Uma questão de soberania
Em definição que se tomou clássica na teoria social e política, Max Weber identificou o Estado moderno com o "monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território" (A política como vocação, 1918, ênfase no original). Trata-se de uma conceituação reveladora e atual, que ajuda a enfocar uma gama variada de fenômenos no mundo contemporâneo – desde o controle dos morros cariocas por traficantes armados ("estados" dentro do Estado) até a guerra civil na antiga Iugoslávia (vários "estados" disputando o poder do "Estado central" em diferentes níveis). Ela é útil, igualmente, para situar a recente escalada de tensão que opôs os governos da China e dos Estados Unidos no estreito de Taiwan.
O sistema internacional moderno está estruturado sobre o reconhecimento mútuo de múltiplos "monopólios territoriais" soberanos. Constituído em oposição ao poder transnacional da Igreja na Europa do século XVII, esse sistema só foi abarcar a maior parte da Ásia e da África (e, em certo sentido, da América Latina também) no século XX. Foi apenas neste século que a China se estruturou como Estado moderno, após um longo período de retalhamento entre diferentes senhores coloniais e de guerra. A direção desse processo foi arduamente disputada por forças nacionalistas comunistas, e culminou numa prolongada guerra civil em que se opunham princípios antagônicos de estruturação do "monopólio do uso legítimo da força" em território chinês. O triunfo das forças comandadas por Mao Tse-tung nesse conflito se deveu, em grande parte, à legitimidade conferida a elas por seu papel contra a resistência à ocupação japonesa, em contraste com a inoperância e a paralisia do governo "oficial" de Chiang Kai-Shek.
Quando o sistema nacional moderno ainda dava os seus primeiros passos há mais"'de três séculos, a ilha de Taiwan (batizada de Formosa por navegadores portugueses) já compunha o território da China imperial no Oriente. O controle chinês sobre a ilha teve de se confrontar com seguidas intervenções e ocupações de espanhóis, holandeses, ingleses e japoneses. Com a derrota da China na guerra com o Japão, em 1895, Taiwan foi anexada ao território japonês, dando início a uma longa (e sangrenta) ocupação. A ilha só foi devolvida à China em 1945, após a derrota do Japão na Segunda Guerra. Quatro anos depois, no entanto, diante do triunfo da revolução no continente, o governo de Chiang Kai-Shek transformou Taiwan no seu último refúgio.
No início de 1950, o desalojamento das tropas nacionalistas de Taiwan – e a reunificação do território chinês nos marcos da República Popular – eram vistos como mera questão de tempo. Em livro recentemente publicado no Brasil pela Companhia das Letras (Em busca da China moderna), o historiador inglês Jonathan Spence revela que o próprio governo norte-americano j á se havia resignado a esse desfecho, e o seu Departamento de Estado já tinha até mesmo preparado a declaração oficial que Washington emitiria na ocasião. A situação se alterou drasticamante, no entanto, com a irrupção da guerra da Coréia no contexto maior da Guerra Fria (numa fase em que a China ainda mantinha uma próxima e estratégica aliança com a União Soviética). Com isso, o governo norte-americano resolveu sustar o desfecho "natural" da guerra civil chinesa, e mandou a sua Sétima Frota
para o estreito de Taiwan, impedindo a derrota das forças remanescentes do governo de Kuomintag. Na prática, impôs e sustentou a divisão territorial da China, reeditando a política imperial das potências européias no séculoXIX.
De lá para cá, muita água passou por baixo da ponte da história. Vieram a cisão com os soviéticos, a aproximação com os Estados Unidos, o fim da Guerra Fria e a desintegração da própria União Soviética. O governo de Beijing foi reconhecido como representante legítimo da China em todos os foros do sistema internacional, pondo fim ao arranjo esdrúxulo que, até os anos 70, destinava essa representação ao governo de Taipei (sob cuja jurisdição recaem menos de 2% da população e 0,4% da área territorial da China). Mas persiste, por força de uma intervenção externa, a anomalia da duplicidade de estruturas estatais dentro do território chinês. Por esse prisma, a convocação de eleições presidenciais em Taiwan pode ser lida como um passo em direção à consolidação institucional de um Estado próprio, perpetuando uma divisão territorial determinada por mera correlação conjuntura! de forças no sistema internacional ao término da guerra civil chinesa. Guardadas as devidas diferenças, há certo paralelismo entre as eleições taiwanesas e a iniciativa das autoridades britânicas de convocar eleições gerais em Hong Kong – pela primeira vez após um século e meio de administração colonial -justamente às vésperas da sua reincorporação à China. Ambas as iniciativas operam no sentido de dificultar a reunificação territorial chinesa.
Cabe à opinião pública mundial cobrar do governo chinês o respeito ao seu próprio compromisso de resolver a questão da reintegração de Taiwan, nos marcos do princípio de "um país, dois sistemas", que já está servindo de base para a reintegração de HOIII Kong e Macau. Mas cabe reconhecer, igualmente, tratar-se de uma questão interna da China, que deve ser resolvida sem interferências externas – sobretudo das potências responsáveis pela própria divisão.
LUIS FERNANDES é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Uma versão resumida deste artigo foi publicada pelo jornal O Globo em 9 de abril de 1996.
EDIÇÃO 41, MAI/JUN/JUL, 1996, PÁGINAS 37, 38