O termo cidadania tornou-se em nosso país uma referência praticamente obrigatória no discurso dos mais diferentes agentes políticos. Governo, políticos da oposição, líderes da esquerda e da direita, sindicalistas e organizações não-governamentais, todos se apresentam como defensores do direito à cidadania. Mas, a exemplo do que ocorre com a suposta unanimidade em torno da democracia, convém indagar: de que cidadania se trata? Qual o seu conteúdo? Que diferenças importantes a defesa de uma cidadania abstrata e formal pode eludir?

O objetivo do presente texto é trazer alguns elementos, com base na análise de parte da bibliografia sobre o tema, que contribuam para uma definição da cidadania coerente com o projeto de transformação socialista da realidade brasileira.

Na literatura sociológica há certa convergência na definição dos elementos formais da cidadania. Apoiando-se no texto clássico do professor de Sociologia da Universidade de Londres T. H. Marshall, apresentado em conferência de 1949, vários autores apontam a cidadania como articulação dos direitos civis, políticos e sociais, além dos deveres. (MARSHALL, s. d.: 63)

Os direitos civis correspondem aos direitos relativos à liberdade individual: o direito de dispor do próprio corpo, a liberdade de ir e vir, o direito à propriedade e de contrair contratos, o direito à justiça.

Os direitos políticos devem garantir aos cidadãos de um determinado Estado a participação livre na atividade política, seja como membros de organismos do poder político, seja como simples eleitores de representantes nesses organismos. Devem garantir ainda a livre expressão do pensamento, a liberdade de religião, de imprensa e de organização.

Os direitos sociais respondem às necessidades humanas básicas, assegurando o direito a um bem-estar econômico mínimo. Relacionam-se principalmente com o direito a salário, saúde, educação, habitação e alimentação.

A esses diferentes tipos de direitos correspondem quatro conjuntos de instituições:

– os tribunais, para salvaguardar os direitos civis;

– as assembléias representativas, locais e nacional, como fóruns legislativos e de decisões políticas;

– os serviços sociais, para garantir o mínimo de proteção contra a miséria, a doença etc.;

– e as escolas, para viabilizar o acesso à educação.

Mas a noção de cidadania implica direitos e também deveres. Ou seja, como integrante de uma coletividade, todo cidadão deveria respeitar o acesso de seus concidadãos aos direitos básicos.

Na literatura, a extensão e o conteúdo dos deveres apresentam-se de maneira controversa. Há os que advogam a tese de que o dever básico do cidadão é submeter-se ao “Império da Lei”, entendido esse como “soberania impessoal” (HOBHOUSE, LT, apud. Cidadania, Dicionário de Ciências Sociais, FGV, 1986, p. 177). Nessa linha, há a defesa do respeito à Constituição do Estado, diante da qual todos seriam iguais e protegidos contra qualquer tipo de discriminação, como o principal dever do cidadão.

A cientista social Maria de Lourdes Manzini Covre argumenta que não se pode esquecer dos deveres, já que a cidadania transformaria todos em “parte do governo”, ainda que pretenda com isso destacar a ação dos sujeitos na conquista de direitos (COVRE, 1991; 10).

No primeiro caso, pode-se abrir caminho para uma concepção juridicista de cidadania, qie pecaria exatamente por não confrontar os artigos, parágrafos e incisos das leis com os direitos básicos do cidadão, já que não está de antemão descartada, ainda hoje, a possibilidade de leis que firam esses direitos (para não falar da conhecida distância entre as Constituições e os Códigos Jurídicos e a realidade).

No segundo caso, não se pode apresentar o cidadão como “parte do governo”, mesmo que goze do direito de voto e da liberdade de expressão, ou que a “prática de reivindicar” seja desenvolvida pela parcela da população que tem “pouco poder” (COVRE, 1991: 10). Essa idéia oculta os mecanismos de representação política, pois o cidadão como “parte do governo” só seria realidade numa democracia direta onde ele decidisse por si próprio. Além disso, ofusca inteiramente tanto a natureza de classe do Estado burguês quanto o seu papel central mantenedor e reprodutor das relações macro-sociais capitalistas, valendo-se da separação característica do Estado burguês entre a burocracia, que de fato gere o aparelho estatal, e as massas populares, excluídas dessa gestão.

Ainda quanto ao conteúdo da cidadania, é importante ter apresentada a questão levantada por Evelina Dagnino:

“(…) Não há uma essência única imanente ao conceito de cidadania, (…) o seu conteúdo e seu significado não são universais, não estão definidos e delimitados previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como vividos pela sociedade num determinado momento histórico. Esse conteúdo e significado serão sempre definidos pela luta política”. (DAGNINO, 1994: 107)

Cidadania na história

Historicamente, o surgimento do conceito de cidadania se dá na passagem do feudalismo para o capitalismo, principalmente na Europa. Marx, ao analisar a sociedade feudal, comentara:

“(…) Em vez do homem independente,encontramos aqui todos dependentes – servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza tanto as condições sociais da produção material quanto as esferas de vida estruturadas sobre ela”. (Marx, 1983: 74).

Já a idéia de sujeito independente e possuidor de direitos vai ser central na configuração da sociedade burguesa. Ela é ainda pressuposto para o funcionamento da economia capitalista, baseada no mercado livre e na efetivação de contratos entre os agentes econômicos. Todos precisam ser livres na relação de mercado capitalista.

Em relação às diferenças entre a sociedade capitalista e a feudal, no terreno aqui analisado, T. H. Marshall afirma:

“(…) Na sociedade feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. Não havia nenhum código uniforme de direitos e deveres com os quais os homens – nobres e plebeus, livres e servos – eram investidos em virtude da sua participação na sociedade (…)”. (MARSHALL s. d.: 64)

O mesmo autor, ao periodizar os fatos históricos relativos à esfera dos direitos na Inglaterra, acredita ser possível atribuir a séculos diferentes o surgimento de cada tipo de direito. Assim os direitos civis seriam os primeiros, surgidos no século XVIII; os políticos estão ligados ao século XIX; e os sociais, ao século XX.

Independentemente dessa periodização ser ou não válida para outros países, vale a pena assinalar duas questões. Primeiramente, se tomarmos a Inglaterra como o berço do capitalismo, fica claro que a conquista da cidadania envolveu quase três séculos de luta e de experiência histórica. Esse longo período, que parece se reproduzir em outros países capitalistas desenvolvidos, talvez possa ajudar a entender a importância que os direitos básicos têm para seus povos, não apenas como elementos do discurso, mas como componentes dos valores sociais. No caso do Brasil, não se pode esquecer, por outro lado, que até 1888 imperava a escravidão.

Em segundo lugar, a ampliação do leque de direitos do cidadão foi se dando através de um processo cumulativo, onde um novo direito, antes negado, era somado ao estoque precedente – um processo de enriquecimento contínuo da cidadania, através de lutas sociais, que não permitia, apesar das tentativas, a supressão dos direitos já conquistados (1). É o que T. H. Marshall chama, ao analisar os direitos civis, de “adição gradativa de novos direitos a um status já existente” (MARSHALL, s. d.: 68).

Um dos aspectos mais importantes dos direitos civis é o direito ao trabalho. Ele deveria assegurar ainda a liberdade de escolha de uma profissão e a de empregar-se no local mais vantajoso. Isso inexistia na sociedade feudal, onde o servo mantinha uma relação de dependência frente ao senhor. O papel da valorização do trabalho exerce enorme influência no período de ascensão do capitalismo e da burguesia. Ajudada pelas Reformas Protestantes, a nova ética privilegiava o trabalho produtivo para assegurar lugar no céu; o sofrimento do trabalho recompensava, explicava e justificava tudo; o homem na Terra devia trabalhar para usufruir dos benefícios do trabalho. Trabalho e acumulação do capital, eis a nova ética religiosa.

Os homens podiam ser iguais pelo trabalho e pela capacidade, e não pelo nascimento. A nova visão de mundo consagrava o individualismo.

Como se sabe, Lênin apontava como uma das “condições históricas prévias para o surgimento do capital:

“(…) a existência de operários ‘livres’ sob dois pontos de vista: livres de qualquer coação e de qualquer restrição quanto à venda da sua força de trabalho, e livres porque despojados de terra e sem meios de produção em geral, de operários sem senhores, de operários proletários que só podem subsistir vendendo a sua força de trabalho”. (LÊNIN, 1979: 32)

É preciso assinalar que os direitos civis tiveram um caráter especialmente individual, e por isso compatível com o surgimento do capitalismo. A atomização do cidadão desenvolve-se umbilicalmente com a necessidade vital do sistema de ter à sua disposição trabalhadores “livres” para a exploração das novas relações de trabalho capitalistas.

A competição entre homens e grupos de homens, para prosperar com base na exploração e na dominação, tem a cobertura ética da ideologia burguesa. Essas mudanças na superestrutura ideológica expressavam todo um processo econômico-social do novo modo de produção capitalista. Igualdade formal para a desigualdade do capital. Igualdade legal para legitimar a desigualdade social.

Politicamente, a cidadania é contemporânea do Estado-nação. Daí que “uma dos elementos centrais da construção de uma nação é a codificação dos direitos e deveres de todos os adultos classificados como cidadãos”. (REINHARD, 1979: 389).

Diferentemente dos direitos civis, que diziam respeito à criação de novos direitos antes inexistentes, os direitos políticos se relacionam principalmente com o acesso à participação política a setores até então excluídos, acesso que se dará sobretudo pela conquista do direito ao voto.

Mas o exercício do sufrágio só poderia ser plenamente desenvolvido com a “unificação do sistema nacional de representação” (REINHARD, 1979, 393). E foi a Revolução Francesa que adotou uma medida essencial na representação política: no lugar da família, da propriedade e da corporação, aparecia como unidade básica o cidadão individual. Além disso, a representação não se daria mais através de corpos funcionais separados, mas por uma assembléia nacional unificada de legisladores. A lei de 11 de agosto de 1792 e a Constituição de 1793 reconheceram o direito de voto a todo cidadão francês com mais de 21 anos, excluindo-se os servos e os vagabundos.

A história do sufrágio universal é basicamente a história da tentativa de participação política de setores excluídos, principalmente os trabalhadores. Benjamin Constant, um dos clássicos do liberalismo, argumentava, já no período de ascensão do capitalismo, que os assuntos da comunidade deveriam ser entregues àqueles que nela tivessem “reais interesses”, ou seja, proprietários de terra e negociantes. Além disso, durante muito tempo as mulheres foram privadas do voto, e inúmeros critérios foram elaborados para restringir o seu uso: critérios estamentais, regime censitário, critérios de resistência, voto plural etc. Na Inglaterra, só em 1948 é que foram abolidas todas as diferenças baseadas no plano econômico. Essas restrições, ao lado de outras, se explicam pela tentativa de neutralizar o voto dos trabalhadores, já que o impedimento puro e simples não era mais possível.

Percebe-se portanto que, historicamente, duas vertentes conflitantes entrechocam-se, ambas consolidando a cidadania. Trata-se de um longo processo histórico de acúmulo, permeado de contradições: o desenvolvimento capitalista exigindo a configuração plena do cidadão – “indivíduo livre” no mercado. De outro lado, setores excluídos lutando por direitos sociais e políticos crescentes, uma exigência da própria luta de classes, resultante do desenvolvimento do sistema capitalista. Ambos almejavam uma cidadania,mas com conteúdos distintos.

Todo mundo sabe, porém, que boa parte dos direitos do cidadão sào reconhecidos em lei, mas nem sempre aplicados na vida real. O processo de conquista da cidadania é, assim, o reconhecimento da capacidade legal do homem de agir de forma independente. Mas esse reconhecimento legal, ainda que represente importante conquista, silencia sobre as condições concretas para sua realização. São direitos formalmente garantidos. Lênin chamava a atenção desse aspecto ao cometer as noções de “liberdade”e de “igualdade”no capitalismo:

“(…) A liberdade de reunião, incluída nas Constituições de todas as repúblicas burguesas, é uma fraude porque, quando queremos nos reunir, protegidos do tempo, os melhores edifícios são propriedade privada (…)”.

E ainda:

“(…) Afirmamos que uma república Democrática comigualdade é uma mentira, uma fraude, porque, na realidade, a igualdade não existe nem pode existir, em virtude de propriedade privada dos meios de produção, do dinheiro e do Capital (…)”(Lênin, 1979: 28,32).

A discussão da cidadania deve implicar, portanto, não apenas as garantias jurídicas previstas em lei, mas também o conhecimento das condições concretas necessárias à sua efetivação. Neste caso, a consogração dos direitos básicos nos documentos jurídicos deve ser vista como o passo inicial, e insuficiente, de sua conquista,

Cidadania e classes sociais

Foi o cientista político grego-francês Nocos Poulantzas quem chamou a atenção para a dupla função do Estado burguês, cuja lembrança se faz agora necessária. Antes de examiná-la, é oportuno fazermaqui uma citação de seu livro mais importante, Poder Político e classes sociais:
abstrat
“(…) O traço distintivo fundamental ( do Estado Capitalista) (…) parece consistir, com efeito, no fato de estar ausente a determinação de sujeitos ( fixados, neste Estado, como ‘indivíduos’,’cidadãos’, ‘pessoas políticas’) enquanto agentes de produção, o que não acontecia com os outros tipos de Estado (…) As suas instituições estão organizadas em torno dos princípios da liberdade e da igualdade do ‘indivíduos’ou ‘pessoas políticas’. A legitimidade deste estado está fundada, não já na vontade divina implicada no princípio monárquico, mas no conunto de indivíduos-cidadãos formalmente livres e iguais, na soberania popular e na responsabilidade laica do Estado para com o ‘povo’. O próprio povo é erigido em princípio de determinação do Estado, não enquanto composto por agentes da produção distribuído emclasses sociais, mas enquanto massa de indivíduos-cidadãos, cujo modo de participação numa comunidade política nacional se manifesta no sufr’gio universal, expressão da “vontade geral”. O sistema jurídico moderno, distinto da regulamentação feudal fundada nos privilégios, reveste um caráter “normativo”, expresso num conjunto de leis sitemaizadas a partir dos princípios de liberdade e igualdade: é o reino da lei. A igualdade e a liberdade indivíduos cidadãos residem na sua relação com as leis as e formais, as quais são tidas como enunciado essa vontade geral no interior de um ‘Estado de direito”(…) ( Poulantzas, 1971:143).

O que nos interessa reter aqui é que o estdo burguês se legitima apoiado no conjunto de cidadãos, e não na determinação de classes sociais. É disso que decorre a dupla função:

1) individualizar os agentes da produção ( produtos e direitos e proprietários dos meios de produção), convertendo-os em sujeitos individuais com direitos;

2) neutralizar, o produtor direito, a tendência à ação coletiva, proveniente do caráter socializado do processo de trabalho capitalista, fazendo prevelecer a tendência ao isolamento.

É no processo de realização dessa dupla função que, em lugar de classes sociais, emerge a figura do povo-nação, com o qual se procura obscurecer a relação entre Estado e classe.

A lembrança das teses de Poulantzas é para mostrar que a formação do povo-nação – calcada nos cidadãos, a despeito de seus efeitos jurídiocs e políticos – não logra em eliminar os sujeitos coletivos que são as classes sociais. Se no discurso político liberal se procura sempre apresentar a relação Estado-cidadão como predominante, trata-se da tentativa de omitir as determinação de classe na estrutura e no funcionamento do Estado capitalista. Resumidamente: o cidadão é, antes de tudo, integrante de determinada classe social.

A importância dessa questão fica clara quando se observa, frequentemente, a tentativa de abandonar o conceito de classes sociais, substituindo-o pelo de cidadania. Em vez de ser articulados, o último anula o primeiro, eliminando-se a esfera das relações de produção no processo
De trabalho no capitalismo.

Mesmo autores como Marshall e Bendix afirmam que a conquista da igualdade perante a lei se dá com a manutenção da igualdade social e econômica, e não com a sua supressão. E que “a igualdade da cidadania e as desigualdades de classse social desenvolve-se paralelamente”(Bendix,1979:392)

Ao analisar os efeitos da cidadania ( enquanto busca da igualdade) sobre as classes sociais ( enquanto “sistema de desigualdade”), o sociologo inglês mostra que não se tratam de elementos antagônicos, e que a cidadania não só pode operar como “um instrumento de estratifucação social”, como também moldar novas desigualdades ( Marshall, s.d: 102,107). Nesse sentido, a propalada “igualdade de oportunidades”seria a fonte de novas desigualdades sociais.

O expediente corriqueiro, em setores de esquerda, de abandonar o discurso classista pela palavra-de-ordem da cidadania, descarta na maioria das vezes, a possibilidade de articulação das noções de cidadania e classe social. E, no fundo, não faz mais do que repetir as pretenções do discurso liberal de negar a realidade das coisas pela palavra.

Discutir cidadania sim, lutar pelos direitos civis, políticos e sociais dos excluídos sim, mas sem negar as classes sociais e a luta.

Cidadania como estratégia política

Maria de Lourdes Manzini Covre destaca “a categoria cidadania como estratégia de luta por uma nova sociedade”(Covre, 1991:40). Já evelina Dagnino, que critica a redução da cidadania ao reconhecimento formal dos direitos pelo Estado, assinala que sua “radicalidade”enquanto “estratégia política”é supor uma “reforma intelectual e moral”nos termos de Gramsci. Quer dizer, uma profunda transformação de práticas sociais e valores arraigados na sociedade, ultrapassando “o foc privilegiado da relação do Estado, ou entre o Estado, ou entre o Estado e o indivíduo, para incluir fortemente a relação com a sociedade civil”( Dagnino, 1994:109).

A luta pela cidadania pode comportar horizontes estratégicos de classes sociais. Seu alargamento pode ser instrumento de lutas democráticas nos marcos da sociedade capitalista a fim de somar forças, acumular conquistas, organizar classes populares para um projeto estratégico do poder político. É ainda um elemento do programa de conquistas democráticas.

Interpretação distinta é a que pretende uma aequaç~!ao da cidadania nos marcos da liberdade políticas limitadas, comprometendo e envolvendo as classes populares como co-responsáveis do “império da lei”e a “governabilidade”, alimentando a ilusão de que o simples alargamento dos direitos ( econômicos, políticos, e sociais) altera a natureza de classe do Estado.

Ora, ainda que possa ser um componente de uma estratégia transformadora, a luta pela cidadania não pode minimizar, ofuscar ou suplantar o problema central: a conquista do poder político. Esse é o elemento central para se iniciar a construção de uma nova sociedade e possibilitar “uma reforma intelectual e moral”. Por isso, a conquista do poder político tem primazia e antecede as demais questões. Não se trats de pretender reduzir a discuss~!ao de práticas e dos valores sociais à esfera do Estado, mas de admitir que sem uma nova estrutura estatal socialista é impossivel se pensar uma nova sociedade com novos valores. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. O centro, então, da estratégiapolítica revolucionária é a conquista do poder político até pasra realizar os direitos básicos da cidadania, onde for o caso. O Estado capitalista, que reproduz as relações do modo de produção capitalista, que reproduz as relações do modo de produção capitalista, não pode acabar com a propriedade privada – fonte primeira de desigualdade – de inevitável do sistema.

O centro da questão da cidadania não é a conquista de “espaços estratégicos”para explorar uma suposta “ambivalência”do Estado burguês. A estrat’;egia revolucuonária deve ser presente a eliminação do sistema de exploração do capital, gerador de desigualdade – berço, portanto, da falta de cidadania plenamente realizada. Definitivamente, cidadania não é apenas “salário justo”que “compra uma vida digna”.

A luta pela cidadania deve fazer parte de um programa de transformação social. Seu conteúdo, enquanto conjunto de direitos civis, políticos e sociais, deve ser processualmente enriquecido; e sua não realização deve ser denunciada. Mas a cidadania não deve ser pretexto para negar a existência de classes e de luta, nem a primazia e a anterioridade da conquista do poder político para transformar a sociedade.

Cidadania no socialismo

Um último aspécto merece menção, ainda breve. Como vimos, a noção de cidadania nasce e se desenvolve com o capitalismo. Papel destacado no alargamento histórico dos itens dos direitos coube especificamente às camadas populares, em especial à classe operária. Com a derrocada do sistema capitalista e a instauração do poder proletário, abre-se uma nova fase histórica.

Qual o tratamento a ser dado à questão da cidadania? Haverá conceituação específica da cidadania na transição socialista?

Sabendo-se que toda transição comporta contradições que devem ser abordadas de acordo com a realidade objetiva, interessa ao novo poder desenvolver ao máximo todos os direitos que compõe a noção de cidadania, sobretudo o direito, sobretudo o direito de paticipação política. A cidadania é, portanto, uma herança não realizada pelo regime antigo. Sua realização no curso da trasição socialista não implica a criação de uma nova cidadania socialista, mas o próprio esgotamento de sua vigência enquanto categoria históricamente limitada. Por isso, é inteiramente pertinente a afirmação do parágrafo 39 do Programa Socialista do Partido Socialista do Partido Comunista do Brasil:

“(…) É garantido o direito de cidadania a todos os brasileiros e aos estangeiros radicados no país. Serão abolidos e combatidos todas as discriminações de raça, nacionalidade, religião, em especial as que têm por objeto o negro. Às mulheres será garantida a igualdade de gênero. Os indígenas contarão com proteção especial, defesa e demarcação de suas terras e ajuda ao desenvolvimento étinico (…) ”(p.27).

Por último, é preciso acentuar a importância do conhecimento das necessidades concretas de cada povo e naçào, além do conhecimento do fato de que o grau de desenvolvimento das relações capitalistas e do nível das conquistas acumladas históricamente pela cidadania no capitalismo ajudarão a desenhar os contronos da cidadania na transição socialista.

Sérgio Benassi é vereador pelo PCdoB na cidade de Campinas, SP.

Bibliografia

Bendix, Reinhard. A ampliação da cidadania.Política e sociedade 1. Orgs. Fernando Henrique Cardoso e Carlos Estevam Martins. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1979.

Covre, Maria de Lourdes Manzini.O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1991.

Dagnino, Evelina (Org.) Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. Anos 90 – Política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Lênin, V.I. Como iludir o povo.2.ed. São Paulo: Global, 1976.

Lênin, V.I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo.2.ed. São Paulo: Global, 1979.

Marx, Karl. O Capital. V. 1. Livro primeiro, São Paulo: Abril Cultural. 1983.

Poulantzas, Nicos. Poder Político e classes sociais. Porto: Portucalense, 1971.

Saes, Décio. Estado e Democracia: ensáios teóricos.Campinas: IFCH-Unicamp.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 34, 35, 36, 37, 38, 39