A notícia foi publicada como simples nota no jornal Folha de São Paulo: ao aprovar o relatório sobre as mudanças na Previdência, o Congresso brasileiro deu seu apoio a um item que passou até meio despercebido: o tempo de licença maternidade usufuída será descontado na contagem do tempo para a aposentadoria. Basta uma operaçào matemática simples para se constatar que, se uma mulher tiver três filhos, perde um ano de aposentadoria!

Tal medida já seria completamente absurda quando a aposentadoria era, nos termos da lei, conquistada após determminado tempo de serviço ( poser-se-ia argumentar, a rigor, que durante a licença as mulheres não estavam trabalhando). Mas o que dizer de hoje quando – por imposiçào do governo – ela só pode ser usufuida após 30 anos de contribuiçào? O que justificaria tal medida?

A novela da reforma da Previdência ainda não terminou e não sabemos como ficará o texto final. Mas o “lapso”dos congressistas, que deixem o adendo passar em branco na primeira votação, não foi assim tão inocente. O velho Freud que o diga…

A reprodução e a fecundidade feminina são frequentemente invocadas quando se trata de explicar e até justificar o estado de subordinaçào das mulheres, as desigualdades entre sexos. A forma com que se utilizam a fecundidade e a reproduçào é, a um tempo simples e sgnificativa: em última análise, a posição subordinada das milheres se deveria a ‘constrangimentos do biológicos naturais’que pesem sobre elas, ou seja, seu ‘papel’na procriação. Como afirma Paola Tabet:

“(…) Parece que se produz um deslocamento – que transparece também nos termos normalmente empregados – entre a capacidade e o fato de procriar, e esse último, em vez de ser o resultado final de um processo que banalmente necessita dos dois sexos, transformam-se em ess6encia, na propriedade da natureza das mulheres”.(199:65)

Esta concepção, defendiada ao longo dos séculos, teve alguns expoentes privilegiados. No final do século IV e começo V , Aurelius Augustinus, ou Santo Agostinho, como é mais conhecido, concebeu uma tese que “pavimentou o caminho não só para os séculos mas também para melênios que se seguiram”(Ranke-Heinemann 1991:88) influenciando grande parte da humanidade. Ele imaginou que todos nascem em pecado porque são consebidos em pecado. E são concebidos em pecado porque o primeiro homem,Adão, pecou. O pecado original, para ele, associa-se ao sexo. Escreveu ele :

“Estou convencido de que nada afasta mais o espírito do homen as alturas do que os caminhos da mulher e aqueles movimento do corpo sem os quais um homem não pode possuir sua esposa”.

Fica aqui postulada a eterna culpa da mulher pelos pecados do mundo. A mulher passa a ser, em outras palavras, a representante do desejo, a encarnação do demônio, a impura responsável pelos “pecados da carne”, pela sexualidae e pela reprodução.

Como afirma Ranke-Heinemann, em Os eunucos do reino de Deus:

“As mulheres podem ter ficado surpresas com saber que só eram boas para a reprodução e desqualificadas para qualquer outra coisa que dissesse respeito à mente e à inteligência. Essa idéia foi formulada po São Tomás de Aquino em conexão com Santo agostinho da seguinte maneira: a mulher é simplesmente útil na procriação e para cuidar da casa. Para vida intelectual do homem não tem significado. Assim Santo Agostinho oi o brilhante inventor do que os alemães chamam de três kàs ( Kinder, Kuche, Kirche – filhos, cozinha, igreja),uma idéia ainda viva, que com efeito continua a ser a posição teológica primária das mulheres na hierarquia da igreja”.(1996:101).

As concepções de Agostinho tornar-se-ão herança de todas as gerações subsequentes de cristãos e influirão, pela compeenção da natureza humana, que induzem, o pensamento político e psicológico do Ocidente. Desenvolvidas mais tarde por Santo Alberto e são Tomás de Aquino, marcaram indelevelmente as relações do gênero na socieade ocidental. Santo Alberto, por exemplo, considera que “a mulher é menos qualificada que o homem para o comportamento moral”, não passa de “um homem vil e bastardo”, um hom,em imperfeito – tese reforçada po São Tomás, para quem o sêmen, ao sair do homem, tem por objetivo reproduzir algo igualmente perfeito, ou seja, outro homem. Circunstâncias desfavoráveis è que fazem nascer as mulheres…

E com cedadãs de classe inferior devem submeter-se aos homens, seus superiores “naturais”. O destino das mulheres é, pois, o de servir. Curiosa dualidade: criadas por Deus, ainda que um pedaço de homem, a costela de Adão, as mulheres estão destinadas a serem a encarnação do demônio. “Dotadas”de impossibilidade de escolha entre o bem e o mal, elas tão puco recebem a redenção dos desvalidos. Para Santo Agostinho, elas estão destinadas eternamente a vagar sem rumo no limbo da ausência de liberdade, entre o purgatório e o inferno.

Ao conquistar o poder, pondo abaixo a hegemonia do cristianismo e a dominação da igreja Católolica, a burguesia tem o cuidado de não revolucionar também as relações entre sexos. A consguinação da revolução francesa,Liberdade, Iguladade, fraternidade, não incluía a igualdade entre os sexos. O contrato social desenhado po Rousseau era excludente. Era um contrato entre iguais, ou seja, entre homens.

Para justificar essa postura, Rosseau desenvolve uma teoria explicando qua a mulher é por natureza inferior ao homem graças a função de reprodução. Retoma, em outras palavras, o postuilado de Santo Agostinho de que as mulheres caba apenas procriar e obedecer…

A parte que cabe ás mulheres as mulheres no contrato acaba sendo exposta em Emílio, ou da educação, onde afirma que é ncessário excluí-las da coisa pública, circiscrevê-la ao espaço domético:

“A obediência e a fidelidade que ela ( mulher) deve ao seu marido, a ternura e o carinho que ela deve aos filhos são consequências tão naturais e evidentes de sua posição que ela não pode honentamente recusar seu consentimento à voz interior que é seu guia, nem falhar em discenir seu dever na sua inclinação natural".

Rosseau apresenta três argumentos para justificar porque o homem deve ser o patriarca: 1- porque deve haver uma autoridade final para decidir o caso de haver divergência de opinião; 2- A mulher, por sua função na reprodução é inferior ao homem 3- é indispensável que o homem tenha autoridade sobre sua mulher para ter certeza da paternidade de seus filhos.

Ao assumir o controle econômico, político e ideológico da sociedade, a burguesia impões também seu modelo de produção e reprodução da vida, baseado no controle e adestramento da mulheres, cujo instrumento principal é o casamento civil.

Como lembra Paola Tabet, a épecie humana é uma espécie relativamente infértil. A essa relativa infertilidade agregam-se algumas características específicas da sexualidade humana: 1- A pulsão sexual nas mulheres não está necessáriamente ligada a procriação através de uma regulação hormonal constrangedora. Em outras palavras, Não há sincronismo entre o momento da ovilaçào ( portanto fertilidade) e pulsão sexual. 2- O momento da fertilidade não tem sianlização, daí a dificuldade de determinar o momento em que a concepção é possível. Ora:

“Na falta de uma pulsão sexual que leve as mulheres a copular quando a concepçào é posível (…) o que pode assegurar o máximo de cobertura de possibilidades de concepção é a regularidade e a frequência da ex[posição do coito. Em outras palavras, o casamento”.(1985:69)

Em outras palvras, o casamento civil não passa de uma regra estabelecida pelas classes sominantes sobre como os indivíduos devem acasalar e ter filhos.Outras formas de controle podem ser citadas, como prescrições da Igreja, que impede o casamento de seus representantes para evitar herdeiros o direito à pernada dos senhores feudais, o uso das escravas pelo senhor. Na atualidade podemos lembrar às políticas de controle a natalidade e as novas técnologias na áres da reprodiçào humana, entre outras.

É importante destacar como faz Tabet:

“Nào há simetria nos papéis reprodutivos entre os sexos, e na maioria das sociedades conhecidas, homens e mulheres ocupam posições diferentes nas relaçòes de poder, o que torna improvável que uma intervenção social sobre a sexualidade seja neutra no que se refere às relações de sexo”.(1985:99)

De fato, o processo de controle da reprodução produz uma verdadeira especialização da sexualidade feminina para fins reprodutivos. Uma forma de dissociaçào entre sexualidade e reprodução: a divisão entre categorias de mulheres. Cria-se um divisão básica entre aquelas destinadas à procriação e as destinadas ao exercício proficional da sexualidade, o que cria esteriótipos como o das cortesãs e prostitutas, de um lado, e madonas e mães de outro.

Outra forma de dissociação entre sexualidade e reproduçào: a separaçào entre faixas etárias. Uma vez na menopausa, a mulher é retratada socialmente como um ser assuado. Uma vez for a do ciclo reprodutivo, parece perder o direito ao exercício da sua sexxualidade.

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Se a procriação – e portanto a sobrevivencia da espécie – é até os dias de hoje, um atributo feminino, como explica as medidas sociais que, na prática, punem a meternidade? Na verdade a maternidade tem sido empregada com uma forma de controle da sexualidade femininae da reprodução. Embora exaltada em discurso, a matenidade não é reconhecida como função social.Embora diga respeito à proópria sobrevivência da humanidade, à perpetuação da espécie à reprodução da mão de obra, tem sido tratada como um problema privado, e não como questão social. Mais do que isso, è vista como “coisa de mulher”, uma questão que diz respeito apenas á parcela feminina da população.

O projeto neoliberal, como seu corolário de individualismo e privatizaçào, tem contribuido para agravar esse problema. A maternidade e o trabalho doméstico, verdadeiros territórios do confinamento feminino, invisíveis para o conjunto da sociedade, permanecem como encargos que se somam à busca do sustento e da sobrevivência. A falência de políticas públicas, o sucateamento das poucas delegacias de mulheres, o fechamento das creches já conseguidas agravam ainda mais esse quadro. O processo acelerado de privatizações entram em choque com os anseios das mulheres de socializar a responsabilidade pela manuttençào da vida e o cuidado com os filhos, exigência básica para sua verdadeira libertação.

Olivia Rangel é jornalista e diretora da União Brasileira de Mulheres

Bibliografia

Agostinho, Santo. Confissões. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973.

Chauí, Marilena.Repressão Sexual, essa nossa (des)conhecida, São Paulo: Brasiliense. 1984

Pompeu de Toledo, Roberto.Sexo e Pecado. Veja no 12, ano 29, 20 de março de 1996. Pp 56-62

Ranke-Heinemann, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus – mulheres sexualidade e igreja católica.Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.

Rosseau, Jean Jacques.Emilio, ou da educação.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992

Sorrentino, Sara.A classe operária e a questão de gênero.Princípios no 26. (42-47). São Paulo: Anita, 1992.

Tabet, Paola. Fertilité Naturelle, reprodution forceé. In Mathieu, Claude-Nicole (org). L’arraisonnemen des femmes: essais en antroplologie des sexes.Paris. Editions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1985.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 70, 71, 72