Eu estava sobre uma colina e vi
O Velho se aproximando,
Mas ele vinha com se fosse novo.
Ele se arrastava em novas muletas. Que ninguém antes tinha visto, e exalava novos odores de putrefação
Que ninguém antes havia cheirado.

E em torno estavam aqueles
Que instilavam horror e gritavam:
Aí vem o novo,
Saúdem o Novo, sejam novos como nós!
E quem escutava, ouvia apenas
Os seus gritos, mas quem olhava, via tais
que não gritavam.
Assim marchou o Velho travestido de Novo
Mas em cortejo triunfal levava consigo
O Novo e o exibia como Velho.
O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos;
Estes permitiam ver o vigor de seus membros.

Bertold Brecht

Nos dias de hoje, reina a absoluta na ciência histórica – no mundo acadêmico, na produção editorial, na mídia – a autodenominada Nouvelle Histoire, herdeira, segundo seus pregoeiros, dos Annales dos anos 30. Proclama-se o novo paradgma da história,sintese de tudo que surgiu de novo na moderna ciência social, superação seja do historicismo positivista, seja do determinismo marxista! Negadora da existência de leis na história ou de quaisquer determinações – mesmo que em última instância -, questiona a própria objetividade do conhecimento histórico, a existência da verdade na história, a totalidade do real, o progresso a evolução. Especialista na história do fragmanto, das curiosidades, do que não muda, do não essencial, do subjetivo, do irracional jogou no depósito das velharias os modos de produção, a luta de classes, as revoluções.

“Eis a ‘história nova’ lançada como uma marca de sabão em pó! Quem permanece apegado a uma história historicista, unilinear e estreitamente fatual, irá proclamar-se da ‘nova escola’a fim de tornar seu produto mais vendável. Melhor, logo veremos historiadores dos mais empiristas se tornarem produtores intusiastas do refinamento estatístico; a elaboração das ferramentas conceituais é assim substituída pela aplicação de simples técnicas. O positivismo encontra aí uma oportunidade de sobreviver envergando um novo traje 1.”

Qual a relação que guarda essa Nova História com os Annales de Braudel? O que haverá realmente de “Novo”na referida escola, “que tanto de novo estamos criando, que tanto estamos avançando ( ou velhas idéias estão aparecendo como novas) e, por outro, que tantas velhas concepções têm escapado à crítica e conseguiram infiltrar-se, contrabandeando o velho para novas formas de pensar 2”.? É o que examinaremos a seguir.

Bloch, Febvre e a primeira geração da Escola dos Annales

Analisar a Escola dos Annales – que nos anos 70 irá dar origem à Nova História – exige levar em conta tanto nossa heterogeneidade e relativo ecletismo como suas distintas fases. Há um primeiro peródo, entre 1929 e 1939, mais voltado para aspéctos “econômicos e sociais”da história – no qual alguns pretenderam ver uma certa proximidade com o marxismo (“nem Febvre nem Bloch tinham grandes interesses nas idéias de Marx 3.”). Esse período foi de crítica às correntes dominantes das ciências sociais do Ocidente, seja o positivismo, seja ao “teoricismo”idealista. É a época da revista Anais de história econômica e social, dirigida por Lucien Febvre e Marc Bloch, este bastante influenciado por Durkheim, aquele por Jaurés e Michelet 4.

Seu “primeiro traço definidor (…) é de (…) rechaço do historicismo e de sua estéril erudição fatual (…) contra a tentativa de estabelecer a indagação do ‘fato hist’rico’como objetivo supremo 5”. Em lugar da história narração, descritiva, é reivindicada a história problema, explicativa. “O segundo traço marcante desses intelectuais dos anos 30 é a rejeição da política. O jogo político, a vida parlamentar, os partidos políticos são postos de ladfo por esses intelectuais. O Estado é suspeito e rejeitado 6”.

“Os annales (…) ao desertar o terreno político (…) acabam por orientar o interesse dos historiadores para outros horizontes: a natureza , a paisagem, a população e a demografia, as trocas, os costumes 7”, o que seria apresentado como uma “história econômica social”, como abandono da história dos fatos isolados, dos grandes homens. Mas logo ficará demostrado que isso não tinha nada de sólido. Não por acaso, já em 1939 a revista altera seu nome para Anais da História Social e, em 1941, na sua conferência ‘Viver a história’, na École Normale Supérieure, Bloch afirma:

“Sabemos muito bem que ‘social’, em particular, é um desses adjetivos a que se fizeram dizer muitas coisa no decorrer do tempo, a tal ponto que por fim já não querem dizer quase nada.(…) Concordávamos em que 9…) uma palavra tão vaga quanto ‘social’parecia ter sido criada (…) para servir de emblema a um revista que pretendia não se rodear de muralhas.(…) Não há história econômica e social. Há história pura e simplesmente em sua unidade 8.

E Febvre completava, para não deixar qualquer dúvida de proximidade com o marxismo:

“Falando com propriedade, não há história econômica social. E não sómente porque a relação entre o econômico e social não é privilegiada (…) no sentido que não há razão alguma para dizer econômico e social em lugar de político e social, literário e social, religioso e social ou, literário social ou, inclusive, filósofo e social. Não foram razões racionais as que nos habituaram a relacionar de forma natural, e sem mais reflexões, os dois epítetos de econômico e social (…) Esta fórmula não é outra coisa que um resíduo ou uma herança das longas discussões que suscitou, já a mais de um século, aquilo que chamamos de o problema do materialismo histórico9”.

Como nos esclarece Fontana:

“A qualificação de ‘econômica’não foi outra coisa que uma concessão a uma moda passageira, a um curto galanteio com o materialismo histórico,(…) No ano de 1941, Febvre opina que o trabalho do historiador consiste em relacionar aspéctos da vida humana, sem que importem demasiados quais sejam os que se escolham. Nenhum deles tem um papel predominante. (…) A história é ciência (…) da harmonia que(…) se estabelece em todas as épocas entre as diversas condições sincrônicas espirituais’ (Combats pour l’histoire,p. 31-32) Frase que em última instância significa que tudo está relacionado com tudo, mas que esquece de dizer-nos o fundamental : de que forma está relacionado 10”.

Um terceiro aspecto – talvez o mais fecundo dos Annales, e parte de sua estratégia para a conquista da hegemonia entre a ciência social – foi a busca de interdisciplinaridade, a sua abertura à colaboração com as demais ciências e disciplinas – o que redundou em uma grande renovação nos métodos e nas técnicas do historiador. A história aproximou-se da geografia, da estatística, da demografia, da linguistica, da psicanálise. Articulou-se co a sociologia, a arqueologia, a antropologia. Deu-se, também, uma abertura para outras fontes, além dos documentos escritos, como a tradição oral, os vestígios arqueológicos, a iconografia etc. Não é demais notar que, nesse terreno, os Annales seguiram o caminho já desbravado pelo marxismo:

“O marxismo representou muito cedo um papel fecundo nessa renovação metodológicas. Na medida em que ele tende a uma história ‘global’ou ‘total’, que deve apreender simultaneamente os diferentes aspéctos da vida social ( o econômico e o mental, o social e o político), ele tem desde suas origens a vocação de se abrir sem restrições às diferentes ciências humanas. Conferindo às classes sociais e a sua luta um papel decisivo, ele volta seu interesse mais para as estruturas do que para acontecimento superficial, mais para o coletivo do que para o individual, mais para o cotidiano do que para o acidental. Quanto aos métodos quantitativos, será preciso lembrar que Marx já fazia uso deles?11”.

Mas esse avanço técnico e metodológico dos Annales careceu de uma correspondente renovação teóriuca. Para isso pesou sua subestimação da teoria e a sua visão ambigua da história enquanto ciência: “Sem metodologia abstrata à moda alemã (…) as idéias de um historiador são extraídas da própria história 12”. Enquanto Bloch falava da história como a “, ciência dos homens no tempo”13”, Fbvre nos dizia que a história era um “estudo cientificamente eleaborado”, não uma ciência, e reduzia as leis históricas a “estas fórmulas comuns que formam séries agrupando fatos até então separados 14”.Concepção paupérrima da lei, que não capta o seu carater de causalidade interna e necessária entre os fenômenos.

A ascensão do grupo Escola dos Annales foi fulminante: “A conjunção da estratégia sólida de alianças com o ecumenismo epistemológico permite a Escola do Annales eliminar seus rivais”. E, 1993, Lucien Febvre entra no Collége de France. O Ministério de Educação Nacional confia-lhe o projeto de uma Enciclopédia Francesa, do qual será secretário geral e o diretor, contando com 60 colaboradores científicos e 200 universitários. A publicação inicia em 1935. Em 1936, Marc Bloch assume a cátedra de professor de História Econômica da Sorbonne.

A Segunda Guerra mundial interrompe a ascensão institucional dos Annales. Com a queda da França, “A política anti-semita do regime de Vichy exigiu a retirada do judeu Bloch da direção da revista. Bloch esperava que a revista deixasse de ser publicada; prevaleceu porém a vontade de Febvre de continuar a publicação15”. A revista troca de nome (1942):Miscelâneas de história social. Em 1944, Marc Bloch, engajado na Resistência, é capturado e fuzilado pelos alemões. Em 1946, a revista altera mais uma vez o seu nome: Anais – Economias, sociedades, civilizações.

O pós-guerra consolida a vinculação dos Annalis ao establishment universitário: “Tendo à direita o discurso marxista, o grupo Annales oferece uma terceira via, ocupa uma posição central, ideal para sua estratégia de poder 16”. O pisitivismo e o “teiricismo”idealista mostram-se cada vez mais impotentes para contrapor-se ao marxismo, que crescia em prestígio. A historiografia burguesa precisava renovar-se urgentemente, incorporar preocupações econômicas e sociais, criar alternativas ao marxismo. E assim foi feito…

Febvre é convidado para reorganizar a Écola Pratique des Haustes Études, tornando-se em 1947 presidente de sua VIO Seção – dedicada às ciências sociais – e diretor do Centro de Pesquisas Históricas. Em pouco tempo, os Annales tornaram-se hegemônicos nos círculos oficiais:
“Os Annales começaram como uma revista de seita herática, (…) Depois da guerra, contudo, a revista transformou-se no orgão oficial da igraja ortodoxa. Sob a liderança de Febvre os evolucuionários intelectuais souberam conquistar o establishment histórico francês. O herdeiro desse poder seria Fernand Braudel 17”.

Braudel, ou a segnda geração da Escola dos Annales

Braudel, que já compunha o núcleo dirigente do Annales desde meados dos anos 40, publica em 1949 sua obra La Mediterranée et le monde mediterranéen, onde descobre a existência de distintos níveis de temporalidade: a longa duração das relações do homem com o meio geográfico – “uma história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca; uma história lenta no seu transcorrer e a transformar-se, feita com frequência de retornos insistentes, de ciclos incessantemente recomeçados 18”, “Acima dessa história imóvel, uma história lentamente ritmada,(…) uma história social, a dos grupos e agrupamentos (…) as economias e os Estados, as sociedades e as civilizações 19”., a curta duração dos acontecimentos –“história à dimensão não do homem,mas do indivíduo, a história ocorrencial 20”.

Em que pese o mérito de haver percebido que o tempo histórico não é absoluto nem homogêneo ( algo descoberto por Marx um século antes), Braudel não conseguiu articular as diversas temporalidades, limitando-se a agregar suas “fatias”de acntecimantos de acordo de acordo com a sua maior ou menor lentidão:

“Assim chegamos a uma decomposição da história em planos escalonados. Ou, se quisermos, à distição no tempo da história, de um tempo geográfico, de um tempo social, de um tempo individual. Ou se preferirmos ainda, à decomposição do homem num cortejo de personagens 21”.

A totalidade histórica foi reduzida a uma somatória dos distintos níveis do real, sem dominâncias ou determinações, sem causalidades: “não mais cremos na explicação da história por esse ou aquele fator dominante 22”. Braduel não foi capaz de compreender que a linearidade do tempo histórico não se expressa num esquema “por camadas”( senão, como compreender os “dias que valem por anos”, nas quais tanto as estruturas como as conjunturas e os acontecimentos se aceleram enormemente?). Mais ainda, ignorou o que articula, em última instância, os tempos longos, médios e curtos: o modo de produção.

A visão braudeliana traz latentes também o fatalismo e o determinismo geográfico:”uma história particularmente lenta das civilizações, nas suas profundezas absais, nos seus traços estruturais e geográficos 23”. “Quando penso no individuo, sou sempre inclinado a vê-lo como prisioneiro de um destino sobre o qual pouco pode influir 24’. “A parte da leberdade humana é muito fraca 25.””Nada há a fazer diante do peso do passado a não ser tomar conci^necia disso 26 “. Na perspectiva da longa duração, toda ação humana é insignificante. Incapaz de perceber a dia;ética entre os tempos longos e curtos, as circinstâncias e os acontecimentos, as leis históricas e a práxis humana, Braudel aproxima-se do “O homem está morto” do estruturalismo!

Para Braudel, a hierarquia social é uma permanência, a sociedade é fatalmente desigual, todo impulso igualitário é vão: “Toda observação revela essa desigualdade visceral que é a lei continua das sociedades só são válidas quando são dirigidas por uma elite 28”. “O Estado, o capitalismo, a civilização, a sociedade existem desde sempre 29”. A sociedade se auto-regula no plano das estruturas, o novo é recuperado pelo velho, toda ruptura histórica esta fadada ao fracasso: “Tudo se arranja, se incorpora às ordens existentes 30”. “A longa duração braudeliana e suas diversas variantes aqui aparecem claramente como são: uma leitura de nossa história que permite exorcizar todo risco de mudança.

Ao aventurar-se na história econômica – A dinâmica do capitalismo -, Braudel expõe suas debilidades no âmbito da teoria e cai em erros primários: localiza o capitalismo na esfera de troca, em vez de produção, e chega ao absurdo de contrapor a economia de mercado ao capitalismo!

Em 1947, Braudel sucede Febvre na direÇão da revista. Em 1949, torna-se professor do Collége d France e passa a acumular com Febvre a direção do Centro de Pesquisas Históricas da École des Hautés e a direção da revista. Com a morte de Febvre em 1956, torna-se seu sucessor na VI Seção da École.

Ë nessa fase “braudeliana”que temos a participação, na periferia dos Annales, de alguns historiadores de tendência ou orientação marxista, como Michel Vovelle, Maurice Agulhon, Guy Bois, Pierre Vilar e, destacadamente, Ernest Labrousse, ligado ao PS: “Se Ernest Labrousse não ocupa na época uma posição central no dispositivo dos Annales, é porque localiza o aspéto político como orizonte de sua abordagem econômica e privilegia o estudo dos antagonismos de classe (…) muito pro’ximo da historiográfia marxista, à qual não adere, e se torna assim marginalizado 32”.

Resumindo essa primeira fase da Escola dos Annales (1o e 2o gerações), podemos dizer:

• Apesar da crítica ao empirismo e da defesa da necessidade da teoria, na prática os Annales subestimaram a teoria e privilegiaram os método e técnicas de investigação. O resultado foi o ecletismo ( “o movimento e técnica de investigação. O resultado foi o ecletismo ( o movimento está unido apenas naquilo que se opões 33”), a superficialidade e a inconsistência teórica. Priorizou a síntese indutiva ( cara aos empíricos), frente aos métodos apoiados na dedução.

Sua visão interdisciplinar descambou em mitos momento para o tacnicismo estatístico, demográfico, quantitativista,obscurecendo a visão alesglobal e integrada do todo social e tendendo à especialização.

• Percebeu distintas temporalidades na história, mas não as articulou dialeticamente, nem percebeu o fluir descontinuo dessas temporalidades, justapondo-as um tanto mecanicamente. Ao privilegiar a história naturalizada e a longa duração, e ao desprezar o acontecimento, aproximou-se do determinismo geográfico.
• Sua reivindicação de uma história total evoluiu para uma visão de totalidade do mero somatório.

Cada vez mais sua crítica à história puramente “política”, “biográfica”mostrou-se inconsistente. Diversos de seus historiadores pasaram a dedicar-se _ em seus trabalhos concretos_ às obras biográfica, até que toda a preocupação com a história “econômica social “foi abandonada. Uma das consequências foi a ausência de qualquer teoria da “mudança social”.

Em que pesem todas as suas deficiências, a Escola dos Annales teve um papel importante na renovação dos métodos históricos e copmbateu o positivismo e o teoricismo idealista da história. Mas a sua função principal foi a de ser um comtraponto do marxismo.

A terceira ( e quarta?) geração dos Annales, ou Nouvelle Histoire

A Nova História propriamente dita desenvolve-se fundamentalmente a partir dos anos 70, quando Braudel, Morazé e Friedmann cedem a direção dos Annales a uma nova equipe, formada por Le Goff, Le Roy Ladurie, Revel, Marc Ferro e Burguiére. Conservan-se muitas características da antiga Escola dos Annales, mas também observan-se pontos de ruptura importantes, sob a nova bandeira dos novas abordagens, novos objetos, novos problemas:

“Em 1974 (…) já se prenunciavam as orientação de uma história nova – la nouvelle histoire – de multiplas facetas, hoje predominantes nas salas de aula e nas listas editoriais. (…) A História Política, praticamente descartada pelo movimento historiográfico renovador dos anos 30 e 40, do tão conhecido grupo de Annales, historiografia esta que se apregoava econômica, demográfica, eminentemente agrária, voltada para as análises estruturais e regionais, também não aparecia encontrar um lugar que lhe fosse próprio, com o destaque que merecia, na Nova História. Tratava-se e trata-se de uma história que passara a favorecer o pequenos pedaços do passado, aspéctos de um cotidiano nem sempre relevante, embora curioso, por vezes original e até mesmo ponderável 34”.

A viragem antropológica

Uma primeira grande característica da Nova História está no que se convencionou chamar de viragem antropológica, uma mudança em direção à antropologia cultural ou simbólica, à incorporação de sua abordagem, de muitos dos seus conceitos e técnicas:”No momento, o modelo antropológico reina supremo as abordagens culturais. Rituais, inversão carnavalescas e ritos de passagens estão sendo encontrados em todos os países e em quase todos os séculos. O estudo quantitativo das mentalités nquanto terceiro nível da experiência do social nunca teve tentos seguidores 35”.

A partir daí, abriram-se novas abordagens como a micro-história, a história do cotidiano, a história vista debaixo, a história regional (“Uma história mais sensível às diferenças regionais do que às diferenças sociais 36”) etc. Dá-se um deslocamento da “história das sociedades”para a “história dos pequenos grupos”( as “tribos”), para uma história dos diferentes, dos marginalizados, dos fracos, dos vencidos. Em lugar da realidade social, das condiÇòes reais de existência, valoriza-se o seu avesso: os sonhos, o imaginário, o simbólico. Privilegia-se o periférico em realção ao central:

“O reprimido torna-se portador de sentido. Tudo se torna objeto de curiosidade para o historiador, que desloca seu olhar para aas margens, para o avesso dos valores estabelecidos, para os loucos, para as feiticeiras, para os transgressores… O horizonte do historiador fecha-se sobre um presente imóvel, não há mais futuro… A Nova História se esconde, então, na busca da tradição, ao valorizar o tempo que se repete, as voltas e reviravoltas dos indivíduos,(…) Esa pesquisa faz-se mais pessoal e mais local. Abandonam-se os tempos fortes e os movimentos voluntaristas de mudanças, em direção à memória do cotidiano das pessoas simples 37”.

O indivíduo passa a ser o centro da ação; o cenário e o palco passam a um segundo plano. Proliferam os estudos biográficos: “O objetivo da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos que regulam (…) as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas cominidades, as parentelas, as famílias os indivíduos.(…) A biografia constitui, nesse sentido, o lugar ideal para se verificar o caráter intersticial (…) da liberdade de que as pessoa dispõem 38”.

A história quase imóvel, das permanências

A diacronia cede espaço para a sincronia. Deixa-se de trabalhar a tridimencionalidade do tempo – o passado, o presente e o futuro. Privilegia-se a permanência em vez do movimento. Congela-se o passado idealizado, já que, quando o presente frustra, o passado conforta…Perde-se a dimensão de construção do futuro, ao qual se teme, e cultua-se o pessimismo.

“Talvez estejamos assistindo (…) ao fim da religião do progresso, da crença no progresso.(…) Existe uma relação entre a nova reticência dos anos 1960 em relação ao desenvolvimento, ao progresso,á modernidade, a paixão trazida pelos jovens historiadores ao estudo da sociedade pré-industriais e de sua mentalidade Esses não atribuem mais á história um sentido 39”. “A cultura que estudam é, então, quase tirada for a da história e apreciada de maneira como os etólogos estruturalistas consideram a sociedade que escolheram(…) O historiador isola um bloco passado, do mesmo que um etnólogo escolhe uma sociedade selvagem e estuda-a, evitando na medida do possível os problemas de origem e posteridade. É a etno-história 40”.

O significado do acontecimento transforma-se, de expressão das causalidades que o tornam possível, de revelar ds estruturas subjacentes, em insguinificnte casual:

“A abordagem etnológica elimina a irrupção do acontecimento em troca da permanência, da cronologia rtepetida do gesto cotidiano da humanidade, cujas pulsações são reduzidas às manifestações biológicas ou familiares de sua existência: o nascimento, o batismo, o csamento, a morte. O historiador dos Annales torna-se o especialista do tempo imóvel em um presente congelado, petrificdo de pavor diante de um futuro incerto 41”.

Vê-se aonde tudo isso leva(…) primeiro à história, dessa ve totalmente imóvel; em seguida, ao questionamento da noção de mudança e mutação brusca na história numa palavra, a idéia de revolução.(…) O questionamento não apenas acontecimento puro e simples, mas de toda mudança brusca, de toda ‘mutação’a quente 42 .

E a mudança, quando é imposível de ser negada, torna-se “uma historiografia (…) da dialética entre o tempo das massas populares – imóvel ou quase – e das ‘elites’: agitado, mutavel, criador (…) da história que se move. (…) Para uns ( F.Fret, D. Richet), amobilidade do tempo das elites; para os outros ( E. Le Roy Ladurie), as imobilidades da história etnográfica 43”. A “descoberta” do cotidiano

Para alguns neo-historiadores, “A vida cotidiana (…) está (…) no ‘centro’do acontecer histórico; é a verdadeira ‘essencia”da substância social 33”. Peter Burke afirma que “outrora rejeitada como trivial, a história da vida cotidiana é encarada agora, por alguns historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais deve ser relacionado 45”.

Os neófitos também tem a pretensão de serem os “descobridores” do cotidiano! A realidade é que nem a expressão nem o tema são, em si , novidades. Aliás, La vie quotidienne era o título de uma série lançada pelos editores franceses Hachette já nos anos 30. Em A situação da classes trabalhadora na Inglaterra – editada em 1945 – Engels não só analisa o desenvolvimento do capitalismo e as consequências da industrialização, como faz um estudo detalhado e contextualizado sobre a vida e a luta cotidiana dos operário ingleses.

Sem dúvida, o estudo do cotidiano pode prestar importantes serviços ao historiador. Mas, para isso, é necessário o emprego de uma teoria que parta da compreenção de que a vida cotidiana está condicionada pela formação social em que se dá e pela estrutura e pela dominação da classe existente. Que perceba que em uma mesm formação social coexistem várias cotidianidades, conforme as classes eos grupos sociais ou étnicos presentes. Que uma delas – a imposta pela ideologia de classe dominante – é a preponderante. Que os setores explorado e oprimidos estão condicionados, em sua existência diária, pela maneira de ser das classes dominantes, que procuram, por todos os meios, regulamentar a cotidianidade através de convenções e de costumes sociais, da educação, dos códigos civis, dos meios de comunicação 46. Uma visão teórica capaz de analisar dialéticamente – nas suas recíprocas influências – “diário viver”que desborda a economia e a política, mas tem incidência sobre elas, e, ao mesmo tempo, sofre sua influência. Que exorcize o empirismo, o estudo dos detalhes como eram “as carruagens”, “as vestimantas”, “os peteados”, de determinada época… Pois não se trata de fazer uma história por separado dos distintos aspéctos da cotidianidade, mas de analisa-lo globalmente, de identificar o seu papel na manutenção do status quo ou da mudança social. Que compreenda que – exatamente porque compõe a dimensão do dia-a-dia, do senso comum, do inconsciente ( ou subconsciênte), do pragmático, do repetitivo, do rotineiro, do habitual do tradicional – o cotidiano, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta a alienação. (…) A assimilação espontânea das normas consuetudinárias dominantes pode converter-se por si mesmo em conformismo.(…) Quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de certa sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação produzida para as demais esferas.(…) O moderno desenvolvimento capitalista exacerbou ao extremo essa contradição 47”.

Infelizmente, o que mais prevalece na maioria dos neo-historiadores do cotidiano é a visão fragmentária, a-histórica, desligada da realidade social, centrada nos indivíduos, imóvel: “dificil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas e o cotidiano e a mudança. Visto do seu interior, o cotidiano parece eterno 48”. Assim, a históra sobre o cotidiano – que poderia lançar “uma luz particular sobre a realidade global 49”- tornou-se, sob a lógica da Nova História:

“(…) escassa reflaxão teórica dos estudos sobre a vida cotidiaana, geralmente descritivos.(…) Caráter fortemente empírico dos estudos sobre o cotidiano, (…) em geral centrados nos sujeito e suas ações, nos fenômenos minúsculos, nas dimenções simbólicas do místico, do imaginário do irracional,(…) as análises micro orientadas acabaram de tornar-se microcentradas, desconhecendo o contraponto das condições estruturais, e o objetivsmo estrito cede lugar a um subjetivismo que não se reconhece como tal 50”.

O “determinismo”” cultural

A “menina dos olhos”da Nova História é a chamada Nova História Cultural, saudada “aos quatro ventos”como uma verdadeira libertação frente ao materialismo e ao determinismo, o reconhecimento, enfim, do livre arbítrio humano:

“Nos anos 50 e 60, os historiadores econômicos e sociais foram atraídos por modelos mais ou menos deterministas de explicação histórica (…) Hoje em dia (…) os modelos mais atraentes são aqueles que enfatizam a liberdade de escolha de pessoas comuns(…) Os novos historiadores (…) foram bem sucedidos ao revalar as indequações das explicações materialistas e deterministas tradicionais do comportamento individual e coletivo de curto prazo, e na demonstração de que tanto na vida cotidiana quanto nos momentos de crise o que conta é a cultura 51”. A Nova história Cultural “explode” na França a partir da década de 70, nela destacando-se nomes como Duby, Le Golf e o marxista Michel Vovelle. Sua proclamada preocupação são as questões culturais: “No decorrer dos anos 60 e 70, porém, uma importante mudança de interesses ocorreu. O itinerário intelectual(…) tranferiu-se da base econômica para a “superestrutura” cultural, do ‘porão do sótão’52”. Seus autores irão preocupar-se com as diferentes práticas e representações simbólicas ( rituais, festas, folguedos), aproximendo-se da antropologia, da liguística, da etnografia, do folclore.

Mantendo a tradição dos Analles, a Nova História Cultural adota a mais ampla diversidade de métodos, conceitos e temas, agregando as mais variadas tendências teóricas – estratégia eclética que favorece o seu poder de aglutinação. Convivem, lado a lado, qutores preocupados com a visão macróspica e golbal do social e dos autores voltados por uma perspectiva microcóspica e framantéria do real; autores que enfatizam a ligação da cultura com os aspéctos socioeconômicos da realidade – chamada História Sociocultural – e autores que consideram que as idéias determinam a história. Mas a sua vertente hegemônica tem por norte a concepção idealista de que as estruturas culturais – mentalidades, representações, imaginário – determinam a sociedade:

“A obra de Davis (…) completam a avordagem francesa por utilizar maciçamente a antropologia simbólica e enfatizar o papel determinante e fundamental do faores culturais, em detrimento dos fatores climáticos, geográficos ou socioeconômicos.(…) Uma mesma idéia central – o papel decisivo da cultura como força motivadora da trandformação histórica.(…) Um método enfatiza os elementos culturais sobre os de natureza socioeconômicas 53”.

O foco de seus estudos serão as permanências – em uma perspectiva de longa duração – , o resgate dos fenômenos que persistem nas sociedades. Por isso mesmo, predominam as obras voltadas para o passado distante, especialmente medieval: “A história das mentalidades é, portanto, muito mais a história das mentalidads não atuais 54”.

Preocupam-se mais com o que é imóvel, com os arquétipos que persistem na longuíssima duração ( morte e medo) etc.) do que com as mudanças. Também aqui se expressa a tendência da Nova história de voltar-se para o passado: “Antigo Regime (…) em vez de explicar como ele ruiu ou como preparava o futuro, hoje os historiadores tentam compreender como ele se manteve, se reproduziu e ainda sobrevive nos poros da sociedade atual 55”.

Também caracterizam a Nova História Cultural a indefineição e a ambiguidade de seus conceitos-chaves – mentalidades, imaginário, representações, culturas -, muitos dos quais retirados de outras disciplinas ( antropologia, psicanálise, semiologia, linguística) sem suficiente tratamento teórico e crítico:

“Todavia o novo paradguima também tem seus problemas; problemas de definição, problemas de métodos, problema de explicação(…) Se a cultura popular é a cultura do “povo”, quem é o povo? Uma noção ampla de cultura é central à Nova História.(..) Contudo, se utilizarmos o termo em um sentido amplo, (…)o que não deve ser considerado como cultura? 56”.

Essa “extrapolação”de conceitos de outras ciências envolve muito risco. Um exemplo é o uso dos conceitos da psicanálise – apropriados para fenômenos individuais – na explicação de fenômenos coletivos. Outro é a análise anacrônica dos sentimentos do passado sob um enfoque comtemporâneo. Para George Duby, a solução está em sentir-se como no passado…

As copncepções hegemônicas da Nova História Cultural não conseguem disfarçar que, em nome da luta contra os determinismos na história, de fato defendem a completa preponderância dos aspéctos culturais sobre os aspéctos socioeconômicos na explicação histórica:

[Para] “os historiadores franceses da terceira geração dos Analles,(…) o clima, a biologia e a demografia dominavam a longa duração juntamente com as tendências econômicas; as relações sociais, mais nitidamente sujeitas às flutuações da conjojeneture (…) constituíam uma segunda ordem da realidae histórica; e a vida política, cultural e intelectual configurava um terceiro nível, extremanente dependente de experiência histórica. A integração entre o primeiro e o segundo nível assumia a primazia.(…) À medida que a quarta geração(…) passou a preocupar-se cada vez mais com as (…) mentalités, a história econômica e social sofreu um recuo.(…) Os historiadores da quarta geração dos Analles(…) rejeitam a caracterização de mentalités como parte do chamdo terceiro nível da experiência histórica. Para eles o terrceiro nível não é de todo algum um nível, mas um determjnante básico da realidade hisatórica. Como afirmoi Chartier’a relação ai estabelecida não é de dependência das estruturas mentais quanto as sua determinações materiais. As próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social’. As relações econômicas e sociais não são anteriores a cultura, nem as determinam 57”.

O trecho citado nos permite uma análise bastante rica. Em primeiro lugar, desmente aqueles que queriam ver na anterior primazia do econômico e o social uma influência marxista, deixando clara a compreensão esquemática e “economicista”da Escola de Analles quanto a essa questão- a ponto de dissociar em doi níveis diferêntes o ecoômico e o social! O que nada tem a ver com a visão marxista dos “modos de produção”, unidade indissolível ebntre o econômico e o social. Em segundo lugar, coloca em um distante segundo plano qualquer preocupação com a base econômica e social da realidade, e erige as estruturas mentasi ( mentalidades, imaginário, representações) como determinantes básicos da realidade histórica, chegando ao ponto de dlecarar que as próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social!

Essa é a visão hoje dominante na Nova História. George Duby, uma dos seus mais prestigiados representantes, afirma: “Uma sociedade não se explica unicamente pelo materila, mas nela intervêm de uma foram igualmente determinante, fatores que revelam o mental, da idéia, da representação ideológica(…) aquilo que as pessoas têm no espírito e que determina seu comportamento 58”. Como costuma acontecer, a crítica ao chamado determinismo econômico encobre a defesa de outros determinismos, de caráter idealista:

“A valorização do nível cultural (..) teve por base uma autonomia desse último em relação às outras instâncias do real, a tal ponto que esse nível é considerado como tendo a temporalidade e dinâmica internas próprias, independente do resto daformação social. O Analles não se limita portanto, à implicação do social para o cultural, mas pela substituição de um pelo outro.(…) A nova dialética dos Analles opõe o tempo, a cultura popular, imutável, incapaz de se desligar dos seus hábitos, tempo repetitivo, etnográfico, ao tempo criador din6amico, da cultira das elites, fonte de inovação, portanto fonte de história. A capacidade de mudança não se encontra mais no campo social ou político, mas no cultural 59”.

No que diz respeito à “novidade”de uma abordagem cultural da história, penso que está também é uma pretensão descabida do “noviços”. Na verdade, desde que escreve a história, o homem se preocupou com as qustões que dizem respeito a, cultura e às idéias morais, religiosas, jurídicas, filosóficas, artísticas, das distintas sociedades. Para só ficarmos no campo do marxismo – presunçosamente acusado de ignorar o papel da cultura e das idéias na história -, lembremos, já no passado, os inúmeros trabalhos de Marx, Engels e Plekhanov sobre a filosofia, a religião, a arte, a literatura, ( A ideologia Alemã, A questão judaica, O cristianismo primitivo, Anti-Duhring, A arte e a vida social); a frutifera polêmica em torno de arte travada nos anos 1935/40, entre intelectuais marxistas do porte de Lukács, Ernst Bloch, Brecht, Benjamim, Além de, em inúmeras ocasiões, Marx e Engels terem chamado a atenção para o importante papel desempenhado pelas superestruturas ideológicas na história, e para sua autonomia relativa.

Nesse sentido, uma História Cultural científica tem muito a contribuir para uma melhor compreensão dos fenômenos ideológicos e culturais, muitas vezes descurados por historiadores, marxistas ou não, mais preocupados com outros aspectos do social. Ou com uma visão “economisista”e “mecanicista” da história, por isso mesmo redutora.

A história “em migalhas”, serial

Outra marca da Nova História é a sua fragmentação. Em vez de história temos histórias.No lugar da história do real, busca-se a hisória de tal ou qual fragmanto do real: “Devemos renunciar à história global, à ambição de Febvre 60”. É essa noção de história total que me parece problemática hoje.(…) Vivemos uma história em migalhas, eclética, ampliada em direção a curiosidades, às quais não precisamos nos recusar 61”. Assim, “os objetos de investigação aparecem com isolados dos complexos mais amplos onde se realizam, onde a idéia de totalidade
É substituída pela fragmantação, ruptura 62”.

Proclamada a inexistência da totalidade do real, esse é recordado em séries que evoluem independentemente umas das outras, cada uma com seu próprio ritmo, cada uma com sua causalidade específica:

“A história serial descreve continuidades no modo de ser descontínuo.(…) Ela decompõe, por definição, toda a definição prévia de uma história ‘global’, pondo em questão precisamente o postulado de uma evolução considerada homogênea e idêntica, de todos elementos de uma sociedade.(…) Atomiza a realidade histórica em fragmentos tão distintos que compromete, ao mesmo tempo, a pretensão clássica da história à apreensão do global 63”.

Doravante, nenhum acontecimanto pode ser definido sem antes situar a série do qual fará parte. Só ali adquire o seu significado. “Em lugar de continuidade da evolução histórica, os historiadores atuais interessam-se pelas descontinuidades entre séries parciais de fragmentos de história. À universalidade do discurso histórico, opõem a multiplicação de objetos em sua singularidade 64”. “A história serial (…) apaga as estruturas sob a série factual e (…) não resolve o problema da passagem de uma série a outra. Contenta-se com causalidades específicas de tal ou qual série 65”.

Há uma explosão dos novos temas: a infância, o sonho, o corpo, o odor, a morte, o amor, a sexualidade, o medo, a culpa, o livro, o vestuário, o casamento, a loucura, o crime, o clima, a sujeira, a limpeza, os gestos, a fala, o silêncio, a leitura, a raiva, a ansiedade, a doença etc. Por um lado, amplia-se enormemente o campo do historiador, e alguns desses estudos podem trazer contribuições para um amelhor visão do todo. Mas, por outro lado, tende-se a atomização do real, à perda de referência à totalidade, ao deslocamento do interesse para temas inócuos e politicamente desmobilizadores:

“A sociedade torna-se um fantástico caleidoscópio de micro-objetos, sem sentido, sem hierarquia causal, sem razão. Na ausência de um sentido para a história, a preocupação com o futuro desaparece: é o fim da história, e o objeto das práticas políticas se define a partir do cotidiano de cada um 66”.

O pretenso “retorno à política”

Outra inovação da Nova História é o propalado retorno à política, que fora abandonado pelos Annales em nome do combate à história fatual. Como nos mostra Burke, esse retorno à política é, na verdade, uma reação contra uma história que – mesmo que de forma tênue – ainda levava em conta os fatores estruturais de caráter social e econômico: ”O retorno à política na terceira geração é uma reação contra Braudel e também contra outras formas de determinismo (especialmente o economismo marxista) 67”. Como nos explica Le Goff : “História do político que seja uma história do poder sob todos os seus aspectos, nem todos políticos, uma história que inclua notadamente o simbólico e o imaginário 68”.

Na verdade, influenciado por Foucault, esse retorno à política restringiu-se em grande parte à micropolítica, à luta pelo micro-poder na escola, na fábrica, na família: “Se não houver lugar nodal do poder, não pode hav er lugar de resistência a esse poder. Onipresente, ele não pode mais ser derrubado, está em nós; tudo é poder. (…) Essa diluição-dissolução do aspecto político é o traço de uma repulsa diante desse monstro moderno do Estado, fonte de opressão e de mal. Na falta de capacidade para abatê-lo, ele é contornado 69”.

O “retorno à narrativa” e a negação do caráter científico da história

Por fim, temos o chamado retorno à narrativa, outrora tão criticada pelos Annales. A historiografia desloca-se do objeto real para o narrativo, o literário. O valor não está tanto no conteúdo quanto no estético. Se, por um lado, isso poderia ter um aspecto positivo – a preocupação com a forma – na prática tem levado a um abandono do caráter científico da história. Em vez de conhecimento do real, a história transforma-se em criação, invenção do historiador:

“O discurso histórico é menos a combinação de uma imagem ou modelo com uma ‘realidade’ extrínseca do que a feitura de uma imagem verbal. (…) O discurso histórico não deveria ser considerado (…) como (…) esforço para conhecer a realidade ou descrevê-la, mas antes como um tipo especial de uso da linguagem. (…) Não existe uma estória ‘real’. As estórias são contadas ou escritas, não encontradas. (…) Todas as histórias são ficções 70”.

No fundo, o que está em questão é a própria cientificidade e a racionalidade do trabalho do historiador: “Tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como elas mais manifestadamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com as contrapartidas na leitura do que na ciência 71”.

Daí para a negação da existência de causalidade na história, de seu caráter científico e objetivo, vai um passo. Passo que é dado por Paul Veyne:

“A história não é uma ciência e não tem muito a esperar das ciências; não explica e não tem método. (…) A história não explica, no sentido em que não pode deduzir e prever. (…) O problema da causalidade em história é uma sobrevivência da era paleoepistemológica. (…) Um historiador não encadeia as causas cujo concurso produziria o efeito: desenvolve uma narrativa cujos episódios se sucedem. (…) No mundo tal como os nossos olhos o vêem, os homens são livres e reina o acaso. (…) A história é um atividade intelectual que, através de formas literárias consagradas, serve fins de simples curiosidade. (…) Entre a explicação histórica e a explicação científica, não existe um combate, mas um abismo. (…) A história não é um ‘esboço de explicação’ científica ainda imperfeita. (…) Não se transformará nunca numa ciência 72”.

E Georges Duby complementa, para que não pairem dúvidas:

“Para que serve a história? A história é, antes de mais, um divertimento: o historiador sempre escreveu por prazer e para dar prazer aos outros. (…) O que ele enuncia, quando escreve a história, é o seu próprio sonho. (…) O historiador conta um a história, uma história que ele forja recorrendo a um certo número de informações concretas. (…) Continuamos a utilizar esse material (…) ao serviço das nossas paixões e da ideologia que nos domina. (…) O discurso histórico continua a ser uma forma de criação. (…) A elaboração do material é sempre feita de forma subjetiva. (…) A objetividade do conhecimento histórico é um mito. (…) Jamais chegaremos a uma verdade objetiva. (…) Sou cético em relação à objetividade. (…) Toda a informação é subjetiva 73”.

Para ambos, vale a crítica de Mário Maestri:

“A obra de Paul Veyne, como se escreve a história, constitui bom exemplo da miséria metodológia e do uso sistemático das grandes propostas irracionalistas. Para o autor, a história não é uma ciência, mas uma espécie de gênero literário que se distingue da ficção por ser escrita a partir de uma documentação histórica. Sua reflexão sobre o devir histórico assenta-se sobre o tradicional recurso irracionalista-burguês de dividir a natureza em fenômenos materiais que desvelam suas leis e podem ser conhecidos e fenômenos sociais ‘singulares’ estranhos a qualquer regularidade’ 74”.

Continuidades e rupturas da Nova História com a Escola dos Annales

• A Nova História continua apresentando a mesma indigência teórica que já caracterizava os Annales, disfarçada pela absorção acrítica de conceitos e terminologias mal assimiladas, tomadas de empréstimo a outros campos científicos, chafurdando no ecletismo teórico…
• Manteve a interdisciplinaridade tão proclamada pelos Annales, que muitas vezes se confunde com a especialização tecnicista.
• Mantendo a pluralidade braudeliana de tempos, sua temportalidade sincrônica tende para a longuíssima duração da história “quase imóvel”, que conduz à noção de ausência de mudanças. Ao mesmo tempo que privilegia a permanência em relação à mudança, a Nova História volta-se para o passado, esquece o presente e fecha os olhos para o futuro.
• A Nova História abandonou qualquer visão de totalidade – mesmo que fosse a justaposição mecânica dos Annales – , passando a cultuar a fragmentação do real.
• Em nome do combate ao “determinismo econômico” de “cunho marxista”, a Nova História erigiu as mentalités como as verdadeiras infra-estruturas determinantes do social ou, quando não chegou a tanto, proclamou ao menos a sua autonomia em relação às estruturas sociais e econômicas globais, aprofundando o afastamento das causalidades econômicas e sociais, que os Annales já havia iniciado.
• Seu “retorno à política” – rompendo com a anterior orientação dos Annales – tem muito a ver com o combate às “determinações econômicas e sociais” e com voltar-se à temática do “micro-poder” do que com a história “macropolítica”. No fundo, persiste a “despolitização” da história, iniciada pelos Annales.
• Ao questionar a existência de leis históricas e do próprio processo histórico, ao negar a objetividade do conhecimento histórico e a existência de verdade histórica, a Nova História rompeu com a visão da história como ciência, indo muito além das vacilações que os Annales já haviam manifestado nesse terreno.

Conclusão

É inegável a existência de uma continuidade, em diversos aspectos e “tendências”, entre os Annales e a Nova História. Mais do que isso, os Annales já trazem latentes muitos dos germes de seu ulterior desenvolvimento para a Nova História. Mas também é evidente a existência de uma profunda ruptura entre ambos – de caráter involutivo. Como diz Ciro Flamarion Cardoso, a Nova História é “uma corrente retrógrada sob aparências de novidade e ousadia 75”.

É a história “do jeito que as elites gostam”, rebento do pós-modernismo. Reflexo da falta de perspectiva de uma burguesia decrépita – mas ainda viva – que teme o futuro, não se empolga com o presente e refugia-se no passado; expressão das desilusões de setores da intelectualidade que, diante das dificuldades e retrocessos da luta social, desertaram:

“A desconstrução do real que hoje se opera parece fundamentalmente ligada ao período atual: o das ilusões perdidas. No momento em que o vento da história soprava para construir uma sociedade nova, ou seja, no século XVIII e a metade do século XIX, os pensadores buscavam o sentido do futuro humano e inscreviam o presente na lógica racional. De Kant a Marx, sem esquecer Hegel, temos a compreensão dos fundamentos das batalhas em curso pela liberdade. Ao contrário, quando as resistências às mudanças triunfam, no momento em que as esperanças são frustradas, em que a desilusão se enraíza, assiste-se à recusa da racionalização global do real. Já que o real não realiza as esperanças, ele não pode ser racional. A história perde, então, todo o sentido, fragmenta-se em múltiplos segmentos 76”.

“Na falta de um presente que entusiasme e perante um futuro inquietante, subsiste o passado, lugar do investimento de uma identidade imaginária (…) que perdemos para sempre. Essa busca torna-se mais e mais individual, mais local, na falta de um destino coletivo mobilizador. Todos abandonam os tempos extraordinários em troca da memória do cotidiano das pessoas comuns 77.” “A história muda então de função: ciência das transformações, das mudanças, ela se torna especialidade das inércias, das sociedades imóveis, lição de coisas para prevenirmo-nos das veleidades das mudanças ao nutrir-nos com a vaga nostalgia daquilo que perdemos 78.”

Tudo isso não significa que a Nova História seja estéril ou não tenha qualquer contribuição para a ciência histórica. Seria uma maneira simplista de tratar a questão. Primeiro, porque, ao ser uma Escola extremamente heterogênea, tem em seu seio as mais variadas orientações teóricas. Segundo, porque mesmo historiadores com uma visão incorreta podem contribuir para o avanço do conhecimento histórico em estudos concretos. Lembramos Hegel que, apesar do seu idealismo, deu contribuições inestimáveis ao desenvolvimento da dialética. Devemos fazer uma análise rigorosa – não apriorística – que resgate o que há de racional e científico na produção da Nova História, acompanhada da crítica implacável a seus equívocos teóricos e a seu substrato ideológico reacionário.

RAUL CARRION é acadêmico de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vereador pelo PCdoB em Porto Alegre (RS).

Notas

(1) BOIS, Guy. Marxismo e História Nova. In: Le Goff, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993. P. 244.
(2) PETERSEN, Silvia. Algumas interrogações sobre as tendências recentes da historiografia brasileira: a emergência do ‘Novo’ e a crítica ao racionalismo. LPH: Revista de História, v. 3, n. 1, 1992, p. 111.
(3) BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929-1989: a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: ENESO, 1992. P. 68.
(4) Id., ibid, p. 25-26.
(5) FONTANA, Josep. Ascenso y decadencia de la Escuela de los Annales. Hacia una nueva historia. Madrid: Akal, 1976. P. 11.
(6) DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio, 1994, p. 24-25.
(7) Idem, p. 54.
(8) BLOCH, Marc. Combats pour l’historie. Apud LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. P. 28
(9) FEBVRE, Lucien. Combats pour l’historie. Apud FONTANA, Josep, op. cit. p. 112.
(10) FONTANA, op. cit. p. 113.
(11) BOIS, op. cit. p. 245.
(12) FEBVRE, Lucien. Annales, 1956. P. 501.
(13) BLOCH, Marc. Introducción a la história. Apud FONTANA, op. cit. p. 111.
(14) FEBVRE, Lucien. Combats pour l’historie. Apud FONTANA, op. cit. p. 111.
(15) BURKE, Peter. A Escola dos Annales. Nota 25, p. 39.
(16) DOSSE, op. cit. p. 66.
(17) BURKE, Peter. A Escola dos Annales. P. 43.
(18) BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978. P. 13-14.
(19) Idem, p. 14.
(20) Idem, p. 14.
(21) Idem, p. 15.
(22) Idem, p. 22.
(23) Idem, p. 25.
(24) BRAUDEL, F. La Mediterranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Apud BURKE, p. A Escola dos Annales. P. 53.
(25) BRAUDEL, Fernand. Y a-t-il une nouvelle historie? Apud DOSSE, op. cit. p. 105.
(26) BRAUDEL, Fernand. TFL. Apud DOSSE, op. cit. p. 119.
(27) BRAUDEL, Fernand. Civilization materiélle, écomomie et capitalisme. Paris: A. Collin, 1979. T. 2 p. 415.
(28) BRAUDEL, Fernand. TFL. Apud DOSSE, op. cit. p. 121,
(29) BRAUDEL, Fernand. Magazine littéraire. Entrevista em novembro de 1984, p. 20.
(30) BRAUDEL, Fernand. Civilization materiélle, éconemie et capitalisme. Paris: A. Collin, 1979, t. 3, p. 542.
(31) DOSSE, op. cit. p. 122.
(32) DOSSE, op. cit. p 73.
(33) BURKE, Peter, A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, Edunesp, 1992, p. 10.
(34) LINHARES, Maria. Apresentação. In: RÉMOND, René. Por que a História Política? Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1994, v. 7, n. 13, p. 102.
(35) HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 14.
(36) ARIÈS, Philippe. A história das mentalidades. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 170.
(37) DOSSE, op. cit. p. 168.
(38) CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1994, v. 7, n. 13, p. 102.
(39) ARIÈS, op. cit. p. 162.
(40) ARIÈS, op. cit. p.174.
(41) DOSSE, op. cit. p. 169.
(42) VOVELLE, Michel. A história e a longa duração. In: LE GOFF, J. A Nova História. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 82-84.
(43) Idem, p. 81.
(44) HELER, Agnes. Estrutura da vida cotidiana. In: O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 20.
(45) BURKE, Peter. A escrita da história. p. 23.
(46) VITALE, Luis, Introducción a una teoria de la historia para América Latina. Buenos Aires: Planeta, 1992. P. 303-305.
(47) HELER, op. cit. p. 37-39.
(48) BURKE, Peter. A escrita da história. p. 24. (49) LEFEVRE,Henri. La vida cotidiana en el mundo moderno.Madrid: Alianza, 1980.p.33-34.
(50) PETERSON,op.cit.p 12
(51) BURKE,Peter.A escrita da história.p.31-35
(52) BURKE,Peter A escola de Analles: São Paulo: Unesp, 1991
(53) DESAN,Suzane. Massas Comunidae e ritual na obra de E.P. Thompso e Natalie Davis. In Hunt, Lyn. A nova história cultural.São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 65-69
(54) ARIES, op. cit. p. 172
(55) BURGUIÉRE,André.A antropologia história. In Le Goff,J A nova história.São Paulo: Martins Fontes, 1993.p.149
(56) BURKE,Peter. A escrita da história.p.20-23
(57) HUNT, lyn. A nova história cultural.São Paulo: Martins Fontes, 1992.p4,8-9.
(58) DUBY, Georges. O historiador hoje. In:História e nova história.Lisboa: Teorema, 1986.p9.
(59) DOSSE, op.cit.p.176
(60) CERTEAU, Michel. Les discours de l’histoire.France Culture, 31.10.78
(61) NORA, Pierre. Le nouvel observateur, 07/05/1974.
(62) PETERSON, op. cit.p.118
(63) FURET,Fançois. O Quantitativo em história. In Fazer história, novos problemas,Lisboa: Livraria Bertrand, 1977.p.72-73.
(64) DOSSE, op.cit.p.187.
(65) DOSSE,op,cit.p.194
(66) PETERSON,op.cit.p.124
(67) BURKE, Peter. A escola do analles.p.103.
(68) LE GOFF, J. A nova história.São Paulo: Martins Fontes, 1993.p8.
(69) DOSSE, op.cit.p.227.
(70) WHITE,Hayden.Teoria literária e escrita da história.Rio de Janeiro: Estidos Históricos, 1994, v7, n13, pp. 28,30.
(71) CHARTIER, op.cit. p 10
(72) VEYNE, Paul. Como se escreve a história.Lisboa: Edições 70.1987.pp.9 110-112,191.
(73) DUBY, Georges. O historiador hoje. In: História e nova história.Lisboa: Teorema, 1986.pp. 11-14.
(74) MAESTRY, Mário. Os mucadins da historiografia: história e irracionalismo na idade senil do capitalismo. In: Anais do Simpósio ‘Caminhos para a liberdade – A revolução francesa e a Inconfidência mineira’. Porto Alegre: UFRGS/FAPERGS,1991.p.131.
(75) CARDOSO, Ciro. Ensaios racionalistas.Rio de Janeiro: Campus, 1988.p.94
(76) DOSSE, op.cit.p.192
(77) IDEM.p.14.
(78) Idem.p.221.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69