O aniversário de dois anos do Plano Real foi comemorado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, e com a divulgação de muitos números positivos. Inflação de 3,63% no primeiro quadrimstre do ano, projeção de 15% para o ano de 1996; meio circulante estável; a balança comercial deixou de ser deficitária, acabando o primeiro trimestre em equilíbrio; voltou a haver um grande fluxo de dólares desde julho de 1995, acumulando reservas no Banco Central, até abril, de mais de 55 bilhões de dólares. O déficit fiscal, que em 1995 subiu para 5,05%, ao fim do primeiro trimestre diminuiria para 2,59%. As taxas de juros, apesar de muito altas, estariam declinando.

No entanto, fora do governo existe um reconhecimento de que há sérios problemas, havendo um sentimento de que o Plano está em perigo. Uns apontam o câmbio valorizado, outros o déficit público, outros ainda os juros, ou a falta de reformas constitucionais, ou o desemprego, ou a exclusão social, ou mesmo a concorrência dos importados. O que andará mesmo errado com o Real?

Discutiremos aqui esses problemas, a partir de uma visão mais global sobre o Plano Real em seus diversos momentos.

O déficit do balanço de serviços

Os países dependentes de um modo geral – e os latino-americanos em especial – apresentam um déficit externo permanente e estrutural. Esse déficit é do balanço de serviços. Embora possam apresentar, por períodos, saldos comerciais ou de entrada de capitais positivos, o saldo de serviços é sempre negativo. Esse saldo negativo é composto pelos pagamentos de serviços (como fretes e seguros) e, principalmente, pelas chamadas “remunerações de fatores de capital”: juros e royalties (ver quadro explicativo na pág. 5).

Qualquer plano ou estratégia econômica em um país latini-americano deve ter, explícita ou implicitamente, como referência e principal problema a equacionar, a capacidade de absorver e manter a chamda poupança externa, o capital estrangeiro, dentro do espaço econômico nacional. Essa propriedade decorre da própria essência da dependência e do pressuposto teórico de que a poupança interna de um tal país é insuficiente para ensejar o desenvolvimento nacional, a produção de riquezas e o desenvolvimento científico e tecnológico.

Essa capacidade de atrair a poupança externa de um país depende de dois conjuntos e variáveis interligadas: atrativos internos e capacidade de pagamento. Os atrativos internos envolvem fatores bastante diferentes, tanto econômicos (taxas de juros e câmbio favoráveis, oportunidade de investimento, mercados promissores, baixa tributação, vantagens comparativas em mão-de-obra e matérias-primas) como políticos (estabilidade política e institucional, legislação, posição ideológica dos governantes favorável aos investimentos externos).

Já a capacidade de pagamento significa que a quantidade de divisas que um país pode manter a fim de garantir a remessa regular, para o exterior, dos ganhos obtidos (a chamada remuneração de fatores: juros, lucros, royalties) e também a repatriação, se necessário, das quantias investidas ou emprestadas.

Embora o objetivo seja sempre a atração da poupança externa, é a manutenção da capacidade de pagamento que garante, em última instância, a possibilidade de atrair capitais e, o que é mais importante, de manter-se integrado ao sistema capitalista mundial.

Em torno desses dois conjuntos de variáveis vêm se compondo os diversos planos e estratégias econômicas do desenvolvimento brasileiro. Numa hora, o país fornece atrativos e existe uma grande entrada de capitais externos sob as mais diversas formas; noutra hora, esses capitais cessam sua entrada, aumentam a repatriação de seus ganhos e do principal investido, e o país esforça-se para manter sua capacidade de pagamento (financiamento do déficit).

O movimento pendular de entrada e saída dos capitais externos está por trás das diversas fases de crescimento e de crise. Desde a década de 50 pensadores como Celso Furtado defendem como fundamental para garantir um desenvolvimento nacional contínuo a solução do estrangulamento cambial que o país fica sujeito, cada vez que a conjuntura internacional fica desfavorável, interrompendo a dinâmica do crescimento, jogando o país de volta à estagnação.

Assim também pensam, embora por outro viés, os economistas que elaboraram e atualmente conduzem o Plano Real.

Estratégias de captação de poupança e de financiamento do déficit externo

Ao longo da história adotaram-se, ao sabor das conjunturas externas e internas, inúmeras políticas de captação de poupança externa, ou, na sua ausência, de financiamento do déficit. Existem duas formas de obter recursos externos: pelo ingresso do capital – sob a forma de investimento ou de empréstimo – ou pela obtenção de superávits na balança comercial (1), vendendo mais do que comprando. Ambas propiciam a entrada de divisas e permitem manter a liquidez e o pagamento dos compromissos em dia. O problema é que as duas formas são excludentes entre si, por motivos que veremos adiante, não podendo atuar conjuntamente, a não ser por pouco tempo, até que uma substitua a outra.

Nossa história recente mostra a alternância do uso dessas duas estratégias. Do fim da década de 60 até o início dos anos 80, fase do “milagre” e de sua crise, o financiamento foi feito via ingresso de capitais, principalmente sob a forma de empréstimos. Essa época caracterizou-se, no mercado internacional, por taxas de juros em queda e abundância de créditos, situação criada pela inflação do dólar e pela reciclagem dos petrodólares. Essa situação mudou bruscamente em 1979, com forte elevação das taxas de juros e escassez de créditos para o Terceiro Mundo, inviabilizando os países devedores.

Após o crack da dívida de 82, inviabilizada a captação de capital externo, mudou-se a estratégia para dar continuidade ao pagamento dos compromissos externos. Sob a orientação do Fundo Monetário Internacional – FMI, o Brasil de Figueiredo e Delfim Netto adotou o lema ëxportar é o que importa”. Criaram-se incentivos para os exportadores, de ordem financeiro-creditícia e cambial. No câmbio, adotou-se uma política de desvalorização sistemática da moeda nacional, que passou a ser diária, acompanhando a inflação. Isso permitiu que o preço em dólar de nossos bens fosse sempre estável ou declinante para o consumidor estrangeiro. Liberaram-se também as operações de Adiantamento de Contrato de Câmbio (conhecidas como ACC), que permitiam que os exportadores recebessem adiantado os dólares de suas expostações. Com juros externos mais baixos, aplicavam aqui, em títulos da dívida pública ou em outros papéis, com juros maiores. Assim, os exportadores obtinham ganhos financeiros que os ajudavam a serem mais competitivos lá fora. Enquanto isso, os juros altos e

Entendendo o balanço de pagamentos

O balanço de pagamentos é uma peça contábil semelhante ao balanço de uma empresa, registrando as transações de um pais com o exterior. O Balanço é dividido em duas grandes contas (ou balanços): a balança de transações concorrentes e a balança de capitais.

A balança de capitais registra o movimento de entradas e saídas de todas as transações que alteram o estoque de capitais no interior de um pais, para mais ou para menos. Registra então as contas referentes aos pagamentos e recebimentos de investimentos, empréstimos ou amortizações. Geralmente essa balança é apresentada de forma simplificada, mostrando o saldo liquido de cada conta, isto é, o resultado do que entrou, já descontado o que saiu.

A balança de transações correntes registra as contas referentes às transações comerciais ou financeiras. Ela, por sua vê, está dividida em outras três contas: a balança comercial, a balança de serviços e as transferências unilaterais.

A balança comercial registra as transações de importação e exportação de bens. A balança de serviços registra as receitas e despesas referentes a dois tipos de serviços; as dos serviços propriamente ditos (serviços reais, ou não-fatores) como fretes, seguros, viagens, consultorias etc., e as dos serviços de fatores, como juros, lucros, alugueis e royalties (são serviços de fatores por representarem os fluxos de rendas decorrentes da propriedade do capital). O saldo da conta de serviços de fatores denomina-se renda liquida enviada ao exterior.

Por ultimo, a conta de transações unilaterais registra remessas, pagas ou recebidas, feitas por fontes privadas ou oficiais, como as dos imigrantes ( como nossos dekaseguis no Japão), bem como doações e ajudas governamentais (elas se chamam unilaterais porque para essas remessas não existe contraprestação de nenhum bem ou serviço). Assim como a balança de capitais, essa conta é sempre apresentada pelo seu saldo liquido.

A soma dos saldos de comercio e de serviços, mais o das transições unilaterais, chama-se saldo em transições correntes. Esse saldo tem grande significado macroeconômico, mostra-se o pais está recebendo (se deficitário) ou remetendo (se superavitário) poupança para o exterior.

O resultado liquido do balanço de pagamentos (soma do saldo em transações correntes com o saldo de capitais) registra se o pais, no período, dependendo se superavitário ou deficitário, ganhou ou perdeu reservas internacionais, que são constituídas principalmente por divisas (moedas estrangeiras), ouro e outros direitos (como os Direitos Especiais de Saque – créditos do FMI). outras medidas recessivas freavam ao mesmo tempo a demanda de importações e a demanda interna, com o duplo objetivo de economizar divisas e de criar excedentes exportáveis. Essa perversa combinação de incentivos à exportação e recessão destruiu a moeda nacional e a capacidade fiscal do Estado.

Nesse período, ao déficit em conta corrente somou-se a necessidade de pagamento dos empréstimos tomados ao longo da década de 70. Com efeito, durante os dez anos que vão de 1982 a 1991, remetemos para for a, sob a forma de serviços, juros, lucros e amortizações de empréstimos, a impressionante cifra de US$ 215 bilhões, tendo conseguido acumular saldos comerciais de US$ 116 bilhões e recebido em capitais apenas US$ 61 bilhões (2). A enorme desproporção desses números revela que o financiamento do déficit externo, apesar do esfoço exportador, foi deficiente, explicando a necessidade que teve o país de renegociar por diversas vezes sua dívida externa, chegando inclusive a decretar moratória por duas vezes, suspendendo parcialmente o pagamento do serviço da dívida.

A fase de crescimento recente e a estratégia do Real

Mas ao fim da década de 80 a situação do mercado internacional tinha mudado. Além de profundas modificações na sua estrutura provocadas pela globalização, com a recessão americana, as taxas de juros voltaram a cair, e o capital e o crédito voltaram a ficar abundantes. Era possível captar outra vez a poupança externa, e o Brasil entrava em nova fase de desenvolvimento capitalista (3) (ver gráfico 1).

Embora desde 1989 houvessem sido adotadas medidas no sentido de liberalizar a entrada e a saída de capitais financiados no país, foi o governo Collor que implementou uma radical mudança na política e na estratégia da economia nacional.

De olho nos exemplos do México e do Chile, e depois da Argentina, que a essa época atraíam bilhões de dólares para suas economias, o governo Collor aderiu à agenda de prioridades do Primeiro Mundo e do mercado financeiro internacional. Fez profundas modificações na legislação de comércio exterior e de câmbio, desmontou as barreiras de importação, liberando a entrada e a saída de capitais monetários, até então restritas e totalmente centralizadas no Banco Central. Em 1992, já com Marcílio Marques Moreira à frente do Ministério da Economia, a taxa real do juro básico da economia (4), que tinha sido de 5% no ano anterior, pulou para 30% (ver tabela 1).

O objetivo dessas mudanças era atrair capitais externos pela expectativa de ganhos com as elevadas taxas de juros internas, ditadas pela taxa da dívida pública e pela adoção de mecanismos cambiais que garantiam liberdade de entrada e saída desses capitais. Essas mudanças, induzidas pela nova conjuntura do mercado financeiro internacional, eram fruto de uma outra estratégia de crescimento e de uma correspondente estratégia de financiamento do déficit externo, que voltava a ser, como na época do milagre, baseada na entrada de capitais forâneos.

O Plano Real veio dar coerência a essa nova estratégia, ainda sujeita, até então, a diversos empecilhos e inconsistências, como a manutenção do incentivo às exportações. O objetivo era, a partir da consecução da estabilidade da moeda nacional, vinculada a reservas em dólares, concluir a construção de um ambiente atrativo e seguro para receber uma grande quantidade de poupança externa. Por conta das baixas taxas de juros dos países centrais, capitais de risco estavam ávidos por ganhos nos chamados mercados emergentes. Caso o Brasil lograsse atingir a estabilidade monetária e política de outros países latino-americanos, e garantindo ganhos a esses capitais, poderíamos dispor de forma continuada dessa “poupança”, financiando assim nosso desenvolvimento.

Esse Plano encaixava-se numa estratégia, já iniciada, de restruturação da economia brasileira. Abandonou-se o modelo até então praticado de aquisição de um parque produtivo complexo e diversificado pela substituição de importações, adotando-se um modelo globalizado, priorizando setores onde pudéssemos obter vantagens comparativas frente ao mundo, abandonando e susbtituindo-se por importações as atividades em que não pudéssemos concorrer no mercado internacional. Com as divisas que afluíssem, financiaríamos não só o déficit de serviços, como a importação de bens de produção para modernizar e ampliar a produção nacional.

A moeda estabilizada valorizou-se frente ao dólar americano, barateando-se e encarecendo nossas exportações. Esse efeito caiu como uma luva para os objetivos do Plano de reestruturar a economia e controlar preços. Rapidamente propiciou uma grande elevação das importações de máquinas (5), como também de inumeráveis insumos, componentes e bens de consumo, acelerando os ganhos de produtividade de alguns setores e sucateando outros com menor competitividade. A esse processo o diretor do Banco Central e um dos mentores do Real, Gustavo Franco, citando Schumpeter, chamou “destruição criadora.

A conseqüência dessa mudança revelou-se numa drástica inversão do saldo comercial, com o superávit transformando-se em poucos meses em um déficit significativo. Guardando a coerência, no final de 1994, esse déficit comercial foi apresentado pelo Ministro da Fazenda da época e por Gustavo Franco como um efeito desejável e corolário do Plano Real (o que era verdadeiro), tendo Franco declarado clara e taxativamente que “a lógica da política cambial é produzir redução das exportações, aumento das importações, déficit em conta corrente no Balanço de Pagamentos e, portanto, retornar o país a importador de capitais. Essa importação, junto com a poupança interna, acumulada pelo setor privado, é que vai financiar o crescimento econômico” (6).

A questão da dívida externa, que assombrou o país por mais de uma década, era considerada, após a renegociação de maio de 1994, como problema solucionado e assunto demodé. Tal era a confiança das autoridades na capacidade de financiamento pela entrada de capitais que completavam: “isso significa que os exportadores que conseguiram competitividade internacional porque cobriam ineficiências com ganhos financeiros (alusão aos ACCs) tenderão a se dar mal com a nova política cambial, quer se voltem para o abastecimento do mercado interno ou procurem outro ramo de atividade” (7). Ou seja: com o Plano Real, tinha chegado ao fim o tempo em que se obtinham superávits comerciais e em que o déficit era não só perfeitamente financiável pela entrada de capitais, como também necessário.

Com efeito, nos primeiros meses do segundo semestre de 1994, além da mudança da política cambial, o Plano desativou todos os incentivos à exportação, limitando drasticamente, inclusive, a utilização de adiantamentos de contratos de câmbios (ACCs).

O Real veio assim consolidar e tornar coerente a nova estratégia para as contas externas iniciada no governo Collor. Essa estratégia era, então, apoiar-se na entrada de capital monetário externo, considerada firme, financiar o déficit externo e até aumentá-lo, utilizando o superávit financeiro conseguido (fluxo nominal da poupança externa) para aumentar as importações (fluxo real, contrapartida do nominal), alavancando o crescimento nacional.

E havia razões para sustentar tamanha confiança na firme oferta de capital estrangeiro. A partir de 1992, o fluxo líquido de capitais para o país, que vinha sendo de modo geral negativo desde o início da década de 80, passou a ser crescentemente positivo. Foi de US$ 7,8 bilhões em 1992, US$ 9,3 bilhões em 1993, e US$ 20,7 bilhões no primeiro semestre de 1994 (8). Os juros internacionais continuaram em baixa até o início do ano de 1994, propiciando a vinda de capitais em busca de oportunidades em mercados exóticos. Não havia prognóstico de que essas taxas voltassem a subir de forma duradoura.

A crise do México e as mudanças na política cambial

Mas durante o primeiro semestre de 1994 as coisas já estavam mudando no mercado internacional. Os claros sinais que apontavam para o fim da recessão nos Estados Unidos marcaram uma virada na política monetária do FED americano. Levado pela paranóia antiinflacionária, o FED passou a elevar de maneira sistemática a taxa de juros básica, elevando com isso o conjunto das taxas de juros no mundo. No ano de 1994, enquanto a prime rate passava de 6% para 8,5% a libor subia de 3,43% para 6,76% (ver gráfico 1).

Com essa elevação nas taxas de remuneração, o capital monetário do mundo começou a refluir de volta à metrópole. Em um primeiro momento, os capitais deixaram de afluir aos chamados mercados emergentes, quebrando o círculo que permitia a esses mercados financiarem seus déficits com mais dinheiro externo, e deixando os países mais expostos, como México e Argentina, em dificuldades. Em um segundo momento, ao final do ano, o mercado percebeu que as reservas de divisas de certos países estavam minguando; instalou-se então o pânico e começou a fuga em massa que terminou com a quebra do México e a concordata da Argentina.

Essa inversão dos fluxos surpreendeu o Plano Real em seu início, provocando, para um observador desatento, um estranho fenômeno. De fato, durante o primeiro semestre de 1994 entraram no país US$ 15 bilhões em capitais líquidos, mas no segundo semestre a situação inverteu-se bruscamente, registrando-se uma saída líquida de US$ 738 bilhões (ver tabela 2). A torrente de capitais tinha repentinamente estancado, assim que se iniciou o Plano Real, um plano feito para os investidores estrangeiros e de acordo com eles, e quando o candidato a Presidente da República por eles apoiado vencia o primeiro turno!

Esse estranho fenômeno ilustra bem o funcionamento de uma economia dependente nas condições de um mundo globalizado. Mostra que mesmo a construção do melhor dos ambientes pode redundar, por força do movimento exógeno do capital, em resultados medíocres ou mesmo em desastre.
Porém, como se pode ver na tabela do Balanço de Pagamentos (ver tabela 2), já no segundo semestre de 1995 registrou-se uma grande recuperação na entrada de capitais e na balança comercial, trazendo júbilo ao governo. Essa recuperação deve-se não só às medidas tomadas pelas autoridades brasileiras, assustadas com o caso mexicano, como

A queda de Domingo Cavallo

Ao fim do mês de julho, a notícia da demissão do ministro da Economia da Argentina, Domingo Cavallo,foi recebida com júbilo pela população e pelos trabalhadores, e com preocupação pelos meios financeiros local e internacional. No entanto, parece que nada vai mudar.

Passado o período da euforia dos primeiros anos do plano de estabilidade neoliberal, que tornou, por força de lei, o peso argentino igual ao dólar; a Argentina começou a sentir o preço cobrado pelo capital financeiro. A herança deixada pelos anos do "milagre neoliberal" está sendo bem amarga para a maioria do povo argentino. A imagem rósea daquele país, tão laboriosamente construída pela mídia nacional e internacional, vai sendo pouco a pouco substituída por uma dura realidade de empobrecimento, desemprego, exclusão social e evasão de riquezas.

Quando se iniciou o plano de estabilização, em 1991, existiam, na Argentina 888 mil desempregados. Agora em maio os desempregados eram 2,04 milhões, além de mais de 1,5 milhão de subempregados. De sua população, 25% agora vive abaixo do limite de pobreza, e 15% pode ser considerada miserável. Uma nação que há cinco décadas tinha superado os aspectos mais pungentes da pobreza e do analfabetismo hoje fica chocada com imagens de televisão mostrando, em favelas da cidade de Rosário, crianças caçando gatos para comer.

Ao lado disso, multiplicaram-se os casos de corrupção e de sonegação fiscal envolvendo diversos ministros, inclusive o próprio Cavallo, que teve suas contas bancárias expostas na televisão, mostrando que, embora ele tivesse auferido renda equivalente a mais de 260 mil dólares, só declarou à Receita US$ 59 mil. Estima-se que as classes dominantes argentinas sonegaram do fisco, no ano passado, mais de 25 milhões de dólares.

A economia foi em grande parte sucateada. Apesar de ter angariado US$ 25 milhões com a privatização de suas estatais, a dívida externa cresceu para US$ 91 bilhões, enquanto a dívida pública chegou a 82 bilhões.

A custa desse enorme ônus, uma pequena minoria enriqueceu, e também ficaram mais ricos as suas classes dominantes e seus sócios estrangeiros.

Mas a quebra do México mostrou o esgotamento do modelo neoliberal, e a "estabilização neoliberal" de Menem e de seu Ministro Cavallo já não funciona mais como antes, exigindo cada vez mais sacrifícios dos argentinos. O Ministro Cavallo, já muito desgastado, fez uma última investida, enviando ao Congresso um pacote que implicava a redução de salários de 2,4 milhões de argentinos, a diminuição de benefícios da previdência social e a demissão de mais 30 mil servidores públicos.

Foi a gota d'água. Menem viu que com o seu ministro desgastado não conseguiria mais impor o ônus de seu plano à população. O resultado foi sua substituição por outro economista ortodoxamente confiável, também doutorado na escola de Chicago, na esperança de podei; com um novo ministro, continuar a sua política neoliberal. Ou seja, mudou-se para continuar tudo igual.

É claro que essa troca de guarda implica riscos. Um mercado financeiro altamente volátil fica sempre sujeito a movimentos de pânico, e o perigo de uma corrida especulativa contra o peso argentino – que pode desdobrar-se para o real e outras moedas latino-americanas – existiu e continua presente. Essa ameaça especulativa contra a Argentina também se estende ao Brasil e aos outros países sul-americanos, porque estão todos no mesmo figurino neoliberal, tiveram suas economias abertas, tornando-se dessa forma, ainda mais vulneráveis aos caprichos do mercado financeiro internacional.
As lições da tragédia argentina, como da mexicana, são muitas. Em especial para o Brasil, que, tendo se atrasado para se engajar no projeto neoliberal, pode contemplar o seu futuro no presente infausto dessas nações-irmãs.

Lécio Morais pela frustração de expectativas dos capitais monetários com a estabilização das taxas de juros internacionais que, durante 1995, pararam de subir, mantendo-se no patamar a que chegaram em 1994 (ver gráfico 1).

De toda forma, são as medidas adotadas pelo governo Fernando Henrique o que nos interessa discutir, e ver como elas modificaram a estratégia original do Plano Real.

A crítca conservadora sobre os acontecimentos no México centrou-se sobre a imprudência daquele país em acumular, por anos seguidos, déficits crescentes na balança comercial, fazendo com que a culpa do desastre fosse mais uma vez dos países dependentes. Não esclareciam que o México, assim como outros países (inclusive o Brasil do Plano Real), ao aceitarem a enorme entrada de capitais, não tinha outra coisa a fazer senão adquirir bens e serviços no exterior porque essa era a estratégia de crescimento adotada pela versão de modelo neoliberal preconizada para os “mercados emergentes”: liberalização de importações e moedas dolarizadas. Com as moedas atreladas ao dólar (com câmbio fixo ou não) e uma enxurrada de capitais entrando, o câmbio só pdoeria valorizar essas moedas, barateando importações, que agora, livres, cresciam, ocasionando inevitáveis déficits. Dessa crítica resultava, para os mercados emergentes, a constatação de que, em troca de facilitar a entrada de dólares, exigia-se que eles os mantivessem disponíveis, só podendo utilizá-los transformando-os em poupança real, de forma parcimoniosa, o que aumenta em muito os custos dessa poupança.

Outra coisa que resultou da crise do México foi a compreensão – para os demais países – de que o fluxo de capitais não podia ser permanente, nem era confiável.

Essa novar realidade caiu como uma bomba sobre o novo governo no dia mesmo de sua posse. A estratégia sob a qual tinha sido montado o modelo que culminou com o Plano Real, baseada em uma oferta firme de capital externo para financiar as contas externas, acrescidas do déficit comercial, não era mais aceitável pelos investidores internacionais. A opinião pública interna e externa, recentemente formada pelos especialistas da mídia, apontava para o México e dizia que um país, para ser confiável, agora também não poderia manter déficits comerciais. Durante os dois primeiros meses de 1995, em meio a grande instabilidade do mercado internacional, travou-se uma luta surda dentro da equipe do governo para traçar novos rumos do Plano Real, que tinha acabado de ter sua estratégia inviabilizada.

Aparentemente, como veremos, essa luta acabou em empate: continuou-se com o objetivo de atrair e acumular capitais monetários e, ao mesmo tempo, adotaram-se medidas que desestimularam a importação e incentivaram a exportação.

A política de comércio exterior sofreu profunda modificação. Vejamos como explica isso o Relatório Anual do Banco Central para 1995.

“No início do ano, a política de manuntenção de déficits comerciais foi reavaliada [grifo meu], diante da incerteza quanto ao aprofundamento de déficits em transações correntes, num cenário de instabilidade nos mercados financeiros externos. Assim, o governo procurou estabelecer uma estratégia visando reequilibrar os fluxos de comércio. Inicialmente, atenção especial foi dada ao setor exportador, com vistas a aumentar as receitas com as vendas externas. Posteriormente, ações foram desenvolvidas no sentido de regular as importações em setores menos prejudiciais ao processo de estabilização de preços e de modernização do parque produtivo” (9).

Para incentivar as exportações o governo voltou a liberar, em janeiro de 95, os famosos ACCs, concedendo-lhes maior prazo de antecipação – seis meses – e até um ano para pagar. Com isso o exportador pode receber dólares até seis meses depois da venda. Nesse perído, ele, que tomou os dólares a 8%, pôde usar aplicações aqui que pagam até 30%, embolsando a diferença ou diminuindo o custo do produto exportado. Voltou-se a conseguir competitividade com ganhos financeiros, prática condenada por essas mesmas autoridades havia apenas três meses!

Acresça-se o fato de que o governo também concedeu aos exportadores, além da isenção de tributos, o reembolso de 5,37% sobre suas aquisições de insumos, a título de crédito presumido de PIS/Pasep e da Cofins, pagos por seus fornecedores, que pode ser recebido em crédito de IPI ou em dinheiro, direto do Tesouro.

As importações de bens de consumo foram restringidas temporariamente via aumento de tarifas, alguns considerados ilegais pelos acordos comerciais da Organização Mundial do Comércio – OMC. O imposto de importação para bens de consumo duráveis (automóveis e eletroeletrônicos) para 109 componentes da indústria automotiva e para os têxteis foi elevado de 20% para até 70%. E doze itens de produtos da área de artefatos de couro tiveram suas alíquotas majoradas de 20% para até 63%. Outros itens como derivados de leite, borracha e ferro fundido também tiveram aumento de taxação, sendo inclusive necessário alterar a lista de exceções da tarifa comum do Mercosul – embora, em contrapartida, por medida antiinflacionária, fossem reduzidas a zero as tarifas de 136 componentes e insumos dos setores de alimentos, plásticos, química, aço e têxtil.

Mas a grande mudança de política foi quanto ao câmbio. A partir da circulação do real e até o início de 1995, o Banco Central não intervinha mais no mercado de câmbio. O real valorizou-se frente ao dólar, chegando até, em fim de outubro, a ser cotado a 82 centavos por dólar. Depois da crise mexicana, e após dois meses de indefinições, o governo implementou uma nova política substancialmente diferente. Criou a chamada banda de variação, com taxas máximas e mínimas, comprometendo-se o Banco Central a atuar no mercado quase todos os dias, por meio de compra e venda de dólares ou, depois, por meio de leilões de spread (10), restabelecendo (embora não se admita (11)) a antiga polítca da década de 80 de controlar e ditar a taxa de câmbio mais conveniente à política do governo.

Com a própria banda sendo também reajustada, o real passou a ser periodicamente desvalorizado, acompanhando a taxa de inflação interna, ou, em alguns períodos, superando-a, como antigamente, embora com métodos mais sofisticados (12). Aliás, essa banda que “escorrega” foi inventada no México (de onde também veio o empréstimo do nome “banda” – “faixa” em espanhol), que adotou a partir de 1992, ao que se viu, sem bons resultados. Na prática, voltou-se a incentivar nossos exportadores, promovendo uma equalização de seus preços internos para com o dólar, gerando com isso uma pressão constante sobre a taxa de inflação, suficiente para termos indíces mensais pequenos mas sempre positivos. É essa inflação induzida, que ficou sem controle nos anos anteriores, que permite a transferência de renda de outros setores (especialmente das rendas fixas, como o salário) para o setor exportador.

O conjunto desses mecanismos de incentivo à exportação (fiscais, creditícios e cambiais) ameniza sobremaneira a tão famosa e reclamada sobrevalorização do real frente ao dólar. Ficaram mais prejudicados apenas os pequenos, que quase não têm acesso aos ACCs. Para um grande exportador, contados os incentivos, calcula-se que sua taxa de câmbio efetiva, em junho de 1996, era pelo menos 1,12 real por dólar, e não a taxa nominal ao par (um para um) como vigia naquele mês.

O conjunto dessas medidas propiciou, a partir do segundo semestre de 95, o reequilíbrio da balança comercial, tanto pela estabilização do valor das importações como pelo acréscimo das exportações (ver tabela 3).

Apesar de todas essas mudanças, o governo continuou a adotar medidas para atrair capitais externos e evitar que os já internacionalizados saíssem do país. Eliminou, durante o primeiro semestre, o pagamento do imposto sobre operações financeiras para o ingresso de recursos sob a forma de empréstimos ou para aplicação em títulos; reduziu os prazos mínimos de captação de 36 para 6 meses, entre outras medidas. No entanto, e no sentido inverso dessas liberações, tratou o Banco Central, ressacado com o ataque especulativo à nossa moeda em março de 95, de reduzir de 50 para 5 milhões de dólares o teto do valor de que os bancos poderiam dispor apra atuar no mercado de câmbio. Isso centralizou, na prática, quase todas as divisas no Banco Central, voltando para o Brasil dessa segunda fase do Plano Real ficar ainda mais parecido com o dos anos 80.

Mas a principal medida de atração do capital externo foi a elevação das taxas de juros. A taxa básica do banco Central (overnight/selic) que foi em média de 2,04% no segundo semestre de 1994, subiu para 2,42% no ano de 1995 (13). Álias, essa foi a única medida que cumpriu um papel de integração entre as duas diferentes estratégias. Os juros elevados, à medida que servem de atração ao capital externo, freiam também a demanda interna, ajudando a equilibrar a balança.

Desse modo, passaram a conviver na política econômica duas estratégias simultâneas e opostas – uma em impedir o déficit na balança comercial ou outra que continua a captar divisas e atrair capital externo, Essa situação de denuncia pelo acúmulo formidável de reservas, que custa caro manter. De fato, essa nova estratégia enxertada no Real é, por alguns ( especialmente os do Banco Central), justificada como temporária, até que os mercados financeiros voltem ao normal; para outros como ( José Serra) ela seria um complemento à abertura comercial e teria uma duração mais prolongada. O difícilé entrever um horizonte, pelo menos a médio prazo, que viabilize o abandono da incômoda nova estratégia.

Essas mudanças foram convenientemente apoiados pelos organismos internacionais. O BIRD e o FMI, apesar do discurso liberalizante, chancelaram publicamente medidas de restrição às importações, desde que a balança se reequilibrasse e não houvesse no Brasil uma outra corrida e a crise cambial igual a do México. Essa atitude também conveniente foi adotada por todos os principais governos do mundo, mesmo por aqueles, como no Japão e na Coréia do Sul, que foram grandemente prejudicados em suas exportações. Só em meados de 1996, passado o susto, é que esses governos voltaram a se manifestar contra as barreiras às importações impostas pelo Brasil há mais de um ano.

A incompatibilidade entre superávits de capitais e de comércio

Até agora viemos descrevendo fatos econômicos, Vejamos agoara com mais detalhes como funcionam alguns mecanismos econômicos envolvidos e onde reside a incompatibilidade entre superávits comerciais e superávits de capital.

Armados de certa dose de paciência, vejamos como funcionam dois casos de relações de um país dependente com o resto do mundo, que expomos no início do artigo. Chamamos a atenção para o fato que a exposição, em benefício da clareza, está feita de forma simplificadae, no possível, sem utilizar linguagem técnica. Aqui nos interessa compreender a essência do processo.

No primeiro caso, temos um país em desequilíbrio, que exporta mais do que importa, e seu superávit, única fonte de divisas, é destinado a saldar dívidas contraídas anteriormente, e a pagar os serviços de fatores como lucros e juros.

Como toda a divisa que entra e sai, a moeda nacional não receberia impacto inflacionário se os exportadores ( que transformaram a divisa em moeda nacioanl) fossem os mesmos devedores ( que fazem a operação inversa)). Como não é assim, essas divisas são primeiro trocadas por moedas nacionais, que aumentam de quantidade e passam a circular, até que os devedores as obtenham para fazer a operação inversa, pagando suas dívidas e mandando as divisas de volta ao exterior. No primeiro momento, esse acréscimo da moeda nacional não tem nenhuma correspondência em novos bens ( pois corresponde aos bens que foram exportados). Havendo mais moeda do que coisas para comprar, gera-se uma subida desorganizada de preços. Essa inflação funciona como tranferidora de renda. Até que o dinheiro se transforme outra vez em divisas e saia do país, perde quem tem renda fixa, como salários e aluguéis. Por meio dessa inflação, aqueles que devem transferem o ônus de suas dívidas para outros, cujas rendas não não acompanharam as taxas de inflação. Esse é um dos processos que geram concentração de renda: os mais ricos fazem dívidas, mas quem paga são os mais pobres.

Para que os exportadores, que geram as dívisas, não sejam vitimados pela inflação, a moeda nacional tem que ser desvalorizada frente ao dólar, pelo menos na mesma taxa de inflação, compensando a desvalorização interna. Protegem-se os exportadores, mas realimenta-se a inflação.

Mas não é só isso. Como o país está enviando uma parte do que produz para o exterior, ele na verdade está transferindo sua poupança ( o que ele produz e não consome) para fora, para outros países. Isso gera a estagnação e inflação cunhou-se o neologismo estagflação.

Ainda nesse caso, para contornar o problema da inflação, há uma forma de evitar que, pela entrada de divisas, haja mais moeda em circulação. Para isso o governador vende títulos na quantidade suficiente para retirar o acréscimo da moeda nacional que não tem correspondência em bens para comprar. É a solução de aumentar a dívida pública. Porém esse remédio tem o preço e limitações. Pois, é claro, o governo tem que pagar juros para que os que têm dinheiro aceitem trocar por títulos. E a limitação maior desse remédio é que, se a situação se prolonga, o volume de títulos fica tão grande que tende a provocar duas coisas: os juros vão ficando mais caros, e os papéis vão ficando com prazo cada vez mais curto, terminando, em casos extremos, por vencerem ( e serem reemitidos) todos os dias.

Quando isso acontece, os títulos que serviam para tirar a moeda de circulação passam, eles próprios, a servirem de moeda. Aí o remédio perde o efeito, e o país passa a viver um peródo de hiperinflação, ocasionando, de quebra, a ruína fiscal do Estado.

Como se pode reconhecer facilmente , a grosso modo, esse foi o processo vivido pelo Brasil na dçada de 80 e início da década de 90.

Vejamos agora o segundo caso. Um país tem uma balança equilibrada e recebe capital externo, sob a forma de divisas ( moeda estrangeira), em quantidade maior do que necessita para pagar seus serviços de fatores e as amotizações devidas.

Caso essas divisas sejam convertidas em moedas local, pois pasaria a viver o mesmo problema do país do primeiro caso, pois não haveria bens novos para comprar. Por isso os países utilizam essas divisas para comprar bens e serviços lá for a. Com isso, passa-se a ter déficit comercial, porém se internalizam bens e se equilibra a moeda nacional, pois haverá produtos novos ( os importados) para comprar com o acréscomo advindo da conversào. Desse modo, o país utiliza a poupança dos produtos para acrescer ( a não ser que só se importem bes de consumo).

É claro que a poupança externa tem um preço. São o pagamento dos serviços de fatores (juros, lucros etc), e, se esse capital veio sob a forma de empréstimo, contrai-se a obrigação de pagá-lo no futuro. Por isso prefere-se que os capitais venham sob a forma de investimento direto, e nem sempre é possível conseguir. Para lograr pagar esse preço, um país tem que resolver dois problemas. Primeiro, os setoes que recebem essa poupança externa devem crescer em taxas maiores do que as taxas de juros ( ou de lucros) que enviam ao exterior; caso contrario, om país passará a sofrer uma sangria e trabalhará para o exterior, invertendo a mão da poupança ( pagando em vez de receber). E segundo, para fazer esses pagamentos dos serviços de fatores, ele só poderá obter divisas caso continue a entrar capital, já que as divisas anteriores, para manter o equilíbrio monetário, tiveram que ser gastas com importação e pagamentos de serviços de fatores.

Assim, o país passa a ficar cada vez mais necessitado de inversões externas. E esse fluxo não pode cessar, sob o risco de acontecer uma crise cambial. Nesse caso, ou o país rompe com o sistema capitalista internacional, ou precisa passar a ter superávits na balança, para, desse modo, conseguir as divisas de que precisa para continuar honrando seus compromissos ( voltando assim ao primeiro caso que vimos)

Nesse segundo caso, o cambio e os preços internos tendem a ficar estáveis, pois a entrada livre de capitais sustenta o valor da moeda nacional. Só ao fim da fase as dificuldades crescentes com o controle do déficit externo fazem com que a moeda local comece a se desvalorizar, tanto no câmbio quanto internamente.

Como se pode reconhecer facilmente, esse foi o processo vivido, pelo Brasil no fim da década de 60 até o crack da dívida de 1982.

Ainda nesse segundo caso, quando há entrada de capitais, mas não é possívle, ou desejável, realizarem-se déficits comerciais, estabelece-se forte desequilíbrio monetário, pelas razões já descritas do excesso de moeda disponível pela conversão de divisas estéreis.

Nessa situação, pode o governo lançar mão do expediente da emissão de títulos públicos, mas com as mesmas limitações e consequências já vistas no primeiro caso. Mas há ainda uma outra alternativa: o superávit fiscal.

Quando acontece de um governo arrecadar mais do que gasta, dinheiro é retirado de circulação, deixando de existir – o qie funciona de modo a neutralizar a emissão de meio circulante pela conversão de divisas. Isso substituiria, com vantagem , o mecanismo de emissão de títulos da dívida pública, pois não haveria o risco posterior de monetarização desta. O prblema com essa solução é político, já que, na prática, transfere-se receita tributária ou prestação de serviços públicos para os detentores de divisas e para realizar ganhos fianceiros. Abrir mão da defesa pública afeta não só povo, como também os setores das classes dominantes. Por isso o superávit é quase sempre ima solução a qual lançar mão, e a mais difícil de de conseguir e manter.

Podemos acompanhar a tragetória do Brasil, de um modelo para outro, no gráfico 2, no período de vai de 1978 até 1995 ( com valores atualizados). O gráfico 3 traz em detalhe, com valores trimestrais, o período do Plano Real. (14)

Observe-se no gráfico como existe uma tendência de a curva de entrada de capital se inverter com a curva do saldo comercial – subindo uma, a outra desce. Nesse caso, registram-se tanto períodos de crescimento (1968-80) como de estagnação (a década de 80, quando a entrada de capital, afora 1988, foi apenas residual). Quando as curvas seguem a mesma tendência, registram-se situações de crise e/ou transição. Quando as duas curvas subiram aos mesmo tempo, ou mantiveram saldos positivos simultâneos, registraram-se hiperinflações: períodos de 1988-89 e de 1992-94 (até o 1o. semestre), motivados pelo mecanismo da grande conversão de divisas conjugado com uma dívida pública em quase-moeda. Quando baixaram ao mesmo tempo, ou mantiveram saldos simultâneos, tivemos crises cambiais (1982 e início de 1995).

A partir de 1992 (entrada de Marcílio Marques Moreira no ministério), entramos em nova fase. Apesar da hiperinflação, a abundância de divisas criou um certo clima de euforia. Porém o crescimento que aconteceu deveu-se mais à utilização da capacidade ociosa, pois a poupança externa não pode se transformar de forma significativa, em investimento real (produtivo), já que a inexistência de déficit comercial não o permitiu.

O Plano Real, ao iniciar-se buscou restabelecer o equilíbrio necessário da nova fase, produzindo o déficit comercial correspondente ao superávit de capital, para com isso internacionalizar a poupança externa – processo que foi rapidamente abortado pela crise mexicana.

A mudança de política tornou-se necessária, pois a situação marchava para uma crise cambial grave. Como estávamos no início do processo, pudemos revertê-lo de forma rápida. Porém a continuidade da política anterior de incentivos à entrada de capital provocou o surgimento da atual situação incoerente, e não-sustentável a longo prazo. A nossa montanha de divisas tornou-se estéril, serve apenas para mover a ciranda financeira ou para promover compras de controle acionário de empresas.

O aumento simultâneo das duas curvas, ou a impossibilidade de gerar déficits comerciais pela desconfiança que se tem na manuntenção (ou até na inversão) do fluxo de capitais, tende a criar o pior dos mundos. Primeiro, diminui nossa poupança externa, impedindo o crescimento em níveis adequados; segundo favorece a concentração de renda; terceiro, cria mais ônus financeiro ao Estado, impondo-lhe uma maior carga fiscal (mais impostos e/ou mais déficit), o que dificulta alcançar superávit; quarto, gera uma dívida pública interna que cresce num ritmo galopante; e, quinto, sustenta sobre a moeda uma pressão inflacionária latente e crescente.

São os reflexos dessa situação de tendências conflitantes e incoerentes que vêm gerando a percepção, empírica ou intuitiva, de intranqüilidade e desconforto para a classe dominante e para as camadas médias da sociedade. Como não há por parte dessas classes propostas alternativas claras, a insatisfação traduz-se também por reivindicações setoriais, ou incompatíveis entre si, ou que atingem mecanismos essenciais ao processo de estabilização monetária, ou viabilidade do Estado ( como desvalorização da moeda, queda das taxas de juros, consessão de subsídios, fim do déficit público com diminuição de tributos etc.).

Há por parte do governo compreensão da instabilidade da situação. Mas acha-se preso numa espécie de armadilha de liquidez. Reservas estéreis custam caro e prejudicam a capacidade econômica, mas ele tem que manter reservas crescentes, pois, caso haja diminuição destas, o mercado, cada vez mais líquido e especulativo, pode interpretar como falta de confiança, ocasionando fuga e crise cambial. Isso destruiria nossa capacidade de pagamento, jogando o país no abismo do México. Dessa armadilha só se pode sair lentamente, qualquer movimento brusco pode ser um desastre. O acúmulo de divisas, improdutivas e caras, é, para o governo, o preço necessário para menter-nos integrados ao sistema mundial. Essa desintegração constitui seu maior temor e pesadelo.

Rumos e perspectivas do Real

A alternância entre fases de expansão e concentração é própria do desenvolvimento capitalista. Dizer que o Plano Real está em fase de dificuldade, que ele perdeu o seu eixo estratégico, não significa uma situação inexorável ou sem soluções. Pelo contrário, diante da atual correlação de forças no mundo e da experiência recente de países como o México e a Argentina, as saídas a curto prazo de uma crise nesse modelo mostraram ser a adoção de medidas que aprofundaram ainda mais o modelo, com maior abertura externa, maior desregulamentação e maiores garantias aos investidores externos.

A própria retomada da estratégia original – da globalização e do crescimento baseado em déficits comerciais, financiados pela entrada de capitais externos – é não só possível como factível. Porém não depende do Brasil, de seu governo ou de um economista particularmente brilhante. Isso dependerá de dois fatores exógenos, a saber: o estabelecimento de uma nova tendência de queda nas taxas de juros internacionais, e uma postura menos conservadora quanto a riscos, e portanto mais disposta a ser condescendente para com altos e continuados déficits de balaço de transações correntes. A primeira condição, embora possível de se predizer, poderá instalar-se até a médio prazo, mas a segunda deverá demorar mais um pouco, até que as pressões de mercado induzam os organismos internacionais e as firmas de consultoria e análise de riscos a reverem os atuais critério de liquidez para os “mercados emergentes”.

Caso haja continuidade da atual situação, com taxas de juros internacionais estáveis, é de se esperar que as tendências permaneçam: entrada de divisas via investimento direto ou portfólio, balança comercial em equilíbrio (com um déficit em conta corrente estável mas crescente), taxas de juros altas, mas com declínio nominal por um período; economia com baixo crescimento, desemprego em alta moderada mas constante e uma crescente dificuldade com o controle da taxa inflacionária. A curto e médio prazo, podemos ter uma certa recuperação do nível de atividade e do emprego, com taxas de juros nominais declinantes. Mas a dívida pública continuará se elevando aceleradamente.

O risco dessa situação, a longo prazo, é a monetização dos títulos da dívida, acarretando o descontrole do meio circulante e forte desvalorização do rela. Voltaríamos a ter o quadro imediatemente anterior ao do Plano Real, mas com a diferença de que o fluxo de capital externo se inverteria, podendo chegar rapidamente à crise cambial.

Uma solução efetiva que modificaria essa tendência à crise seria a obtenção de superávit fiscal. O que originalmente, quando poderiam existir déficits comerciais, não era tão urgente, passou a ser, nesta fase intermediária, umameta necessária e essencial. Não é à toa que essa medida vem sendo insistentemente pregada pelos porta-vozes e economistas do grande capital, pela mídia e pelo governo. Já vimos a mecânica do superávit fiscal, como ele atua para manter o equilíbrio macroeconômico, e como é politicamente difícil sua consecução.

Esse superávit deve ser conseguido às custas de corte nas despesas fiscais,já que há um consenso entre o capital e as autoridades econômicas de que não é desejável aumentar a carga tributária (veja-se, por exemplo, as agruras por que passou o Ministro Adib Jatene com a sua CPMF). Isso torna difícil e exeqüibilidade desta solução, pois a magnitude que esse superávit deveria atingir para ser totalmente eficaz, somada com o atual déficit, além de demorar para ser atingida, representaria um colapso na capacidade de investimento e na maior parte dos serviços públicos prestados pelo Estado, com um custo social e político elevadíssimo (somando-se o déficit operacional registrado em 1995, de R$ 31,4 bilhões (15), com um superávit significativo, o corte alcançaria, no mínimo, um quinto dos atuais orçamentos na União, estados e municípios, exclusive juros e amortizações da rolagem da dívida mobiliária).

Uma meta menos ambiciosa de superávit, destinada a compensar pelo menos os juros da dívida (evitando a emissão de títulos para esse fim) já ajudaria bastante esse equilíbrio, diminuindo o risco de monetarização da dívida e a taxa de juros vigente (pelo efeito confiança). Mesmo assim o montante do corte exigido dificilmente significaria menos de um décimo dos orçamentos vigentes.

Nesse contexto, as reformas previdenciária, do Estado e tributária tomam sua verdadeira dimensão. É quase impossível extinguir qualquer superávit sem essas reformas. Elas são partes cruciais da estratégia de sobrevivência do Plano Real.

Mas, no fundamental, os destinos do real dependem mais da confiabilidade política, especialmente externa, que tenha o governo de Fernando Henrique Cardoso, do que do desempenho de quaisquer variáveis econômicas. Os fatos econômicos são pela política condicionados, precipitando-os ou retardando-os. A crise do México não se deveu apenas ao comportamento das taxas de juros internacionais e de outras variáveis econômicas. O levante zapatista de Chiapas, o assassinato de dois políticos eminentes – sendo um deles um candidato presidencial em plena campanha – e os escândalos de corrupção, todos fatos ocorridos em 1994, contribuíram de forma decisiva para o desenlace da crise.

Disso tem o próprio governo aguda consciência. Para o destino de sua estratégia são tão importantes uma crise bancária e o movimento externo das taxas de juros quanto uma massacre de camponeses sem-terra ou um escândalo de corrupção no Banco Central ou no Palácio do Planalto.

Por isso, embora seja útil o conhecimento dos mecanismos econômicos, a política e outros fatores de caráter aleatório tornam o cenário sempre imponderável e mantém as portas de seu futuro sempre fechadas. Mas uma coisa é certa: seja quais forem os caminhos dessa nova fase do desenvolvimento capitalista, ela resultará em um Brasil muito diferente do que foi até a década de 80, e também mais dependente e ainda mais vulnerável, como nunca foi, aos azares de um capitalismo cada vez mais internacionalizado.

LÉCIO MORAIS é jornalista.

Notas

(1) Ver séries do Boletim do Banco Central, Banco Central do Brasil.

(2) A rigor, ao referir-me a saldo comerciais, deve-se também entender como inclusos os saldos da conta de serviços não-fatores, ou seja, todo o lado real das transações externas (ver boxe explicativo).

(3) Ver mais sobre esse período em “Plano do fundo do poço”, parte 2. Sérgio Miranda e outros. Separata de debates parlamentares. Câmara dos Deputados, 1996.

(4) Taxa e juros do overnight praticada pelo Banco Central para financiamentos de títulos da dívida pública (taxa Selic). Na taxa real, ao contrário da nominal, já está desncontada a inflação do período.

(5) A importação de máquinas, que foi de US$ 8,5 bilhões em 1993, subiu para 12,5 bilhões em 1994, e para 19,7 bilhões em 1995. Revista Conjuntura econômica, maio 1996.

(6) Ver Gazeta Mercantil, de 24/10/94, p. 3, declarações à repórter Claudia Saflate.

(7) Idem, Gazeta Mercantil.

(8) Esses valores incluem as entradas líquidas de transferências unilaterais, de investimentos diretos (exceto reinvestimentos), de empréstimos em moeda, de financiamentos (exceto refinanciamentos), transferências unilaterais e outros capitais, descontadas as amortizações de empréstimos (menos as refinanciadas). Com base em dados do Boletim do Banco Central e do Relatório do Banco Central de 1995, elaboração própria.

(9) Relatório do Banco Central de 1995, p. 103 – Banco Central do Brasil.

(10) O leilão de spread é um mecanismo pelo qual o Bacen simultaneamente vende e compra dólares, estabelecendo um diferencial (spread) fixo entre as taxas.

(11) Ver “O Plano Real: o vigésimo quarto mês”, Ministério da Fazenda, jun. 96 (p. 27). Aí se afirma que “a política cambial brasileira continuará sendo guiada pelas premissas definidas quando da elaboração do Plano Real”(!).

(12) No câmbio do dólar comercial o real desvalorizou-se 15,1% em 1995, quase a mesma taxa de inflação medida pelo IGP-M (15,24) e do IGP-DI (14,77) da Fundação Getúlio Vargas. Já no primeiro quadrimestre deste ano, o real desvalorizou 7,88%, enquanto a inflação, pelos índices citados, foi de 3,46% e 3,51% respectivamente.

(13) Boletim do Banco Central.

(14) Foi adotada a seguinte metodologia na composição das variáveis do gráfico: “entrada de capitais” inclui as entradas líquidas de transferências unilaterais, de investimentos diretos (exceto reinvestimentos), de empréstimos em moeda, de financiamentos (exceto refinanciamentos), transferências unilaterais e outros capitais, descontadas as amortizações de empréstimos (menos as refinanciadas). “Saldo comercial” é o saldo da balança comercial. “Serviços+amortizações” inclui o déficit na balança de serviços (fatores e não fatores) e as amortizações líquidas da dívida (exceto as refinanciadas). Com base em dados do Boletim do Banco Central e do Relatório do Banco Central de 1995, elaboração própria.

(15) Necessidade de financiamento do setor público em reais, de dezembro de 1995. Boletim do Banco Central.

(16) O livro Para entender as economias do Terceiro Mundo, de Vânia L. Bastos e Maria Luíza Falcão Silva, Ed. UNB, discute o balanço de pagamentos dos países dependentes de forma didática e concisa.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15