O esforço de avaliação da história do Brasil e de seu povo deu três frutos importantes em 1995, com a publicação dos livros O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, de Darcy Ribeiro, História do Brasil, de Bóris Fausto, e a biografia Mauá, empresário do império, de Jorge Caldeira.
São obras importantes, seja pelo aspecto progressista de seu conteúdo, seja pela repercussão que tiveram, seja, finalmente, pelo fato de aprofundarem e precisarem a compreensão de alguns aspectos fundamentais de nosso passado.

Assim, o livro de Jorge Caldeira sobre o Visconde de Mauá relembra de forma aprofundada e com riqueza de detalhes a luta que esteve no centro da formação do capitalismo moderno no Brasil, entre os interesses agro-mercantis-exportadores e os interesses da nascente burguesia industrial brasileira. Expõe com maestria os limites dessa classe de industriais que já nasceu associada ao capital estrangeiro numa situação política extremamente adversa, numa sociedade que era um condomínio governado por representantes da oligarquia escravista, territorial e financeira. Trata-se de um dos capítulos iniciais do mesmo conflito que vivemos em nosso tempo, quando os setores conservadores adotam um programa neoliberal muito semelhante ao dos livre-cambistas do Império, gente que, a título de integrar o país na divisão internacional do trabalho, de importador de produtos industrializados.

A história de Mauá é uma demonstração concreta dos efeitos nocivos da atuação daqueles que, sob o disfarce de defesa dos interesses nacionais, defendem apenas seus interesses de classe.
Mas a sociedade brasileira não deixou de crescer, de forma contraditória, sinuosa, muitas vezes tumultuada. O livro de Bóris Fausto traça um grande painel dessa trajetória de colônia a uma das maiores economias industriais do planeta. Tem uma virtude: ao contrário dos livros de história convencionais, que valorizam a colônia e o império e minimizam os tempos atuais, Bóris Fausto passa rapidamente pelo passado, e privilegia a história do período republicano. Tratando a história como “uma disciplina vital pra a formação da cidadania”, Bóris Fausto deixa transparecer o substrato social-democrata que fundamenta sua visão da história. Num relato ao gosto acadêmico, tratando de forma ligeira alguns aspectos que, de outro ponto de vista, seriam centrais – a história do quilombo de Palmares, por exemplo, é citada num único capítulo de escassas doze linhas, além de outra referência ligeira quando trata dos bandeirantes – , Bóris Fausto descreve o grande processo social e econômico que desembocou no Brasil moderno da Nova República. O próprio uso da expressão cidadania, que denota as intenções democráticas do autor, revela também o lugar privilegiado que a conquista da democracia burguesa ocupa nesse relato, onde a luta de classes aparece como um fantasma a ser exorcizado.

É típica, por exemplo, a caracterização que Bóris Fausto faz da ditadura militar de 1964. Ela “não teve características fascistas”, diz ele. Mesmo o autoritarismo daquele período foi caracterizado frouxamente por ele, pois os generais de plantão nunca assumiram de forma cristalina seu caráter antidemocrático. Ora, este é um argumento pueril: não se pode aceitar como verdadeiro aquilo que alguém pensa de si próprio, pois a verdade está nos atos, nas formas concretas, e não no pensamento!

Nessa linha, Bóris Fausto pensa que a Constituição de 1988 – “com todos os seus defeitos” – refletiu “o avanço ocorrido no país, especialmente na área da extensão de direitos sociais e políticos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias”. Mas ela gerou problemas, “como o tempo iria demonstrar” – problemas, por exemplo, na área tributária, especialmente na distribuição dos recursos entre a União, os estados e os municípios, na previdência social (a aposentadoria por tempo de serviço) ou ao garantir a estabilidade dos funcionários públicos.

A História do Brasil, de Bóris Fausto, reflete, assim, a ideologia da facção da classe dominante brasileira que chegou ao poder com Fernando Henrique Cardoso, com sua visão própria da história do país, com sua crítica de algumas mazelas que nos acompanham desde o período escravista, com sua concepção de democracia e, particularmente, com um projeto de desenvolvimento adequado a seus interesses.

A simpatia pelo povo e o engajamento ombro a ombro em suas lutas, que faltam ao livro de Bóris Fausto, são esbanjadas no livro de Darcy Ribeiro. Resultado de décadas de reflexão, ele adverte logo de cara: “Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira influir sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”.

O enigma que ele se propõe a decifrar não é trivial: quem é o povo brasileiro? Quem somos nós?
Fugindo dos maneirismos antropológicos tradicionais, avesso ao academicismo maçante, Darcy Ribeiro coloca no centro de sua análise a interação contraditória, sofrida, muitas vezes cruel, de europeus dominantes que reduziram ao trabalho forçado as populações autóctones ou africanos sequestrados em sua terra.

O tratamento que Darcy Ribeiro dá ao quilombo de Palmares é significativo: é elemento de análise frequente da contradição principal de nossa história, e é também símbolo veemente da forma como a elite sempre tratou o povo no Brasil. Para Darcy Ribeiro, a análise da luta do povo brasileiro revela a natureza íntima do processo histórico em nosso país, e Palmares tem a virtude de combinar aquelas que, em sua opinião, são as duas vertentes marcantes de que ela se reveste aqui: seu caráter simultaneamente racial e classista. Para ele, o “que desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é a estratificação de classes”. Mas, por outro lado, ela unifica e articula do lado de baixo, “como brasileiros, as imensas massas predominantemente escuras”.

Essa confiança no povo brasileiro, em sua criatividade e capacidade de enfrentar e superar os graves desafios com que se defrontou ao longo da história, dá o tom otimista do livro de Darcy Ribeiro, ao lado da reiteração da denúncia do descaso das elites pelo povo e pela nação. Vale a pena terminar com uma longa transcrição:

“O Brasil foi regido primeiro como feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e por negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações do povo jamais forma levados em conta porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir-se vestir-se e morar”. “O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente”.

O Brasil como tema

“(…) Hoje em dia a ação do lobista raramente ameaça a moral, porém ela chega a deformar o próprio funcionamento da máquina democrática. O lobista é um corretor de informações. Ele mobiliza para a empresa ou para os interesses que representa todas as informações suscetíveis de apoiar o ponto de vista que pretende defender. Se uma empresa de obras públicas quer obter votos para a construção de uma auto-estrada, ele (o lobista) reunirá informações mais completas e mais precisas que qualquer agência governamental, demonstrando e calculando vantagens de auto-estrada para a coletividade. Se, para o mesmo caso, ele representa uma associação ecológica, todas as sequelas nefastas do projeto para o meio ambiente serão detalhadas. Assim, para cada caso, para cada lei, gabinetes de lobistas se digladiarão”.

“(…) Mas tudo isso ainda se trata de política? A confusão acerca do lobby reside no fato de se acreditar que o interesse geral irá nascer naturalmente do confronto honesto de interesses particulares. (…) Obviamente os lobistas não trabalham de graça, e somente os interesses entesourados podem recorrer aos serviços deles”.

“(…) A política não existe como simples resultado de interesses privados, mas sim pressupõe um contrato social, o qual precede e ultrapassa todos os contratos particulares. Se abandonarmos este postulado, reduzindo a política a uma função de mercado, onde se determina o valor dos interesses presentes, o espaço da política é imediatamente ameaçado de desaparecimento, pois não há mercado que possa estabelecer o “valor” do interesse nacional ou delimitar o espaço da solidariedade. Se a coletividade nacional não é mais um dado e sim uma escolha, ninguém na verdade tem condições de basear essa escolha sobre os mesmos critérios racionais que definem suas ações na gestão operacional de seus interesses. Nenhuma lei econômica consegue substituir a evidência territorial e histórica da nação”.

E o livro prossegue fazendo observações assim agudas sobre temas como o papel da corrupção que se torna institucional dentro do aparelho de Estado e nas empresas; sobre a ascensão das religiões, naquilo que o autor chama de o encontro entre “o extremo arcaísmo e a extrema modernidade”. Aborda a crescente importância da “economia da droga”. E sobre a violência “na época imperial”, diz: “a violência na época das redes, a violência da época dos impérios, tem toda chance de ser mais difusa, menos extrema, porém não mais rara”.
Eis aí um aperitivo. E um convite instigante à leitura e à reflexão.
Carlos Azevedo (Jornalista)

O Brasil como tema

História do Brasil. Bóris Fausto, São Paulo, Edusp (Editora da USP), 1995.
O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. Darcy Ribeiro, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

Mauá, empresário do Império. Jorge Caldeira, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

O esforço de avaliação da história do Brasil e de seu povo deu três frutos importantes em 1995, com a publicação dos livros O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, de Darcy Ribeiro, História do Brasil, de Bóris Fausto, e a biografia Mauá, empresário do império, de Jorge Caldeira.
São obras importantes, seja pelo aspecto progressista de seu conteúdo, seja pela repercussão que tiveram, seja, finalmente, pelo fato de aprofundarem e precisarem a compreensão de alguns aspectos fundamentais de nosso passado.

Assim, o livro de Jorge Caldeira sobre o Visconde de Mauá relembra de forma aprofundada e com riqueza de detalhes a luta que esteve no centro da formação do capitalismo moderno no Brasil, entre os interesses agro-mercantis-exportadores e os interesses da nascente burguesia industrial brasileira. Expõe com maestria os limites dessa classe de industriais que já nasceu associada ao capital estrangeiro numa situação política extremamente adversa, numa sociedade que era um condomínio governado por representantes da oligarquia escravista, territorial e financeira. Trata-se de um dos capítulos iniciais do mesmo conflito que vivemos em nosso tempo, quando os setores conservadores adotam um programa neoliberal muito semelhante ao dos livre-cambistas do Império, gente que, a título de integrar o país na divisão internacional do trabalho, de importador de produtos industrializados. A história de Mauá é uma demonstração concreta dos efeitos nocivos da atuação daqueles que, sob o disfarce de defesa dos interesses nacionais, defendem apenas seus interesses de classe.
Mas a sociedade brasileira não deixou de crescer, de forma contraditória, sinuosa, muitas vezes tumultuada. O livro de Bóris Fausto traça um grande painel dessa trajetória de colônia a uma das maiores economias industriais do planeta. Tem uma virtude: ao contrário dos livros de história convencionais, que valorizam a colônia e o império e minimizam os tempos atuais, Bóris Fausto passa rapidamente pelo passado, e privilegia a história do período republicano. Tratando a história como “uma disciplina vital pra a formação da cidadania”, Bóris Fausto deixa transparecer o substrato social-democrata que fundamenta sua visão da história. Num relato ao gosto acadêmico, tratando de forma ligeira alguns aspectos que, de outro ponto de vista, seriam centrais – a história do quilombo de Palmares, por exemplo, é citada num único capítulo de escassas doze linhas, além de outra referência ligeira quando trata dos bandeirantes – , Bóris Fausto descreve o grande processo social e econômico que desembocou no Brasil moderno da Nova República. O próprio uso da expressão cidadania, que denota as intenções democráticas do autor, revela também o lugar privilegiado que a conquista da democracia burguesa ocupa nesse relato, onde a luta de classes aparece como um fantasma a ser exorcizado.

É típica, por exemplo, a caracterização que Bóris Fausto faz da ditadura militar de 1964. Ela “não teve características fascistas”, diz ele. Mesmo o autoritarismo daquele período foi caracterizado frouxamente por ele, pois os generais de plantão nunca assumiram de forma cristalina seu caráter antidemocrático. Ora, este é um argumento pueril: não se pode aceitar como verdadeiro aquilo que alguém pensa de si próprio, pois a verdade está nos atos, nas formas concretas, e não no pensamento!
Nessa linha, Bóris Fausto pensa que a Constituição de 1988 – “com todos os seus defeitos” – refletiu “o avanço ocorrido no país, especialmente na área da extensão de direitos sociais e políticos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias”. Mas ela gerou problemas, “como o tempo iria demonstrar” – problemas, por exemplo, na área tributária, especialmente na distribuição dos recursos entre a União, os estados e os municípios, na previdência social (a aposentadoria por tempo de serviço) ou ao garantir a estabilidade dos funcionários públicos.

A História do Brasil, de Bóris Fausto, reflete, assim, a ideologia da facção da classe dominante brasileira que chegou ao poder com Fernando Henrique Cardoso, com sua visão própria da história do país, com sua crítica de algumas mazelas que nos acompanham desde o período escravista, com sua concepção de democracia e, particularmente, com um projeto de desenvolvimento adequado a seus interesses.

A simpatia pelo povo e o engajamento ombro a ombro em suas lutas, que faltam ao livro de Bóris Fausto, são esbanjadas no livro de Darcy Ribeiro. Resultado de décadas de reflexão, ele adverte logo de cara: “Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira influir sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”.
O enigma que ele se propõe a decifrar não é trivial: quem é o povo brasileiro? Quem somos nós?
Fugindo dos maneirismos antropológicos tradicionais, avesso ao academicismo maçante, Darcy Ribeiro coloca no centro de sua análise a interação contraditória, sofrida, muitas vezes cruel, de europeus dominantes que reduziram ao trabalho forçado as populações autóctones ou africanos sequestrados em sua terra.

O tratamento que Darcy Ribeiro dá ao quilombo de Palmares é significativo: é elemento de análise frequente da contradição principal de nossa história, e é também símbolo veemente da forma como a elite sempre tratou o povo no Brasil. Para Darcy Ribeiro, a análise da luta do povo brasileiro revela a natureza íntima do processo histórico em nosso país, e Palmares tem a virtude de combinar aquelas que, em sua opinião, são as duas vertentes marcantes de que ela se reveste aqui: seu caráter simultaneamente racial e classista. Para ele, o “que desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é a estratificação de classes”. Mas, por outro lado, ela unifica e articula do lado de baixo, “como brasileiros, as imensas massas predominantemente escuras”.

Essa confiança no povo brasileiro, em sua criatividade e capacidade de enfrentar e superar os graves desafios com que se defrontou ao longo da história, dá o tom otimista do livro de Darcy Ribeiro, ao lado da reiteração da denúncia do descaso das elites pelo povo e pela nação. Vale a pena terminar com uma longa transcrição:

“O Brasil foi regido primeiro como feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e por negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações do povo jamais forma levados em conta porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir-se vestir-se e morar”. “O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente”.

* José Carlos Ruy