. E importante destacar que num período de quase 20 anos a produção de feijão, produto de importância decisiva na mesa dos brasileiros, ficou praticamente estacionada.

Pela análise acima, fica evidente a prioridade da produção agrícola voltada para exportação, em detrimento da produção voltada para o mercado interno. A produção agrícola voltada para exportação se desenvolve de forma intensiva nas regiões Sul e Sudeste, e cresce no sentido do Centro-Oeste, registrando um grande aumento na produção e na produtividade. Já os produtos voltados para o mercado interno, principalmente o feijão, registram um crescimento insignificante, tanto na produção quanto na produtividade. Tais dados demonstram o desenvolvimento desigual do capitalismo no Brasil. Comprovam que, enquanto existem regiões do país com uma produção e produtividade bastante elevadas, existem extensas áreas com baixa produção e pequena produtividade agrícola.

Outro elemento importante para caracterizar o nível de desenvolvimento capitalista no campo brasileiro está relacionado ao trabalho assalariado. Em 1992, enquanto existiam 6.825.950 de assalariados, incluindo permanentes e temporários, havia apenas 371.1 09 parceiros e 183.725 arrendatários, e 5.345.581 dependentes de proprietários que trabalham no imóvel. Isso demonstra que as relações de trabalho assalariado características do capitalismo predominam largamente na agricultura brasileira.

No entanto, vale ressaltar que entre os assalariados temporários- 5.288.284 – parte ponderável é de camponeses proletários, no dizer de Karl Kautsky. São camponeses que trabalham por algum período como assalariados agrícolas e que nessa condição aspiram à posse da terra Também entre os dependentes de proprietários de imóveis, que são mais de 5 milhões e 300 mil, há um contingente significativo que tem a mesma aspiração.

A coerção extra-econômica ainda está presente nas relações de trabalho no campo brasileiro, através do trabalho escravo. Isso demonstra que o capitalismo utiliza relações sociais atrasadas para extrair o trabalho excedente.

O grau de aproveitamento das terras, por região, é um fator decisivo para indicar
a diferenciação do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro

Enquanto no Brasil exploram-se 45,80% da área total, deixa-se de explorar 35,98%. Isso significa um grau,de ociosidade das terras bastante elevado. E evidente que se pode questionar as estatísticas. Sabe-se, inclusive, que há contradições entre os dados do INCRA e do IBGE. De qualquer forma, o fato é que no país há uma grande ociosidade das terras, comprovada não só pelos dados estatísticos, mas também pelo conhecimento da realidade concreta

Esses dados em geral são subestimados, no sentido de maquiar a situação financeira do Brasil e de criar obstáculos ao processo da reforma agrária. Mesmo assim eles revelam que nas regiões onde há um maior desenvolvimento capitalista há também um maior grau de exploração das terras, enquanto nos estados com menor desenvolvimento capitalista há uma maior ociosidade das terras. Essa diferenciação se dá por regiões, por estados, e dentro dos estados. Mesmo em estados com desenvolvimento capitalista mais avançado, como São Paulo, há regiões, como o Vale do Paranapanema e outras, onde está presente a ociosidade das terras.

Segundo dados do INCRA, a área total do Brasil era de 639.026.991 de hectares, em 1992, dos quais 452.818.567 eram aproveitáveis e 185.056.806 áreas aproveitáveis não exploradas (Quadro 3). Aqui reside um dos graves problemas da estrutura agrária brasileira Isso equivale a dizer que 40,9% da área aproveitável do Brasil simplesmente não é explorada, num indicativo evidente de que ao lado de existir um desenvolvimento capitalista no campo brasileiro existem enormes extensões territoriais totalmente improdutivas.

A ociosidade das terras aumenta com o crescimento do tamanho da propriedade. Enquanto as propriedades com menos de 10 hectares deixam de explorar 25% de suas terras, as de mais de 100 mil hectares deixam de explorar 72,72%, o que evidencia que no Brasil a grande propriedade se transforma em elemento especulativo, em reserva de valor, deixando de cumprir as suas funções específicas no processo produtivo.

Se é verdade que o grau de ociosidade das terras é maior nas regiões Norte, Nordes-
te e Centro-Oeste, há também ociosidade nas regiões Sul e Sudeste. Na região Sul a ociosidade é menor, e as terras não exploradas representam 13,83 % da área aproveitável, enquanto na região Sudeste a ociosidade das terras aproveitáveis é de 19,10%. Nessa região existem mais de 9 milhões de hectares de terras aproveitáveis não exploradas em propriedades de 100 a menos de 10.000 hectares. Portanto, a afirmação de Francisco Graziano de que "o capitalismo brasileiro, especialmente no Sul e Sudeste do país, avançou o suficiente para não permitir a existência de latifúndios improdutivos" não corresponde à realidade.

A ociosidade é bastante maior nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte. Na região Centro-Oeste, 38,97% da área aproveitável não é explorada, sendo que quase 50% desse total se refere a propriedades de 1.000 a menos de 10.000 hectares.

Na região Nordeste existe uma grande parcela de área aproveitável não explorada, 52,04% do total da área aproveitável, sendo que 2/3 desse total estão em propriedades de 100 amenos de 10.000 hectares. E na região Norte que se encontra a maior parcela de área aproveitável não explorada – 61,91 %.

A ociosidade das terras noBrasil ganha maior dimensão quando se sabe que, além de extensas áreas não exploradas, existem áreas com baixo grau de aproveitamento.
A FAO, em um relatório sobre a situação da agricultura brasileira, afirma que ou o Brasil aumenta sua área plantada em 60% ou tem que aumentar sua produtividade nesse mesmo índice, caso contrário o país será um grande importador de alimentos.

Fala-se muito no crescimento da produção de grãos no Brasil. Para se ter uma idéia do que significa nossa produção comparada com a de outros países, basta lembrar que a China, cuja área plantada é o dobro da nossa, produz quase sete vezes mais que o Brasil, com uma produção anual de 450 milhões de toneladas de grão.

A verdade é que parcelas importantes do território brasileiro são mantidas como reservas de valor. Falando sobre o assunto, o professor Ladislau Dowbor afirmou que "a maior parte das terras agrícolas do país é utilizada como reserva de valor dos grandes proprietários, que preferem imobilizar grandes áreas e esperar que se valorizem, por efeito de investimentos públicos e privados de terceiros, a desenvolver atividades produtivas. Essa situação é em geral mal disfarçada pelo que se tem chamado pudicamente de "pecuária extensiva".

Ao analisar as estatísticas sobre as áreas com lavoura no Brasil, tal afirmação fica cabalmente comprovada. Enquanto as propriedades de menos de 10 hectares têm 65,46% de sua área lavrada, as de mais de 10 mil hectares destinam apenas 2,31 % para agricultura. Por outro lado, enquanto as propriedades de até 10 hectares têm 2,7% de sua área destinada a estabelecimentos agropecuários, as de mais de 10 mil hectares têm 43,7% destinados para o mesmo fim. Isso equivale a dizer que as pequenas e médias propriedades se voltam fundamentalmente para a produção agrícola, e as grandes propriedades, para a pecuária extensiva

Uma questão importante a se discutir sobre a ociosidade das terras diz respeito à produtividade agrícola. Na Assembléia Nacional Constituinte, a UDR defendeu a idéia de que as terras produtivas não devam ser objeto de reforma agrária, considerando terra produtiva toda aquela que produza alguma coisa

O advogado Fábio de Oliveira Luchesi, especialista em Direito Agrário, que defende o mesmo ponto de vista, afirma que "se a produtividade é fator de imunidade à desapropriação, para o imóvel produtivo não é possível a imposição de nenhuma exigência, quer quanto ao seu grau de utilização da terra quer quanto à sua dimensão". Tal formulação é absurda, pois entra em conflito com a Constituição, que diz que a função social é cumprida quando há um aproveitamento racional e adequado da propriedade. A Instrução Normativa do INCRA, de 3 de dezembro de 1993, define como racional e adequado o aproveitamento do imóvel que atinja 80% de Grau de Utilização da Terra (GUT) – relação percentual entre área efetivamente utilizada e área aproveitável do imóvel- e 100% de Grau de Eficiência na Exploração (GEE).

A tentativa de tratar de forma isolada a questão da propriedade produtiva da função social da propriedade visa, na realidade, impedir qualquer iniciativa relacionada à reforma agrária. Essa é a posição dos latifundiários e dos setores mais conservadores da sociedade brasileira.
A verdade é que parte significativa da área agricultável brasileira não tem sido objeto de exploração agrícola e tem ficado como reserva de valor, representando um fator de atraso no desenvolvimento da agricultura brasileira.

José Ricardo Cardoso de Melo, em seu texto 'Teoria do desenvolvimento da agricultura e o capital financeiro afirma que "no Brasil, apesar das transformações modernizadoras, o processo de industrialização da agricultura não se concretizou, pois não subordinou a propriedade da terra à lógica do capital, transformando a produção em atividade compulsória".

Concentração da propriedade da terra

A contradição entre a grande concentração da propriedade da terra no Brasil e a existência de um grande número de trabalhadores sem terra é a razão principal da luta pela reforma agrária. De um lado existem mais de 185 milhões de hectares de áreas aproveitáveis e não exploradas, além de extensas áreas de terras com baixa produtividade; de outro, existem 4,8 milhões de famílias de trabalhadores sem terra.

Essa situação é a herança do modelo de desenvolvimento adotado no Brasil. Desde o início do processo de colonização o desenvolvimento do país se deu com base na grande
propriedade, nas plantations de cana-deaçúcar e nos grandes latifúndios pecuários.

O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro não liquidou o latifúndio, mas levou parcelas importantes ao aburguesamento, ou seja, à introdução de métodos capitalistas na exploração agrícola O Estado jogou papel decisivo nesse modelo de "modernização conservadora", subsidiando fortemente o crédito agrícola e introduzindo outras formas de subsídios à agricultura, particularmente aos médios e grandes proprietários.

Analisando a evolução da estrutura agrária no período que vai de 1966 a 1992, percebe-se uma concentração da propriedade da terra (Quadro 4). Enquanto em 1996 as propriedades com menos de 100 hectares detinham 20,4% da área total, em 1992 detinham apenas 17,18%. As propriedades com mais de 1.000 hectares, que em 1966 detinham 45,15% da área total, em 1992 detinham 52,03%.
Tais dados indicam que o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ao invés de reduzir a concentração da propriedade, aumentou-a. Isto não só porque a produção de soja conduziu a esse processo, ~ mo também pela ocupação de novas áreas através de grandes propriedades de 50 mil até mais de 1 milhão de hectares.

A brutal concentração da propriedade da terra no Brasil fica evidenciada com os dados de 1992, onde aproximadamente 1 milhão de imóveis com menos de 10 hectares detêm o controle de 1,4% da área total, enquanto, no outro extremo, apenas 75 imóveis detêm o controle de 7,3% (Quadro 6).
O absurdo da concentração da propriedade é ressaltado também na situação em que 86% dos imóveis de menos de 100 hectares detêm o controle de 17,9% da área total, enquanto 1,4% dos imóveis demais de 1.000 hectares detêm o controle de 50% do total da área

Tais dados refletem o elevadíssimo grau de concentração da propriedade agrária no país. Conforme a FAO, o Brasil é o segundo país do mundo em concentração da propriedade da terra, vindo depois do Paraguai.

A lista constante do Quadro 5 mostra os maiores proprietários de terras do Brasil sendo que existem 7 com mais de 1 milhão de hectares e 9 com mais de 500 mil hectares.. Enquanto esses 20 proprietários detêm o controle de mais de 20 milhões de hectares, quase I milhão de pequenos proprietários detêm o controle de pouco mais de 4 milhões e 600 mil hectares. O paulista Aparecido Dotto, que aparece na lista com 671 mil hectares, declarou à revista Veja, em 1993, que, na realidade, tem 2,1 milhões de hectares.

Recentemente a revista Veja anunciou a compra, pelo empreiteiro Cecílio do Rêgo Almeida, dono da Construtora CR Almeida, de uma propriedade de 4 milhões de hectares no município de Altamira-Pará, área superior a dois El Salvador ou a dois estados de Sergipe.

A concentração da propriedade da terra varia por região. Na região Norte as propriedades de até 100 hectares representam 61,6% do total dos imóveis e detêm apenas 6,4% da área total. Já as propriedades de mais de 1.000 hectares detêm 5,4% dos imóveis e controlam 75,6% da área total. Essa região detém o grau máximo de concentração de propriedade da terra no Brasil (Quadro 6).
Na região Centro-Oeste, enquanto as propriedades de até 100 hectares detêm o controle de 55,6% dos imóveis e ocupam uma extensão de 4,4% da área total, as propriedades de mais de 1.000 hectares representam 9% do total dos imóveis e têm 70,1 % da área total. É a segunda região de maior concentração da propriedade da terra no Brasil.

Na região Nordeste, as propriedades de menos de 100 hectares detêm 86,3% dos imóveis e 23,4% da área total, e as propriedades de mais de 1.000 hectares controlam 0,9% dos imóveis e detêm 36,5% da área.

Na região Sudeste as propriedades de até 100 hectares detêm o controle de 86,5% dos imóveis e uma área de 28,5%; e os imóveis de mais de 1.000 hectares detêm 9,7% dos imóveis e 25,2% da área.
Na região Sul as propriedades de até 100 hectares detêm 84,2% dos imóveis e controlam 43,5% da área, e as propriedades de mais de 1.000 hectares detêm 0,3% dos imóveis com o controle de 19,1 % da área.

Tais dados revelam uma maior concentração das propriedades nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e uma menor concentração na região Sudeste e principalmente na região Sul. Tal situação decorre do processo histórico de formação econômica da região Sul, que enfatizou o papel da pequena propriedade no seu desenvolvimento. A análise dos dados indica que há uma relação entre uma maior concentração de propriedade e um menor grau de aproveitamento das terras: quanto maior o grau de desenvolvimento do capitalismo, maior o nível de aproveitamento das terras e menor o grau de concentração.

Lênin, em seu livro Novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, afirma que "o monopólio da propriedade da terra freia e retarda o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, sendo, portanto, diferente da indústria nesse aspecto". Diz também que "o exemplo da América do Norte nos mostra quão imprudente seria confundir os latifúndios com a agricultura capitalista em grande escala, e que com freqüência o latifúndio é uma sobrevivência das relações pré-capitalistas escravistas, feudais e patriarcais".

Na verdade, há que se fazer uma diferenciação entre a grande propriedade e a grande produção que caracteriza o capitalismo. E possível haver uma grande produção numa pequena propriedade com alto grau de investimento capitalista e uma grande propriedade com pequena produção.
No Brasil, os dados indicam como regra geral que a grande propriedade detém uma pequena produção. E esse é um fator de atraso para o país. E evidente que existem também grandes propriedades com grande produção. Mas essa não é a regra predominante no Brasil.

Política agrícola do governo federal

A política econômica de altos juros do Presidente Fernando Henrique Cardoso tem deslocado os recursos das atividades produtivas para a especulação, conduzindo o país à recessão econômica.
A absolutização do combate à inflação fez com que o governo contivesse o preço dos produtos agrícolas, conduzindo ao endividamento do setor, principalmente dos pequenos e médios proprietários. A conseqüência disso foi a queda da produção e a redução da área plantada.

Em 1994, o país produziu 81 milhões de toneladas de grãos, e em 1995 a produção caiu para 71 milhões de toneladas. Como resultado, teremos de importar alimentos que custarão 3 bilhões de reais aos cofres públicos. E o desemprego no campo deverá atingir de 460 a 890 mil trabalhadores rurais.
A inadimplência dos pequenos e médios produtores levou-os a venderem suas terras para o pagamento das dívidas, caracterizando um processo de desassentamento, ou seja, uma reforma agrária ao contrário.

Ao lado das conseqüências dessa política econômica, a agricultura brasileira enfrenta os problemas decorrentes da integração do Brasil no Mercosul. A importação de muitos produtos agrícolas com preços inferiores aos praticados no Brasil tem criado sérios problemas para produções como as do alho e do milho.

A crise da agricultura brasileira, o desemprego no campo e a venda de um grande número de pequenas e médias propriedades aprofunda a luta pela posse da terra. O crescimento do número das ocupações é indicativo das conseqüências da crise econômica sobre a estrutura agrária brasileira. Contestando as formulações teóricas de alguns analistas, a realidade objetiva coloca na ordem do dia a reforma agrária.

Política agrária do governo federal

Nos últimos 30 anos foram assentadas 300 mil famílias de trabalhadores rurais. Nos últimos 10 anos houve um tímido crescimento no número de assentados.
Como existem no Brasil 4 milhões e 800 mil famílias que necessitam ser assentadas, a continuar nesse ritmo de uma média de assentamentos de 10 mil famílias por ano, a reforma agrária consumiria 360 anos para se concretizar.

A política agrária do Presidente Fernando Henrique não corresponde à gravidade e urgência do problema. Sua política se propõe a assentar 280 mil famílias em 4 anos. Nesse ritmo seriam necessários mais de 70 anos para completar a reforma agrária.

A prova mais cabal de que o governo Fernando Henrique, apesar de falar em reforma agrária, não dá a esse tema prioridade alguma está no fato de que o NCRA pleiteou 3,2 milhões de reais e o Orçamento destinou apenas 1,4 bilhões de reais, recursos diluídos em várias rubricas que nada têm a ver com a reforma agrária Do total de recursos destinados ao NCRA em 1996, prevê-se apenas 494 milhões de reais para o pagamento de indenizações por desapropriação- 94 milhões em dinheiro e 400 milhões de Títulos da Dívida Agrária – TDAs. Para se perceber a insignificância desses recursos, basta lembrar que somente em novembro do ano passado o governo destinou 6,8 bilhões de reais para o banco Nacional. E para o Proer destinará, no mínimo, 15 bilhões de reais. Tais dados revelam que a prioridade está no sistema financeiro, e não na reforma agrária

A luta pela reforma agrária no Brasil

No Brasil a reforma agrária tem enfrentado enormes obstáculos, não somente dos latifundiários, mas da própria burguesia brasileira que, com seus vínculos históricos com o latifúndio, termina por se colocar contra a reforma agrária Por isso mesmo, os governos, a Justiça e o Parlamento, que representam esses interesses de classe, criam obstáculos para a realização da reforma agrária.
Em momentos determinados na vida política brasileira certos governantes, como os Presidentes João Goulart e José Sarney, procuraram colocar a reforma agrária na ordem do dia, encontrando violenta reação dos latifundiários.

No período que antecede o golpe militar de 1964, a luta pela reforma agrária no Brasil ganha grande dimensão com o crescimento da influência das Ligas Camponesas.

A Constituição de 1946 determinava que a indenização das terras desapropriadas deveria ser feita em dinheiro, o que tomava impossível a realização da reforma agrária. Uma das bandeiras defendidas pelo Presidente João Goulart e pelos defensores da reforma agrária era a aprovação de Emenda Constitucional que permitisse a desapropriação de terras para fins de reforma agrária, com Títulos da Dívida Agrária pagáveis no prazo de 20 anos.

O governo João Goulart criou a Superintendência de Política de Reforma Agrária (SUPRA) e editou um decreto desapropriando as terras às margens das rodovias. Os latifundiários se armaram e terminaram por paralisar essa tentativa incipiente de reforma agrária, sendo ela uma das causas do golpe militar de 1964.

Após o golpe militar, foi editado o Estatuto da Terra, onde se garantia a desapropriação com o pagamento de Títulos da Dívick Agrária Todavia esse instrumento foi congelado. Longe de colocar em prática a reforma agrária, o regime militar adotou a política de "reordenamento de ocupação da Amazônia". privilegiando os grandes empreendimentos agropecuários com a venda de lotes de 50 mi: hectares. Para estimular essas compras, a ditadura isentava em 50% do imposto de renda as empresas que adquirissem terras no Norte e Centro-Oeste do país.

Com o fim do regime militar, o Presidente eleito Tancredo Neves assumiu o compromisso de concretizar a reforma agrária. Seu falecimento levou o Presidente José Sarneya colocarem prática o Plano Nacional de Reforma Agrária, que previa o assentamento de 1 milhão e 400 mil famílias em 4 anos. Foi a primeira vez que se elaborou um plano de reforma agrária com essas dimensões.
A reação dos latifundiários não tardou. Desencadearam um processo de mobilização contra a reforma agrária, de armamento dos latifundiários e da criação da famigerada União Democrática Ruralista – UDR. Nesse período cresceu a violência no campo e o número de assassinatos de trabalhadores rurais e lideranças ligadas à questão da reforma agrária

A violência dos latifundiários e a impunidade dos crimes cometidos permeiam toda a história de lutas pela reforma agrária no Brasil. Os latifundiários contratam'capangas, organizam milícias armadas e, mais recentemente, contratam as chamadas empresas de segurança, contando com a conivência ou omissão dos governos e das Polícias Militares na repressão aos trabalhadores rurais.
Na Assembléia Nacional Constituinte, a UDRfez uma ampla mobilização envolvendo inclusive os pequenos e médios proprietários na luta contra a reforma agrária. Esse envolvimento se dava sob o falso argumento de que a reforma agrária se voltava contra qualquer tipo de propriedade rural.

Com o objetivo de impedir essa manipulação política dos latifundiários, os setores progressistas procuraram incorporar à Constituição o princípio da não-desapropriação das pequenas e médias propriedades. Por seu lado, a UDR obteve a sua mais importante vitória ao introduzir no texto constitucional o dispositivo impedindo a desapropriação de propriedades produtivas para fins de reforma agrária. E evidente que a reforma agrária se volta contra o latifúndio improdutivo ou de baixa produtividade. Porém a CDR procurou introduzir esse dispositivo com o entendimento de que terra produtiva é toda aquela que produz, não importando a quantidade da produção ou o tamanho da terra A Constituição brasileira é muito clara ao definir que a propriedade deve cumprir a função social, e que um dos aspectos da função social da propriedade é seu aproveitamento racional e adequado.
Além da conivência dos governos e do Parlamento com o latifúndio. a Justica também tem jogado seu papel no sentido de dificultar o processo de reforma agrária A concessão de liminares de reintegração de posse sem que os juízes entrem no mérito do problema para avaliar se a propriedade cumpre ou não a sua função social tem sido responsável por inúmeros conflitos ocorridos no campo brasileiro. Com essa atitude, absolutizam o direito de propriedade sem levar em conta o princípio constitucional que exige que a propriedade cumpra sua função social.

Para se colocar em prática um plano de reforma agrária eficiente, além da vontade política, são necessários recursos e a remoção de alguns obstáculos impostos pela atual legislação.
Dentre esses obstáculos destacam-se dois. O primeiro se relaciona com a concessão de liminares de reintegração de posse. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que condiciona a concessão de liminares nos litígios coletivos pela posse de terra à realização de audiência preliminar das partes e à justificação prévia da posse. Quando solicitado, o Juiz far-se-á presente no local do litígio lavrando o termo circunstanciado sobre o acontecimento. Caso seja aprovado esse projeto, os juízes estarão obrigados a levar em consideração os documentos que provem a propriedade da terra, mas, ao mesmo tempo, estarão obrigados a avaliar se esta está cumprindo ou não sua função social. Tal dispositivo legal poderá reduzir os conflitos causados pela concessão de liminares de reintegração de posse de forma irresponsável, que têm sido causadoras da morte de muitos trabalhadores rurais.

Outra questão importante diz respeito ao rito sumário. Uma proposta nesse sentido está tramitando na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Atualmente, após o decreto de desapropriação de um determinado imóvel, entrando na Justiça o que reivindica a propriedade, o processo de desapropriação fica paralisado por muito tempo.

O que se pretende com o rito sumário é que após 48 horas do decreto de desapropriação o Estado entre na posse do imóvel desapropriado para colocar em prática a reforma agrária. No caso de o proprietário discordar do valor da desapropriação, a Justiça irá julgar, porém a terra não retomará mais ao seu proprietário original. Com isso, não se obstrui o processo de reforma agrária, e, ao mesmo tempo, asseguram-se os direitos do proprietário da terra.

A brutal concentração da propriedade da terra, a existência de milhões de trabalhadores sem terra, o agravamento da crise social no Brasil e o massacre de trabalhadores rurais no sul do Pará sensibilizaram a opinião pública brasileira e colocaram a reforma agrária novamente no cenário da política brasileira. Essa bandeira deixou de ser somente dos trabalhadores sem terra para conquistar grandes segmentos da sociedade brasileira A Conferência Nacional dos Bispos no Brasil- CNBB, em nota oficial sobre os assassinatos dos trabalhadores rurais do sul do Pará, denunciou "a resistência de setores minoritários mas poderosos da sociedade e a morosidade dos poderes públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário- diante de situações tão evidentes de desrespeito à vida e de agressão aos direitos dos trabalhadores sem terra em nosso país".

Em pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, 90,6% dos entrevistados se manifestaram a favor da reforma agrária; 90% concordaram com a utilização de propriedades improdutivas para fins de reforma agrária e 85,5% manifestaram que a reforma agrária pode melhorar a vida das cidades. Tais dados demonstram que a reforma agrária hoje já sensibiliza setores importantes da sociedade, e não só os trabalhadores rurais. Vai crescendo a percepção de que a reforma agrária representa uma alternativa, não só de crescimento da produção agrícola e de empregos para milhões de trabalhadores,mas como elemento de contenção do êxodo rural, que agrava a crise das cidades.

Ao falar sobre o tema, o professor Ladislau Dowbor afirmou que "a reforma agrária não é mais um problema rural, é uma questão chave da problemática urbana. Quem financia os prejuízos da impressionante sub utilização do solo agrícola somos nós".

A reforma agrária como parte integrante de um projeto nacional de desenvolvimento

O desenvolvimento capitalista no campo brasileiro não esgotou a questão da reforma agrária, mas colocou-a de forma diferente do que no passado. Ao reduzir a amplitude dos latifúndios improdutivos e de baixa produtividade, limitou o alcance da reforma agrária Por outro lado, aumentou de forma significativa o trabalho assalariado, dando realce à luta por melhores condições de vida dos assalariados agrícolas. No entanto, como foi comprovado, isso não esgotou a reforma agrária no Brasil.

O aspecto econômico da reforma agrária continua presente. Sua concentração incorpora à atividade produtiva grandes extensões de terras atualmente ociosas.

É verdade que o caminho da modernização conservadora da agricultura brasileira permitiu a produção de grãos suficientes para suprir o mercado interno. No entanto, a existência de grandes áreas improdutivas ou de baixa produtividade poderá assegurar um crescimento significativo da produção agrícola, desde que tais áreas sejam incorporadas à atividade produtiva com a realização da reforma agrária

Por outro lado, a realização da reforma agrária irá assegurar uma melhor distribuição da renda no campo brasileiro e a ampliação do mercado interno, com incorporação de largos contingentes da população ao mercado de trabalho. Eric Hobsbawm, no seu livro A era dos extremos, associa "a espetacular desigualdade de distribuição de renda no Brasil à ausência de reforma agrária", afirmando que isso "inevitavelmente restringe o mercado interno para a indústria".

Além do aspecto econômico, a reforma agrária tem aspecto social extremamente importante, pois permite a geração de empregos para milhões de trabalhadores, contendo o êxodo rural, que tem causado graves conseqüências com o inchaço das cidades e o agravamento da crise social urbana.
A reforma agrária no Brasil deverá ser massiva para dar resposta à amplitude dos problemas econômicos e sociais. Uma reforma agrária mitigada não será solução para a gravidade da crise agrária.

Alguns argumentam que uma reforma agrária massiva encontrará resistência dos latifundiários. Esse é um problema político. Tem que ser resolvido através de um processo de mobilização e organização da sociedade em defesa da reforma agrária, e não pela limitação do alcance da reforma agrária.
A reforma agrária deve ser regionalizada O desenvolvimento desigual do capitalismo e
as características diferenciadas do Brasil impõem a necessidade de estabelecer critérios diferenciados regionalmente para a realização da reforma agrária. Com esse objetivo, deverá ser fixado o teto máximo do tamanho das propriedades rurais para cada região. As que ultrapassarem esse limite serão desapropriadas, sem no entanto quebrar a unidade produtiva. As terras excedentes serão incorporadas ao Fundo Agrário Nacional, podendo ser arrendadas.

A reforma agrária deverá ser realizada sem desorganizar a produção agrícola do país. Assim sendo, as grandes unidades produtivas existentes no país deverão ser resguardadas. A reforma agrária se voltará contra o latifúndio, a grande propriedade improdutiva ou de baixa produtividade, e não contra a grande produção agrícola.

A reforma agrária deverá ser distributivista. As grandes propriedades improdutivas ou de baixa produtividade deverão ser destinadas aos trabalhadores rurais sem terra.

A história do Brasil tem demonstrado as resistências à concretização da reforma agrária no país. O agravamento da crise agrária, o impacto dos massacres de Corumbiara e particularmente o do sul do Pará criaram condições para que a sociedade perceba a gravidade e a importância da questão agrária.
E necessário desencadear um processo de mobilização e de conscientização que leve ao isolamento político dos latifundiários. Torna-se indispensável que as populações urbanas compreendam que a questão da reforma agrária não é algo que diga respeito apenas aos trabalhadores sem terra – trata-se de um elemento fundamental para a construção de um projeto de desenvolvimento harmônico e socialmente mais justo para o país.

ALDO ARANTES é advogado, Deputado Federal e membro do Comitê Central do PCdoB.
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