O poema O operário em construção descreve o processo de tomada de consciência de um operário, partindo de uma situação de completa alienação: “tudo desconhecia/ de sua grande missão”, sem saber “que a casa que ele fazia/ sendo a sua liberdade/ era a sua escravidão”. Quando acordou foi tomado “de uma súbita emoção” ao constatar que era ele que fazia todas as coisas: garrafa, prato, facão, “gamela/ banco, enxerga, caldeirão,/ vidro, parede, janela,/ casa, cidade, nação”.

Este poema foi escrito por Vinícius de Moraes há mais de três décadas, e descreve o trabalho como base da vida humana. Não apenas os objetos de uso cotidiano, como roupas, alimentos, casa, mas também instituições (cidade, nação), e o próprio operário, resultam do trabalho. Hoje, em muitos meios, ele certamente está fora de moda, e descreve uma realidade já superada, ou em processo de superação – o trabalho já não teria a mesma importância do passado, perdendo o papel central na economia e na sociedade. Muita gente pensa que estamos rumando para uma sociedade sem trabalho, onde o poema de Vinícius de Moraes seria apenas a reminiscência de um mundo que ficou para trás (1).

Este artigo é uma pequena contribuição a esse debate. Ele faz um resumo inicial das idéias de Marx e Engels a respeito da importância – e mesmo da centralidade – do trabalho, e das condições de sua superação.

O homem como produto do trabalho

“Toda a chamada história universal não é outra coisa senão a produção do homem pelo trabalho humano”, escreveu Marx nos Manuscritos de 1844 (2). Já em seus escritos iniciais, ele compreende o trabalho como aquilo que os filósofos profissionais chamam de “categoria ontológica”, isto é, o fundamento em que se assenta toda uma determinada linha de pensamento. Neste ponto, Marx apenas foi fiel à tradição hegeliana, para quem é pela capacidade criadora do trabalho que o homem se distingue do animal e se aproxima de deus (3).

A compreensão do trabalho – isto é, da atividade prática, produtiva, do homem, seu intercâmbio com a natureza e os outros homens, para criar bens úteis – como base da explicação da vida e da sociedade, não era novidade na época em que Marx escreveu. A tradição liberal burguesa já o havia usado como principal argumento para justificar a propriedade privada. Um exemplo é o filósofo inglês John Locke, que faz do trabalho o centro de sua explicação para a origem e legitimidade da propriedade privada no capítulo “Da propriedade”, do seu Segundo tratado sobre o Governo, publicado em 1690 onde escreve que ao retirar-se um objeto “do estado comum em que a natureza o colocou”, anexa-se a ele “por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens”. Meu trabalho, diz ele, fixa a minha propriedade sobre esse objeto (4). Isso fazia sentido. A tradição aristocrática justificava sua propriedade e privilégios, seu ócio hereditário, com base na religião e nos costumes. Contra ela, a burguesia ergueu-se como porta-voz de toda a sociedade e justificou seus próprios privilégios como resultado da atividade individual de cada proprietário, como fruto do trabalho. É claro que este argumento escondia a exploração que a própria burguesia promovia: o trabalho de seus operários passava a ser considerado como parte da própria atividade dos industriais e demais proprietários burgueses.

A economia política clássica, de Adam Smith e David Ricardo, sistematizou as idéias correntes, que faziam do trabalho a fonte de todas as riquezas. Idéias que suscitaram um intenso debate já nas primeiras décadas do século passado, cujas principais teses foram resenhadas por Marx em As teorias da mais-valia.

Alguns argumentos desse debate continuam presentes na luta ideológica de nossos dias. Um deles é a determinação do valor pela utilidade, e não pelo trabalho, argumento introduzido por Jean-Baptiste Say, um economista francês falecido em 1832, que foi um vulgarizador da obra de Adam Smith e é tido como um dos precursores da escola neoclássica de economia, aquela cujas teses de combate militante ao marxismo deram origem ao neoliberalismo de nossos dias. O fato de Say substituir o trabalho pela utilidade como fonte de valor, sem prejudicar a essência do edifício teórico da economia clássica, deve-se, diz Francisco José Soares Teixeira, à tradição filosófica em que esses economistas se moviam. A economia política, diz ele, “trabalha com conceitos que nada mais são do que formas impostas ao objeto pelo sujeito do conhecimento” (5). Esta é a tradição kantiana mais legítima, na qual – dada a incomunicabilidade entre sujeito e objeto e, portanto, à impossibilidade do conhecimento objetivo – “não conhecemos a priori nas coisas senão aquilo que nós mesmos nelas colocamos” (6).

Essa imposição de formas do sujeito ao objeto é estranha à dialética materialista. Para ela, ao contrário, o sujeito – a partir de seu conhecimento anterior – examina o objeto e extrai dele as categorias que o explicam. Com elas, corrige seu próprio conhecimento anterior e, de posse desse conhecimento enriquecido, volta novamente a examinar o mundo objetivo e a extrair dele novas determinações cujo resultado é uma ampliação ainda maior do conhecimento, num movimento sucessivo e infindável onde o sujeito é o pólo dinâmico do conhecimento e o objeto, o espaço inesgotável de sua ação (7).

A justificação da propriedade e do privilégio pelo trabalho, que na época clássica da economia política, de Adam Smith e David Ricardo, fora a expressão da ação revolucionária da burguesia, transformou-se em mera apologia dos proprietários capitalistas nas décadas iniciais do século XIX, quando o domínio burguês se consolidou (8).

A crítica de Marx, seja à economia clássica, seja aos apologetas vulgares de seu tempo, teve o sentido de aprofundar e alargar a compreensão do papel do trabalho, fazendo dele a categoria privilegiada sobre a qual seu pensamento se ergueu, e transformando a valorização ideológica do trabalho que para a burguesia era apenas ideologia, no principal elemento de explicação do homem e da sociedade, marca do pensamento proletário.

Assim, a consideração do trabalho como o centro da explicação da história, da sociedade, e – ao fim – do valor, não resulta, para Marx e Engels, de uma escolha arbitrária, ideológica, de fundo ético-moral, mas do fato de que o trabalho é a categoria que permite o conhecimento objetivo da ação, da atividade prática do homem, das relações dos homens entre si e com a natureza, superando o subjetivismo e a arbitrariedade das explicações anteriores. A visão burguesa fazia do trabalho a justificação de seus privilégios. Ela tinha um caráter ético-moral, centrado no sujeito, e externo ao objeto do conhecimento. A visão proletária, de Marx e Engels, ao contrário, indicava o caráter objetivo do trabalho, assinalava a presença da mão do homem no mundo das coisas úteis, seja o trabalho direto, vivo, que se aplica aos objetos, materiais e imateriais, seja o trabalho passado, morto, cristalizado nesses objetos. A visão burguesa separa sujeito e objeto. Sua crítica proletária compreende a unidade sujeito-objeto como resultado da ação prática do homem através do trabalho, que é um processo que está simultânea e contraditoriamente no sujeito e no objeto.

Não é apenas a si próprio que o homem cria através do trabalho; cria também a sociedade e o Estado em que vive e sobrevive”

Por isso, Engels pode escrever, em O papel do trabalho na transformação do macaco em homem que o trabalho “é a condição fundamental primeira de toda a vida humana, e é-o a tal ponto que podemos dizer: o trabalho criou o próprio homem (9). Para ele, foi a ação conjunta, cooperativa, dos primeiros hominídeos, a postura ereta, a liberação da mão como instrumento de trabalho, o desenvolvimento da linguagem e do cérebro, que explicam o surgimento do homem – e é o trabalho, ou seja, o intercâmbio produtivo entre o homem e a natureza, que está na base desse desenvolvimento (10).

O intercâmbio com a natureza, e sua transformação para fins próprios, não é privilégio da espécie humana – muitos animais também fazem isso. Mas o que distingue o homem é o fato de que o animal apenas usa a natureza, enquanto “o homem transforma-a para que ela sirva aos seus fins; domina-a. E é nisto que consiste a última diferença entre o homem e os animais; tal diferença, deve-a o homem mais uma vez ao trabalho”, diz Engels (11).

A distinção entre os homens e os animais surge “quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência de sua própria organização corporal”, dizem Marx e Engels em A ideologia alemã (12). Mas, ao contrário do animal, o homem constrói, planeja, na cabeça antes de construir na realidade. Isto é, o trabalho humano resulta de uma decisão consciente, baseada num conhecimento prévio, enquanto o animal opera movido pelo instinto, sem saber o que faz, como explica Marx na famosa comparação que fez entre o trabalho do arquiteto e da abelha (13).

Mais tarde, Marx irá além, dizendo que o trabalho é “um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza“ (14).

O primeiro resultado desse metabolismo á o próprio ser humano que, por sua atividade prática, destaca-se do mundo animal e distingue-se entre os demais seres vivos. O resultado seguinte, lembram os fundadores do socialismo científico, é a estrutura social e o Estado, que “resultam constantemente do processo vital de indivíduos determinados”; não daquilo que eles “aparentam perante si mesmos ou perante os outros, e sim daquilo que são na realidade, isto é, tal como trabalham e produzem naturalmente” (15).

Não é apenas a si próprio que o homem cria através do trabalho; cria também a sociedade e o Estado em que vive e sobrevive – as relações sociais de produção, que no fundo são relações de trabalho, condicionam a forma que a vida social do homem, que as relações dos homens entre si, assumem. Em O capital esta idéia é formulada assim: “Não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz, é o que distingue as épocas econômicas. Os meios de trabalho não são só medidores do grau de desenvolvimento da força de trabalho humana, mas também indicadores das condições sociais nas quais se trabalha” (16). Isto é, ao se desenvolverem o modo de trabalhar e os meios de trabalho, aumentando a capacidade produtiva da força de trabalho, alteram-se também as relações entre os homens, mudam as condições sociais em que a produção ocorre.

Vinícius de Moraes expressa esta verdade em O operário em construção ao falar desse “fato extraordinário:/ Que o operário faz a coisa/ E a coisa faz o operário”. E, entre as coisas feitas pelo operário, o poeta teve o cuidado de incluir “casa, cidade, nação”.

Trabalho e capitalismo

O desenvolvimento do trabalho é contraditório. Em sua origem, o trabalho combinado, a atividade produtiva coletiva, não aparece para o trabalhador como algo que lhe é próprio. Ao contrário, quando surge a divisão do trabalho, dizem Marx e Engels em A ideologia alemã, e a atividade deixa de ser dividida voluntariamente, “a ação do homem transforma-se para ele num poder estranho que se lhe opõe e o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la” (17). Nesse momento uma esfera de atividade exclusiva é imposta a cada indivíduo, e ele não pode sair dela “se não quiser perder os seus meios de subsistência” (18).

Sob o capitalismo o trabalho tem um caráter duplo. Como em todas as épocas econômicas, ele produz coisas úteis – mas somente sob a forma de mercadorias

Esse poder estranho e hostil, que surge juntamente com a divisão do trabalho, ainda não foi superado. A “fixação da atividade social, essa petrificação do nosso próprio trabalho em um poder objetivo que nos domina e escapa ao nosso controle, contrariando a nossa expectativa e destruindo os nossos cálculos, é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico até aos nossos dias”, dizem Marx e Engels em A ideologia alemã (19).

Apesar dessa força estranha ser o resultado da ação combinada de todos os homens, ela é incompreensível para eles. Marx e Engels compreendem o poder social como a força produtiva multiplicada pela cooperação dos diversos indivíduos, condicionada pela divisão do trabalho (20), que não se apresenta aos trabalhadores “como o seu próprio poder conjugado, pois esta colaboração não é voluntária”, mas, sim como um poder adverso, situado fora deles, “do qual não conhecem nem a origem nem o fim que se propõe, que não podem dominar e que de tal forma atravessa uma série particular de fases e estágios de desenvolvimento tão independente da vontade e da marcha da humanidade, que é na verdade ela quem dirige essa vontade e essa marcha da humanidade” (21).

O que importa reter destas formulações de Marx e Engels – muitas delas registradas em escritos jamais publicados durante a vida dos autores – é a noção de que o trabalho cria o homem, amplia sua capacidade de intervenção na natureza e sua força produtiva, e lança as bases em que se estabelecem as relações sociais, determinando a posição de cada um na produção direta, na gestão da riqueza que cabe a cada um. E que a expressão coletiva desse trabalho, com suas variadas operações e funções, desde as mais elementares e simples, até as funções de mando e planejamento, nada mais é do que a força produtiva social de todos os homens – embora nas épocas históricas que conhecemos desde o surgimento das sociedades divididas em classes ela apareça como algo que é estranho aos trabalhadores, dominando-os e subjugando-os.

Partindo dessa síntese histórica da importância do trabalho no processo de hominização, Marx analisa, nos Manuscritos de 1844, a situação do trabalhador em seu tempo, palco de mudanças tão intensas como a que assistimos hoje, com a informatização, os computadores e os robôs. Aquela foi a época do amadurecimento da grande indústria – que Marx considera, com razão, como típica do modo de produção capitalista – com a introdução de máquinas para substituir o trabalho humano e a transformação do trabalhador, de sujeito da produção, em mero apêndice da maquinaria. Em 1844, há século e meio portanto, Marx constatava que, na indústria têxtil, “graças a novas forças motrizes e máquinas aperfeiçoadas, o trabalho de 250 a 350 dos antigos operários” passava a ser feito por um só (22). Da mesma forma como ocorre hoje nas indústrias mais modernas e automatizadas. A produtividade já alcançada poderia permitir uma grande redução na jornada de trabalho, que era então de 12 horas ou mais. “Calculou-se na França”, escreve Marx, “que, dado o atual nível de produção, uma jornada média de trabalho de cinco horas para todos os capazes de trabalhar bastaria para a satisfação de todos os interesses materiais da sociedade” (23).

O trabalhador deixa de ser sujeito da produção, torna-se mero elemento objetivo dela, e sua ação é determinada e regulada pelo movimento da maquinaria

Entretanto, evidentemente, não foi isso que ocorreu. A economia de trabalho devida ao progresso técnico teve efeito contrário, fazendo aumentar a jornada de “uma numerosa população”, nas palavras de Marx, enquanto, por outro lado, lançava milhares no desemprego e na miséria, incorporando legiões de mulheres e crianças ao contingente de trabalhadores, com salários muito menores do que o de seus maridos e pais.

A conclusão de qualquer analista, que estivesse ao lado dos trabalhadores, não poderia ser diferente. “A decadência e o empobrecimento do operário são produtos de seu trabalho e da riqueza por ele produzida”, constatou Marx. Ou, de outra forma: “O operário é tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais cresce sua produção em potência e em volume” (24).

O leitor de Marx, dos Manuscritos de 1844 aos Grundrisse e ao Capital, não pode deixar de se surpreender com a extrema atualidade de suas análises. Afinal, Marx tinha descoberto o segredo da dinâmica do capitalismo, e desenvolveu sua lógica de maneira radical até suas últimas consequências, muitas delas ainda não presentes em seu tempo, mas que hoje saltam da teoria para a realidade.

O aumento da produtividade desvaloriza o trabalho que, sob o capitalismo, produz mercadorias. Mas, diz Marx, o “trabalho não produz apenas mercadorias; produz a si próprio como mercadoria e ao operário como mercadoria, e justamente na proporção em que produz mercadorias em geral”. O “trabalhador”, diz ele, “produz o capital, e o capital o produz”. O trabalhador, assim, “produz-se a si mesmo, e o homem enquanto trabalhador, enquanto mercadoria, é o resultado de todo o movimento” (25).

A linguagem usada por esse Marx ainda jovem não tem a precisão científica que alcançará no futuro – ele substituirá a expressão trabalho por força de trabalho, e o tratamento, de fundo humanista burguês, do homem, do operário transformado em mercadoria, será deixado de lado. Mas ela já contém o esboço genial daquilo que será a mais consequente e radical análise jamais feita do modo de produção capitalista.

Os capitalistas e o próprio capital são, também, assim, produto do trabalho. Já nos Manuscritos de 1844, Marx constata que “o capital é trabalho acumulado” (26). Mais tarde, Marx vai demonstrar como o capital (as matérias-primas, a maquinaria, as instalações) é, na verdade, trabalho passado, trabalho morto, desperto de seu sono eterno pelo trabalho vivo que os operários aplicam sobre ele. “A mera existência de uma classe capitalista, isto é, do capital, se baseia na produtividade do trabalho”, escreveu em As teorias da mais-valia (27). Mesmo o salário que o capitalismo paga é capital. “A substância efetiva do capital empregado em salário é o próprio trabalho, a força de trabalho em ação, criando valor, o trabalho vivo que o capitalista troca por trabalho morto, materializado, incorporado a seu capital” (28).

Prenunciando a crítica genial que Charles Chaplin faria ao sistema fabril no filme Tempos Modernos, Marx mostra como a divisão do trabalho na fábrica cria operários que trabalham como máquinas, com consequências nocivas para seu corpo e espírito (29), naquilo que chamou de “trabalho alienado”. Alienação que consiste, diz ele, no fato de que “o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser”. O trabalhador não se afirma em seu trabalho, “mas se nega; não se sente feliz, mas desgraçado; não se desenvolve uma livre energia física e espiritual, mas mortifica seu corpo e arruina seu espírito”. Ele “só se sente em si fora do trabalho”; “seu trabalho, assim, não é voluntário, mas forçado, trabalho forçado”. Não é a “satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer as necessidades fora do trabalho”. Esse caráter do trabalho, alheio ao trabalhador, se manifesta claramente “no fato de que, assim que não haja uma coação física ou de qualquer outro tipo, o trabalhador foge do trabalho como da peste” (30).

Em O Capital, essa formulação vai desabrochar na análise do fetichismo da mercadoria, onde o produto direto do trabalho, sob a forma de mercadoria, o próprio capital e as relações sociais que ele engendra, “parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantém relações entre si e com os homens” (31), e que fazem as relações de produção próprias do capitalismo parecerem como naturais e eternas. Ainda em O capital, Marx diz que o operário, submetido ao processo de trabalho próprio da grande indústria, onde as atividades são fragmentadas em tarefas simples e elementares, “transforma todo o seu corpo em órgão automático unilateral” da operação baseada nas máquinas (32). Esse sistema “aleija o trabalhador convertendo-o numa anomalia ao fomentar sua habilidade no pormenor mediante a repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas”. Dessa forma, o trabalhador é tratado, diz, como o gado dos pampas platinos, onde “abate-se um animal inteiro apenas para tirar-lhe a pele ou o sebo” (33).

O mundo das mercadorias se divide em duas partes, diz Marx – a força de trabalho de um lado, e do outro todas as demais mercadorias. Isso por uma razão objetiva: a força de trabalho é a única mercadoria cujo consumo gera valor, gera mais-valia, produz capital (34). Mas, atenção, é preciso compreender aqui que sob o capitalismo o trabalho tem um caráter duplo. Ele produz, como em todas as épocas econômicas, coisas úteis – mas, no capitalismo, somente sob a forma de mercadorias. Marx critica Adam Smith por não compreender isso: ele “confunde o trabalho que cria valor, sendo dispêndio de força de trabalho, e o trabalho que cria valor de uso, isto é, que se desprende em forma útil, adequada a um fim” (35).

A empresa capitalista só produz coisas úteis para poder vendê-las; só produz valor de uso porque precisa dele na forma de valor de troca (36). Esta é uma necessidade essencial do capitalismo, que só assim se reproduz. Nos modos de produção anteriores, o excedente era extraído do trabalhador mediante a violência extra-econômica direta. No capitalismo não. Há coerção, é claro, mas ela é institucional, se exerce através do Estado e outras agências da sociedade. Mas a extração do excedente ocorre no próprio processo de trabalho, e é mascarada pelo trabalho livre, assalariado, através do qual o capitalismo paga que na aparência corresponde à jornada completa, mas mascara sua divisão em tempo de trabalho necessário e tempo de trabalho excedente, apropriando-se deste de forma gratuita.

Esse excedente só faz sentido para o capitalista quando, levado ao mercado sob a forma de valor de uso, ele se realiza como valor, repõe o capital investido para sua produção, acrescido de um percentual a mais, que é justamente aquela parcela de trabalho não pago extraída do operário no processo de trabalho.

Sob a forma de mercadoria, que assume no capitalismo, a força de trabalho entra nesse jogo de compra e venda justamente porque é a mercadoria cujo consumo se cristaliza numa quantidade de produtos maior do que usa para sua própria reposição. Em consequência, para o capital, só é produtivo o trabalho que produz mais-valia (37), não importando se o produto do trabalho é ou não útil à sociedade.

A ciência a serviço do capitalismo

Para produzir mais-valia, o capitalista precisa comprar a força de trabalho do operário. E o trabalhador, destituído de todos os seus meios de vida, livre naqueles dois sentidos apontados por Marx – no sentido de não ter um senhor e de ser privado dos instrumentos e meios de trabalho – precisa vender sua força de trabalho ao capitalista para poder sobreviver. O trabalhador é necessário ao capitalista para tomar as matérias-primas e demais meios de trabalho, que formam o capital e são trabalho passado, e “despertá-las dentre os mortos, transformá-las de valores de uso apenas possíveis em valores de uso reais e efetivos” (38). Esta é uma contradição fundamental do capitalismo, o motor que lança o sistema em aventuras tecnológicas cada vez mais ousadas. A necessidade permanente de diminuir o tempo de trabalho necessário, aumentando a parcela de trabalho excedente apropriada pelo capital, juntamente com a necessidade política de usar máquinas cada vez mais produtivas para enfrentar a resistência operária, leva o capitalismo à busca permanente do aperfeiçoamento tecnológico. É uma arma de duas pontas. De um lado, amplia a produtividade do trabalho individual, permitindo ao capital uma enorme economia de trabalho em benefício do capitalista. De outro lado, máquinas não reclamam, não fazem greve, não lutam contra a exploração capitalista, e sua mera introdução pode muitas vezes funcionar como um poderoso elemento desmobilizador da luta operária.

A grande indústria nasce desse impulso. Ela surge da associação entre a força de trabalho e a ciência. Seu princípio, que é o de decompor o processo de produção em elementos básicos, “produziu a bem moderna ciência da tecnologia” (39). Nela, completa-se a metamorfose dos meios de trabalho. Antes, instrumentos de trabalho eram dominados pelo artesão ou camponês que os manuseava. Com a grande indústria, o sistema automático da maquinaria é “posto em movimento por um autômato, por força motriz que se move a si própria; este mecanismo se compõe de muitos órgãos mecânicos, de tal forma que os operários mesmo só estão determinados como membros conscientes de tal sistema” (40). A alma da produção deixa de ser o operário, o trabalhador que, na forma de trabalhador coletivo formado por inúmeros trabalhadores parciais unilaterais, agora está submetido ao maquinismo; o trabalhador deixa de ser sujeito da produção, tornando-se mero elemento objetivo dela, cuja ação é determinada e regulada pelo movimento da maquinaria (41). O trabalho torna-se simples “membro de um sistema cuja unidade não existe nos operários vivos, mas na maquinaria viva (ativa), que se apresenta frente ao operário, frente à sua atividade individual e insignificante, como um poderoso organismo” (42).

“A aplicação tecnológica do conhecimento científico amplia a força produtiva da sociedade, mas submete o trabalhador, minimizando a necessidade do trabalho imediato, direto”.

A grande indústria completa também a expropriação do saber operário, que é apropriado pelo capital; a perícia já não é do trabalhador, mas da fábrica em seu conjunto (43). A maquinaria se desenvolve devido ao acúmulo de conhecimento na sociedade, ao incremento “da força produtiva em geral”. Não é no operário que o conhecimento progride, “mas no capital onde está representado o trabalho genericamente social”. Na maquinaria, a “acumulação do saber e da destreza, das forças produtivas gerais do cérebro social”, é absorvida pelo capital, e se apresenta como sua propriedade. A aplicação tecnológica do conhecimento científico amplia a força produtiva da sociedade, mas submete o trabalhador, minimizando a necessidade do trabalho imediato, direto, e tornando-o “subalterno frente ao trabalho científico geral” (44). Se ninguém dissesse que este texto foi escrito há mais de um século e meio, seguramente ele passaria por uma descrição das mudanças tecnológicas que assistimos hoje.

Com a grande indústria, o operário torna-se apenas o instrumento consciente do sistema de máquinas, cujo coração são as habilidades operárias apropriadas pelo capital e reproduzidas pela máquina, e cuja alma é o saber operário expropriado e cristalizado no mecanismo. A habilidade e a força do operário são apropriadas pela máquina, que “possui uma alma própria presente nas leis mecânicas que operam nela” (45).

A ciência a serviço do capitalismo tem um papel destacado na expropriação do saber operário. A ciência opera, na produção, através da máquina, não do operário; “não existe na consciência do operário”, mas opera “como um poder alheio, como poder da máquina, sobre ele” (46). “A separação entre as potências espirituais do processo de produção e o trabalho manual, bem como a transformação das mesmas em poderes do capital sobre o trabalho, se completa, com já foi indicado antes, na grande indústria erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade pormenorizada do operador de máquina indústrial, esvaziada, desaparece como algo ínfimo e secundário perante a ciência, perante as enormes forças da natureza e do trabalho social em massa que estão corporificados no sistema de máquinas e constituem com ele o poder do ‘patrão’” (47).

O fim do trabalho

Há uma passagem em A ideologia alemã onde Marx e Engels falam da necessidade, para o trabalhador, da abolição do trabalho. Se os proletários pretendem afirmar-se como pessoas, dizem, devem abolir a sua própria condição de existência atual, que é também a de toda a sociedade até os nossos dias. Isto é, “devem abolir o trabalho” (48). É uma idéia que, claramente, não foi desenvolvida nesse texto – que, como disse Engels, foi deixado “à crítica roedora dos ratos”, sem nunca ter sido publicado durante a vida de seus autores.

O aumento da capacidade do trabalho através de equipamentos cada vez mais poderosos vai criar condições objetivas para que todos possam trabalhar menos. Cria as condições objetivas para a superação do trabalho

Esse tema reaparece, com frequência, e de forma mais elaborada, em outros textos também deixados inéditos e só publicados em nosso século. Nos Grundrisse, por exemplo, ao analisar os resultados da aplicação da ciência e da tecnologia à indústria moderna, Marx diz que “o capital trabalha no sentido de sua própria dissolução como forma predominante da produção” (49). Para ele, o enorme aumento da produtividade decorrente da associação entre indústria e ciência diminuirá de tal forma o quantum de trabalho cristalizado em cada unidade de produto que a própria lei do valor poderá perder sua base objetiva, tendendo a desaparecer, e levando consigo o sistema capitalista que nela se baseia. O capital procura diminuir o tempo em que o operário trabalha para si mesmo, reduzindo “a um mínimo o trabalho necessário para a produção de um objeto dado”, e ampliar a parcela de tempo apropriada pelo capitalista. Agindo assim, de “maneira completamente não premeditada”, o capital “reduz a um mínimo o trabalho humano, o dispêndio de energias”, e isso redundará “em benefício do trabalho emancipado, sendo a condição de sua emancipação” (50). Isto é, o aumento da capacidade produtiva do trabalho, através de equipamentos cada vez mais poderosos, vai criar as condições objetivas para que todos possam trabalhar menos.

Há, assim, uma promessa implícita no desenvolvimento tecnológico – a de um mundo de abundância e liberdade, onde o homem ficará livre da imposição das necessidades imediatas da sobrevivência, e poderá dar livre curso ao desenvolvimento de todas as potencialidades de seu ser.
Com essa promessa, os apologistas do capital disfarçam a realidade ameaçadora que a associação entre ciência e indústria impõe à maioria das pessoas – desemprego, incerteza, violência, as mazelas que assistimos no dia a dia, e que a indústria cultural registra em filmes como Blade Runner, o caçador de andróides, ou Robocop.

Essa é a realidade que emerge do uso e domínio pelo capital doconhecimento científico e da força produtiva da sociedade. Mas aquelas promessas se referem a uma realidade possível – de outra forma elas não teriam eficiência como instrumento de propaganda.

Hoje, a economia da força de trabalho permitida pelo aumento da produtividade beneficia apenas o capital; numa outra situação, essa economia poderá beneficiar a todos, reduzindo drasticamente a necessidade de trabalho de cada um.

A grande indústria prenuncia o socialismo e o fim do trabalho na forma em que ele é exercido sob o capitalismo. Cria as condições objetivas para sua superação – mas essa promessa não vai virar realidade de forma espontânea, pela mera evolução das forças produtivas e das relações de produção, mas sim após um intenso processo de luta de classes, ensinam Marx e Engels.

* José Carlos Ruy é Jornalista.

Notas
(1) O poema está em MORAES, Vinícius. O operário em construção e outros poemas, Nova Fronteira, RJ, 1979. Uma boa apresentação do debate sobre a questão do trabalho está em HARVEY, David. A condição pós-moderna, Loyola, SP, 1994.
(2) MARX, Karl. Manuscritos: economia y filosofia, Alianza, Madri, 1972, p. 155.
(3) HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1830) – Volume 1, A ciência da lógica, Loyola, SP, 1995 (esta obra também é conhecida como A pequena lógica) p. 84 e 85.
(4) LOCKE, John. “Segundo tratado sobre o governo”, in Carta acerca da tolerância, Segundo tratado sobre o governo, Ensaio acerca do entendimento humano, Abril Cultural, SP, 1973 (Coleção Os Pensadores, XVIII), p.51 e 52. Ver também MACPERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke, Paz e Terra, RJ, 1979, p. 213.
(5) TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx – uma leitura crítico comentada de O Capital, Ensaio, SP, 1995, p. 273 ss.
(6) Citado em Teixeira, op. cit. p. 274.
(7) MARX, Karl. “Para a crítica da economia política”, Manuscritos econômicos e filosóficos e outros textos escolhidos, Abril Cultural, SP, 1974 (Coleção Os Pensadores XXXV).
(8) MARX, Karl. Teorias sobre la plus-valia, I, Tomo IV de El Capital, Fondo de Cultura Econômica, México, DF, 1980.
(9) ENGELS, Friedrich. “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, in Dialética da natureza, Editorial Presença, Livraria Martins Fontes, Lisboa, SP, 1974, p. 171.
(10) Idem, p. 174-176 e 181.
(11) Idem, p. 182.
(12) MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, I, Editorial Presença, Livraria Martins Fontes, Lisboa, SP, 1976, p. 19.
(13) MARX, Karl. O capital, livro 1, tomo 1, Abril Cultural, SP, 1983, p. 149. (14) Idem, p. 149.
(15) MARX e ENGELS. A ideologia alemã, p. 24.
(16) MARX, K. O Capital, livro 1, tomo 1, p. 151.
(17) MARX e ENGELS. A ideologia alemã, p. 40.
(18) Idem, p. 40 e 41.
(19) Idem, p. 41.
(20) Idem, p. 41.
(21) Idem, p. 41.
(22) MARX, K. Manuscritos, p. 61.
(23) Idem, p. 61.
(24) Idem, p. 58 e 105.
(25) Idem, p. 105 e 123.
(26) Idem, p. 69.
(27) MARX, Karl. Teorias sobre la plus-valia, p. 137.
(28) MARX, Karl. O Capital, livro 2, volume 3, Civilização Brasileira, RJ, 1970, p. 233.
(29) MARX, K. Manuscritos, p. 62.
(30) Idem, p. 109.
(31) MARX, K. O Capital, livro 1, tomo 1, p.71.
(32) Idem, p. 269.
(33) Idem, p. 283.
(34) Teorias sobre la plus-valia, p. 150-151; O Capital, livro 1, tomo 1, p. 139.
(35) O Capital, livro 2, p. 410.
(36) O Capital, livro 1, t. 1, p. 155.
(37) MARX, Karl. O Capital, livro 1, tomo 2, Abril Cultural, SP, 1984 p. 105-106; Teorias sobre la plus-valia, p. 137, 141 e 194.
(38) O Capital, livro 1, tomo 1, p. 153 e 189.
(39) MARX, Karl. Elementos fundamentales para la critica de la economia política (Grundrisse, 1857-1858, v. 2, Siglo Veintiuno, México, DF, 1978, p. 87; O Capital, livro 1, tomo 2, p. 89).
(40) Grundrisse, v. 2, p. 218.
(41) O Capital, livro 1, tomo 1, p. 269; Grundrisse, v. 2, p. 219.
(42) Grundrisse, v. 2, p. 219.
(43) O Capital, livro 1, tomo 1, p. 283.
(44) Grundrisse, v. 2, p. 220.
(45) Idem, p. 218-219.
(46) Idem, p. 219.
(47) O Capital, livro 1, tomo 2, p.44.
(48) A Ideologia Alemã, p. 82.
(49) Grundrisse, v. 2, p. 222.
(50) Idem, p. 224.

EDIÇÃO 43, NOV/DEZ/JAN, 1996-1997, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14