Zumbi dos Palmares é, talvez, o último grande personagem a ser incorporado ao panteão dos heróis nacionais. Isso foi o resultado de muita luta dos setores progressistas avançados da sociedade brasileira, principalmente do movimento negro que, desde meados dos anos 70, se reorganizou e transformou 20 de novembro, o dia da morte do líder quilombola, no Dia Nacional da Consciência Negra.

Trata-se de mais uma demonstração do fato de que cada classe social, ao irromper no cenário político, ao colocar-se de pé, com um programa próprio de reorganização da sociedade, reconta a história recuperando aqueles que, no passado, foram os lutadores de sua causa. O caso de Zumbi é ilustrativo, até mesmo para contrariar aqueles que, a despeito de erros cometidos pelos comunistas no passado, acusam os marxistas de desconsiderarem a questão racial, ou tratarem-na como uma questão menor, subordinada, no processo de luta de classes.

A saga de Zumbi ressurgiu com força no campo político e cultural nas últimas décadas. Mas foi a esquerda, foram os militantes operários que, no longínquo ano de 1920, invocaram pela primeira vez seu nome como bandeira na luta por uma sociedade melhor, mais justa e avançada

Afonso Schmidt lembra (no livro São Paulo de meus amores, 1954) a formação, na capital paulista, do Grupo Literário Zumbi, formado por escritores proletários. Inspiravam-se no Grupo Clarté, dirigido, em Paris, por Henri Barbusse, que aglutinava centenas de intelectuais progressistas, publicava a revista Clarté e lutava pela paz e fraternidade entre os homens. Propunha-se a articular a intelectualidade progressista em todo o mundo em torno da bandeira da defesa da Revolução Russa e da defesa do socialismo.

O Grupo Clarté teve grande repercussão no Brasil, inspirando um movimento literário e político renovador que, em São Paulo, diz Schmidt, "teve como conseqüência a criação do grupo Zumbi. A escolha do nome do herói de Palmares, por si própria, dá bem a idéia dos seus intuitos", diz o escritor proletário.

Estimulados pela Revolução Russa, e impulsionados pela consciência da fragilidade da organização operária da época, cuja vanguarda era formada pelos anarquistas, esse grupo – do qual participavam escritores e dirigentes operários importantes como Maximiano Ricardo, Sílvio Floreal, Edgard Leuenhoth, Andrade Cadete, Gigi Damiani, Astrogildo Pereira, Everardo Dias, Raymundo Reys, além do próprio Afonso Schmidt – foi um precursor do Modernismo em nosso país. Um precursor radical, proletário, animado pelo pensamento comunista libertário que caracterizou a transição, naquela época, do anarquismo para o comunismo.

Tentando filiar-se ao Grupo Clarté de Paris, enviaram para lá seu Manifesto. Há sinais de que Henri Barbusse o teria recebido, pois ele mandou dois livros, um de sua autoria e outro de um escritor francês, ao Grupo Zumbi, com dedicatória e tudo mais. Por um desses azares do correio, os livros não chegaram aos destinatários (foram encontrados muito tempo depois). Mais tarde, surgiu o grupo de intelectuais ligados à elite que del início ao movimento que desaguaria na Semana de Arte Moderna de 1922, e o Grupo Zumbi acabou ficando à sombra, e esquecido pela história

"Os escritores proletários de São Paulo [explica Schmidt] se organizaram num grupo de tendências renovadoras, um grupo que chegou a encontrar eco na Europa. Mais tarde, os nossos colegas que se encontravam do outro lado da barricada também realizaram o seu movimento. A Semana da Arte Moderna pode ser considerada como reação ao movimento Clarté. No caso, reação contra o nosso apagadíssimo grupo Zumbi, que, de grandioso, só apresentava uma coisa: o programa."

Mário da Silva Brito, o historiador da Semana de 1922, reconheceu que, em São Paulo, o conflito de classes se refletiu também no "plano literário", com a criação do Grupo Zumbi. E com esse grupo, diz ele, "que se inicia, entre nós, a politização literária de objetivos socialistas" (Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro, 1978). Além do Grupo Literário Zumbi, há notícia também da formação, no Rio de Janeiro, do Grupo Comunista Zumbi. Ela foi publicada em janeiro de 1920, no jornal Spartacus. Seu programa, conta Otávio Brandão (em seu livro de memórias, Combates e batalhas, 1978), exigia "um Brasil grandioso, sem amos nem escravos'''. Atacava o predomínio da burguesia, a exploração organizada, a mentira oficial, o jugo político e clerical, o analfabetismo, o desfibramento das energias dos jovens. Lutava pela abolição dos privilé-
gios de classe, pela emancipação das mulheres e pelo homem livre sobre a Terra, segundo o escritor comunista.

Embora o eco anarquista seja nítido nesse programa, é inegável a busca de um programa mais avançado como bandeira para o movimento operário – a própria palavra comunista em seu nome já denota essa intenção. Evidencia também a vontade de articular a luta moderna dos operários brasileiros com a linha histórica da luta do povo pela liberdade, linha que vem desde Zumbi dos Palmares. Indica a intenção de evidenciar a continuidade histórica dessas lutas e resgatar, nos embates ocorridos no século XVII, nas selvas da Serra da Barriga, o heroismo daqueles que, no passado histórico, estiveram do mesmo lado da barricada em que estão os que, em nosso século, lutam pelo progresso social.

A África do Sul aprova uma constituição contra o apartheid

"Agora temos um modelo de dominação da maioria. É um erro". Esta frase sobre a nova Constituição sul africana foi dita por Frederick De Klerk, vice-presidente líder do Partido Nacional e último presidente branco que governou aquele país sob o sistema de apartheid.

Ela é duplamente significativa. Primeiro, porque sinaliza com clareza a essência da mudança em curso, dirigida por Nelson Mandela – a transferência do controle do governo da minoria branca para a maioria negra do país. Segundo, porque ela resume o sentimento universal das minorias dominantes de todos os países ante a democracia, mesmo a democracia burguesa – o horror que os que mandam sentem da dominação da maioria.

A constituição Sul-africana foi aprovada na noite do dia 8 de maio. O líder da minoria branca criticou a nova carta, basicamente, porque ela não prevê instâncias multirraciais de decisão (que equiparariam, em poder político, a maioria negra e a minoria branca), privilegia (segundo ele) os trabalhadores e cria obstáculos jurídicos à pena de morte. Mas, apesar das restrições, seu partido aprovou a Constituição ante aquilo que parecia um mal maior: a lei previa que, caso ela não fosse aprovada no parlamento, deveria ser submetida a um plebiscito popular. De Klerk alegou que isso poderia aprofundar as divisões que ainda existem no país. Mas pode-se adivinhar também. em suas alegações, o temor de uma radicalização maior do processo constitucional e a criação de regras ainda mais restritivas para a minoria branca que controla a economia do país.

A nova constituição, que substitui a ordenação jurídica herdada do apartheid, foi aprovada por 421 dos 490 deputados do parlamento sul africano, dois deputados foram contra, e os demais abstiveram-se ou boicotaram a votação (os deputados da etnia zulu). Ela levou dois anos para ser escrita, tinha prazo para ser aprovada (até a meia noite do dia 8; a aprovação só foi possível depois de um acordo com o Partido Nacional, fechado uma hora antes do encerramento desse prazo), e vai entrar em vigor no dia 10 de janeiro de 1997. Apesar desse acordo, no dia seguinte à aprovação o Partido Nacional decidiu romper sua coligação com o Congresso Nacional Africano (CNA) e afastou-se do governo.

A Constituição sul africana destoa na monotomia neoliberal que domina o mundo de hoje. Ela proíbe todo tipo de discriminação (de raça, gênero, religião, orientação sexual, status social ou estado civil); proíbe prisões sem julgamento; prega o direito à vida, afastando a possibilidade de adoção da pena de morte; dá à mulher o controle sobre a procriação, abrindo caminho para a legalização do aborto. Institui a liberdade de expressão, mas proíbe qualquer discurso que incite o racismo, a violência ou a guerra.

Na área econômica, seu conteúdo progressista aparece com mais nitidez. Ela define a necessidade da reforma agrária (87% das terras do país são de propriedade de fazendeiros brancos); limita a garantia ao direito de propriedade sobre os patrimônios acumulados sob o regime do apartheid; garante aos trabalhadores o direito de sindicalização e o direito de greve, ao mesmo tempo em que proíbe o locaute e a sindicalização patronal (uma necessidade, segundo a liderança negra, pois as grandes empresas são todas controladas pela minoria branca).

Não é sem razão que a nova carta parece estar na contramão do neoliberalismo. Elaborada na situação de equilíbrio político precário que marca a passagem pacífica do sistema racista para um modelo político onde a maioria negra tenha expressão, ela responde às contradições dessa transição que, até agora, foi incapaz de responder às expectativas que a mudança criou para o povo do país, ao mesmo tempo em que manteve muitos dos privilégios históricos da burguesia branca. Assim, para a minoria branca, registrar no texto constitucional um conjunto de princípios democráticos, e mesmo algumas restrições à liberdade de ação do capital, é um mal menor ante a perspectiva de uma mudança revolucionária mais radical. E, para a maioria negra, esses princípios constitucionais aparecem como um passo inicial que alimenta as esperanças de consolidar e aprofundar as mudanças.

De qualquer forma, apesar de não resolver todas as contradições do país, a nova carta foi saudada com festas pela população sul africana. Afinal, disse Nelson Mandela no momento de sua aprovação "a Africa do Sul vive hoje o seu renascimento, purificada de seu passado horrível, amadurecida e partindo para o futuro com confiança".
J.C.R.

EDIÇÃO 41, MAI/JUN/JUL, 1996, PÁGINAS 60, 61