“Há 125 anos, a França sofria a humilhação nacional da ocupação pela Prússia de numerosas províncias, com a capitulação do governo de Thiers. Junta-se a esse fato a intensa exploração em que vivia a classe operária francesa em plena ascensão – ainda que ‘adolescente’- e o descontentamento dos setores manufatureiros, artesanais e da pequena indústria que, empobrecidos, resistiam à grande indústria. Estavam criadas as condições para a insurreição popular de 25 de março de 1871. A revolta espontânea do povo francês se transformou na primeira revolução operária internacional – A Comuna de Paris. Este ‘assalto dos seus’, como Marx o chamou, duraria apenas 72 dias, após os quais o governo de Thiers – então sediado em Versailles – desencadearia uma repressão terrível, traduzida no massecre de 25 a 30 mil pessoas abatidas em quatéis, nas ruas nas praças na prisão e na deportação de milhares de outras.’O cadaver está no chão, mas a idéia está viva’, disse Victor Hugo a respeito desse acontecimentos.

“ Assim, o jornal Avante, órgão central do Partido Cominista Português introduz uma entrevista com o historiador francês e o estudioso da Comuna de Paris, Claude Willard, que publicamos nesta edição. ( A revista Princípios editou um encarte especial dedicado aos 120 anos da Comuna, no 21, maio/junho/julho de 1991.)

Pergunta: Este “interregno”de 72 dias no capitalismo do século XIX que foi a Comuna de Paris pode ser considerada como uma experiência democrática?

Resposta: A democracia foi o seu traço mais marcante. O que a Comuna de Paris teve de essencial foi o fato de ser um governo do povo, pelo povo e para o povo. Ela é a democracia mais autêntica que existiu no mundo: um democracia direta, que atribuia a seus eleitos um mandato imperativo e revogável , com um controle permanente pelas massas populares, ou seja, pelos sindicatos e outras associações. É, portanto, a democracia direta que se exerce.

A segunda obra importante da Comuna é a obra social, evidentemente.

Pergunta: Que medidas destacaria pelo seu avanço e modernidade?

Resposta: Particularmente um decreto que confiava às associações operárias e às associações sindicais a responsabilidae de pôr a funcionar as oficinas abandonadas pelos patrões ( uma forma de autogestão), e algumas medidas essenciais, como a igualdade de salário homem/mulher, a supressão do trabalho noturno etc. Outro aspecto muito importante de que se revestiu reside no fato de os estrangeiros não só participarem na Comuna como assumirem nela também um papel dirigente – foi, por exemplo, o único estado do mundo que teve um ministro estrangeiro. E também no plano laico há inivações. A França era o único Estado laico no fim do século XIX, com uma escola laica, gratuita e obrigatória. Há,pois, toda uma série de medidas que são medidas de vanguarda, em relação mesmo aos dias de hoje. E o papel das mulheres… As mulheres tiveram um papel extremanente importante na Comuna.

Pergunta: É certo ter havido um decreto que reconhecia os diretiros dos filhos ilegítimos?

Resposta: Absolutamente

Pergunta:… E reconhecidaa a igualdade absoluta das mulheres. Isso fazia” tremer”as estruturas da sociedade, não?

Resposta: Certo. Houve uma recusa da moralidade vigente. Efetivamente, a Comuna teve a audácia de, em relação aos filhos de casais casodos, de casais vivendo em união livre ou em adultério, criar uma lei que atribuía a sua guarda sempre à mulher, quer fossem ou não casadas. Isso é sem dúvida importante. E também o é o lugar que a mulher ocupou na Comuna. Elas não se limitariam a socorrer os feridos: combateram nas barricadas, promoveram a escolarização no plano político, nas oficinas autogeridas. Aliás, só o papel que desempenharam explica o ódio que lhes é manifestado pelos “versalhenses”, que criaram o mito das “petroleuses”- que de fato nunca existiram -, que acusavam de incendiar casas,

Pergunta: Pode-se considerar que foi a primeira tentativa de organizar um governo socialista?

Resposta: Socialista, não Um governo operário. A primeira revolução operária. A verdade é que não houve, que não se pode falar em socialismo. A Comuna não deu a luz ao socialismo, ainda que o trouxesse no ventre. Não teve tempo. Medidas socialistas, propriamente não houve. Por exemplo, as oficinas abandonadas pelo patrão não foram confiscadas. Foram postas par funcionar, naturalmente em seu benefício, mas não confiscadas. O que se passaria se a Comuna tivesse continuado é outro problema. Mas não foram socializados os meios de produção, que é, afinal, o que define o socialismo. A Comuna correspondia, no entanto, aos interesses do operáriado, dos artesãos, dos camponeses – que nem chegaram a saber os importantes poderes que a comuna lhes tinha atribuído. Algumas medidas da Comuna foram mais tarde retomadas pela República, mas a grande medida da Comuna, segundo Marx, “foi a sua própria existência e ação”.

Pergunta : Apesar de tudo isso, a Comuna falhou. Estariam afinal, criadas as condições para o avanço desse movimento?

Resposta: Um historiador não pode usar “se”, não pode modificar o passado. A Comuna foi o que foi, simplesmente.

Pergunta: Que repercussões teve a Comuna nos movimentos operários europeus?

Resposta: Houve uma influência imediata, tendo em conta o que então Marx escreveu sobre a guerra civil na França e que foi universalmente lido. Por outro lado, houve “comunards”emigrados em numerosos países. Essa razão porque, por exemplo no mês de março, no Luxemburgo, promove-se uma festa – festa do “comunards”- celebrada pelos “comunards”- que para lá foram. Havia muitos no estrangeiro, Itália… Em Cuba, por exemplo vivia um “comunard”que desempenhava um papel importânte na Armada espanholh e que se solidarizou co os cubanos na guerra da independência comandada por José Mart’. Tendo morido em combate, foi considerado herói nacional, e a casa onde vivia foi recuperada, tendo-se aí erigido o museu da Comuna. Não em todos mas pode-se dizer que na maior parte do países há registro da passagem de “comunards”.

A Comuna influenciou fortemente todo movimento operário internacional, nomeadamente a Revolução de Outubro. Lênin foi beber muito na história da Comuna. Mas não só Lênin. Também Rosa de Luxemburgo, de forma diferente, é certo, se remete constantemente à Comuna.

Pergunta: Falou do papel das mulheres. Terá a Comuna influenciado também o movimento feminista?
Resposta: Houve uma mulher que teve um papel muito importante na Comuna – Louise Michelle. Mas Louise Michele não participou em absoluto em qualquer movimento feminista na Comuna. Ela er soldado, estava nas barricadas, ocupava-se apenas disso. Ao contrário, é depois da Comuna que ocorre o verdadeiro nascimento da Louise Michele. Torna-se professora, continuará a apoiar os “comunards”, e, quando regressa à França, torna-se uma grande militante da causa da liberdade, incluindo a feminina. Mas durante a Comuna, não.

Vivemos uma época de crise social grave e generalizada. Aumenta o desemprego, alasta-se a pobreza, intensifica-se a exploração, ainda que Sob formas mais sofisticadas. O tratado de Maastrichi põe em causa a soberania e a independência nacionais. Considera existir alguma semelhança entre entre as duas épocas?

Resposa: Estou totalmente de acordo com a sua naálise sobre a situação atual. Bem…Mas a situação é totalmente diferente da do tempo da Comuna.

Pergunta; Mas as codições objetivas para qualquer mudança existem?

Resposta: Sim, estou de acordo. Mas só posso dizer que é preciso lutar e que os adversários são os mesmos. A proposito do Tratado de Maastrichit -, eu sou totalmente anti-Maastricht -, lembro que a Comuna propôs a livre federação das comunas da França, o que não tinha nada a ver com o espírito de Maastricht. Eles eram adeptos da soberania popular, mas de uma soberania local. Não se tratava de soberania nacional.

Pergunta: Ë certo que um historiador não pode mudar o passado, mas pode…

Resposta: Ele não pode mudar o passado e não pode comparar duas situações tão diferentes. O que eu diria é que os ideais que guiaram os “comunards”, esses ideais permanecem vivos. É preciso lutar, como eles lutaram, Não se resignar, procurar o progresso. Mas as condições medaram completamente.

Pergunta:… Mas pode, dizia eu, ter uma opinião sobre o futuro. Tendo em conta o seu conhecimeto da História, que futuro pensa estar neste momento a desenhar-se?

Resposta: O futuro é imprevisível. O que lhe posso dizer é que é preciso nunca renunciar à luta. A minha opinião é, sem dúvida, a de que é necessário aglutinar esforços, reconstruir a solidariedade internacional face ao Tratado de Maastricht. Juntar esforços para lutar ao mesmo tempo contra o “rei dinheiro”, o papel que o Tratado no impõe, contra a dominação americana etc. É uma luta que pertence aos povos.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 73, 74