Os mitos da globalização e os desafios do desenvolvimento
“Maravilha fatal da
nossa idade:
Dada ao mundo por Deos
Que todo o mande…”
Luís de Camões, Os Lusíadas, 1572
Substituída a fé messiânica pelo frio cálculo do interesse, o mundo chega ao final do milênio “fatalmente maravilhado” pela obra inaugurada pelos navegadores dos descobrimentos: a globalização. Este foi, de fato, o tema dominante da última reunião de cúpula do G-7 em Lyon. Mas o interesse não se limita aos estadistas do “Primeiro Mundo”. A temática da globalização vem ocupando lugar cada vez mais destacado na cobertura mundial dos meios de comunicação; encabeça a atual agenda de pesquisa das ciências sociais; inspira as mais variadas conferências de organismos multilaterais e mereceu até um pronunciamento específico do Presidente Fernando Henrique Cardoso (na sua visita oficial à Índia, no início do ano). Como já havia ocorrido anteriormente com outros termos que alcançaram projeção mundial semelhante (democracia, liberdade, totalitarismo etc.), tamanha difusão e interesse acabaram por sacrificar a uniformidade e o rigor conceituais. Mas dentre as diferentes e variadas abordagens, vai se delineando uma espécie de “discurso oficial” único sobre o tema, estruturado sobre as seguintes proposições:
– A globalização consubstanciaria uma nova etapa (ou “era”, ou “ordem internacional”) no desenvolvimento do capitalismo, na qual a integração mundial de mercados suplanta a estruturação anterior do sistema em economias nacionais autônomas.
– Esta nova etapa seria caracterizada pelo deslocamento do (grande) capital dos Estados e das economias nacionais, que adquire, assim, uma natureza essencialmente global.
– A formação deste capital global estaria levando ao enfraquecimento generalizado dos Estados nacionais, suplantados por novas estruturas mundiais de poder polarizadas pelas empresas que predominam nos mercados globais.
– Este processo de globalização econômica seria acompanhado por um processo análogo e interligado de “mundialização da cultura”, com valores e identidades globais superando os calores e identidades nacionais.
– Do ponto de vista político, estes processos estariam conformando uma nova “sociedade civil global”, bem como uma espécie de “governo mundial” estruturado sobre organismos multilaterais (ONU, OIC, FMI, Banco Mundial etc.).
– Para o bem ou para o mal (segundo o enfoque do analista), este conjunto de processos imporia aos Estados nacionais uma agenda única de ajuste macroeconômico e uniformização institucional-regulatória, orientada pela “integração plena” nos fluxos mundiais de comércio e investimento.
Segundo este discurso, o processo de globalização (assim definido) seria objetivo e irreversível, podendo ser contestado apenas por mentes “desatualizadas” acometidas de uma cegueira ideológica mais nefasta do que a angustiante epidemia retratada no recente livro de José Saramago (Ensaio sobre a cegueira). Uma análise mais profunda (e histórica) do tema revela, no entanto, que a alegada “objetividade” dos enunciados acima, repousa sobre um conjunto de mitos. Não tenho espaço para enfocar detidamente, aqui, cada uma dessas proposições, mas apresento, a seguir, uma visão de conjunto que revela quão problemáticas são suas postulações e premissas centrais.
A “novidade” da globalização
A referência a Camões, na abertura deste comentário, já denuncia o “mito” crucial e estruturador desta interpretação: o que apresenta a globalização como um fenômeno recente. Na verdade o capitalismo se formou, estruturou e desenvolveu como um sistema global desde o início. Foi precisamente a transformação do capital “natural” (imóvel, territorializado e, portanto, passível apenas de acumulação restrita) em capital “abstrato” (móvel, desterritorializado e, portanto, passível de acumulação ampliada) que viabilizou o desenvolvimento do capitalismo na Europa. Das suas formas manufatureiras iniciais em Gênova, Veneza e outras cidades do norte da Itália no Século XVI às formas industriais mais modernas que se generalizaram a partir da Inglaterra no Século XIX, a produção capitalista se constituiu e desenvolveu sob a égide de fluxos mundiais de comércio e riqueza. Seu principal impulso foi, justamente, a formação de um mercado efetivamente mundial a partir dos descobrimentos e da exploração sistemática do ouro e da prata das Américas que se lhe seguiu. Basta lembrar que a produção das nossas “minas geraes”, além de ornar altares lusitanos, também ajudou a financiar a Revolução Industrial inglesa.
A constituição do mercado mundial foi, assim, fator decisivo para a dissolução da sociedade feudal e a gênese/desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental. Por sua vez, o fortalecimento econômico, social e político da burguesia (inicialmente comercial, depois manufatureira, por fim industrial e bancária), que acompanhou este processo, serviu de base para a formação de Estados nacionais unificados e centralizados nessa região. O capitalismo, assim, se formou e desenvolveu simultaneamente como sistema transnacional (integrado a um mercado global em formação, nos marcos do qual sua forma de produção se generalizou) e internacional (constituído por Estados centralizados soberanos e mercados nacionais unificados por estes, inicialmente apenas na Europa).
A tensão/contradição entre as dimensões global/nacional, portanto, estará entranhada no capitalismo desde os seus primórdios. A própria formação dos impérios coloniais mercantis – e as grandes guerras comerciais que ela engendrou – foi consequência das tentativas de monopolizar à força os recém-constituídos fluxos globais de comércio e riqueza, usando o novo poder político concentrado dos Estados nacionais centralizados. Assim, se a desterritorialização foi “mãe” da acumulação ampliada, tanto o Brasil quanto os demais países americanos (enquanto formação econômico-sociais e, posteriormente, Estados nacionais) são “filhos” legítimos da sua globalização.
Por este ângulo, a grande “novidade” do Século XX não foi propriamente a constituição de uma economia capitalista global (essa já se encontrava formada e consolidada no Século XIX), mas a expansão do sistema de comunidades políticas soberanas para o conjunto do planeta (na seqüência das crises do antigo sistema colonial-mercantilista nas Américas e do seu sucessor colonial-imperialista na África e na Ásia) (1). Esta constatação não ignora ou subestima o fato de que, sob o impacto de importantes inovações tecnológicas, a integração dos mercados globais se intensificou sobremaneira neste período, comprimindo as dimensões do tempo e do espaço no seu interior. O que sustento é que esses desenvolvimentos só vieram acelerar, de forma desigual e diferenciada, um processo secular que é inerente ao (e constitutivo do) capitalismo desde a sua origem. Neste sentido, o desenvolvimento e a difusão da informática e das telecomunicações no final do Século XX cumprem papel análogo ao desenvolvimento e difusão do telégrafo e da telefonia no final do Século XIX. É justamente o desenvolvimento combinado desses dois processos – a integração dos mercados globais e a globalização da forma política do Estado soberano – que dá ao sistema internacional sua configuração contemporânea, marcada por uma distribuição extremamente desigual do poder político, militar, diplomático e econômico. Só um determinismo tecnológico estreito e vulgar poderia nos levar a concluir que isto determina padrões únicos de gestão macroeconômica e regulação econômico-social aos mais diferentes Estados e sociedades.
A globalização do particularismo
Se a formação da economia global e dos Estados nacionais são duas faces do mesmo processo histórico de gênese e desenvolvimento do capitalismo, como podemos/devemos conceber as relações estabelecidas entre as empresas e os Estados nesse processo? Em primeiro lugar, me parece altamente questionável a contraposição generalizada e indiferenciada da Empresa ao Estado Nacional no discurso dominante sobre a globalização. Há, em toda a história do capitalismo, empresas e empresas (poucas das quais puderam ou podem comandar a constituição e exploração dos mercados mundiais), e Estados e Estados (poucos dos quais concentraram ou concentram poder político o militar suficiente para impor uma determinada ordenação a esses mercados). Desde a concessão dos monopólios oficiais para as grandes companhias de navegação, sempre foram bastante evidentes as conexões estabelecidas entre as empresas e os Estados mais fortes nos sistemas de colonialismo aberto: os Estados nacionais centrais procuravam estabelecer territórios econômicos os mais amplos possíveis no interior do mercado mundial, reservando a sua exploração para os capitais sediados na Metrópole. Mas como evoluíram e seguem evoluindo essas relações a partir da dissolução dos antigos impérios coloniais e a globalização do sistema de Estados soberanos?
“Na verdade, o capitalismo se formou, estruturou e desenvolveu como sistema global desde o início”
Esta questão traz para a discussão a relação entre “dinheiro” e o “poder” nas formas políticas do capitalismo avançado – um tema, infelizmente, pouco explorado pela Ciência Política contemporânea.
No que concerne o tópico deste artigo, o fato é que as grandes empresas transnacionais continuaram (e continuam) a explorar das disparidades de poder político no sistema internacional para abrir, conquistar e proteger mercados. Deste ponto de vista, a apresentação da relação entre o capital global e os Estados centrais do sistema como “exterior” ou “descolada” é uma mera representação ideológica (no sentido negativo de inversão/falsificação da realidade). Basta pensar, para citar alguns casos recentes, na pressão pesada exercida pelo Estado norte-americano para forçar o Brasil, a China, a Índia e outros países em desenvolvimento, a aprovar uma legislação de patentes favorável aos interesses das empresas transnacionais sediadas nos Estados Unidos; ou então no envolvimento direto dos governos e serviços secretos dos EUA e da França (a favor, respectivamente, das empresas Raytheon e Thompson) na polêmica concorrência do SIVAM.
Por outro lado, se é verdade que se busca cada vez mais ordenar o funcionamento dos mercados globais do capitalismo contemporâneo via organismos multilaterais, é igualmente verídico que a autoridade destes repousa, em última instância, sobre o monopólio da força física exercida por (alguns) Estados nacionais. A razão fundamental que impede a superação generalizada destes é a mesma que impede a consolidação planetária de um novo ethos universal: o que se universaliza no mundo a partir da sua integração global pelo capitalismo é uma lógica de acumulação possessiva e conflitiva. Em outras palavras, o que se globaliza é uma “ordem” intrinsecamente contraditória, incapaz de integrar e unificar a humanidade em um projeto cooperativo comum. Nos marcos desta ordem, a exploração de interesses e identidades particulares (locais, nacionais e regionais) se transforma em recurso crucial de poder para a conquista e preservação de mercados. Isto nos ajuda a entender porque a atual “era da globalização” assiste a um renascimento sem precedentes do racismo, do chauvinismo nacional e do fundamentalismo religioso. E nos permite, igualmente, compreender a aparente incongruência entre o diktat (neo)liberal global das potências capitalistas centrais e as suas próprias práticas protecionistas nacionais e regionais.
A nova reificação e os desafios do desenvolvimento
Diante de tudo isto, que perspectivas se apresentam para o Estado brasileiro e asa diferentes forças políticas, econômicas e sociais atuantes no nosso país? O ponto de partida para a busca de um desenvolvimento que supere as profundas iniquidades da nossa sociedade é a ruptura intelectual e teórica com a “jaula virtual” do discurso oficial sobre a globalização. Este nada mais é do que a forma “moderna” e “contemporânea” assumida pela velha e conhecida alienação, que insiste em conceber poderes engendrados pela ação recíproca de homens e mulheres ao longo de meio milênio – o mercado mundial e a economia global – como forças estranhas e inumanas, às quais a humanidade deve agora se curvar.
Desta forma, os enunciados básicos do discurso oficial se articulam e concatenam como recurso de poder para desqualificar a priori, como “absurda” e “atrasada”, qualquer proposta alternativa à sua agenda única “natural” (privatização / contenção e restrição de programas de seguridade social / redução acelerada de barreiras alfandegárias / eliminação de obstáculos fiscais e regulatórios que dificultam a entrada do capital global / prioridade para a montagem da infra-estrutura necessária para a atração de investimentos / etc.) Embora imerso em considerações “pragmáticas” e “realistas”, o objetivo ideológico do discurso é um só: impedir, sobretudo nos países “em desenvolvimento”, que o poder dos Estados soberanos (em muitos casos, de formação recente) seja mobilizado para articular uma agenda contrária aos interesses entrelaçados das empresas e dos Estados do capitalismo avançado.
“O que se universaliza no mundo a partir da sua integração global pelo capitalismo é uma lógica de acumulação possessiva e conflitiva. O que se globaliza é uma ordem intrinsecamente contraditória, incapaz de integrar e unificar a humanidade em um projeto cooperativo comum”
Mas ao longo do desenvolvimento do capitalismo, diferentes Estados e forças sociais se situaram diante da economia global com políticas macroeconômicas e combinações institucional-regulatórias bastante diferenciadas. Mesmo hoje, os países que mantém os índices mais acelerados de desenvolvimento no mundo – os do leste asiático – não se curvam à agenda única dos ajustes ortodoxos, e mantém um grau bastante elevado de intervenção/planejamento estatal nas suas economias. No caso de um país de porte continental e realidade interna tão complexa como o Brasil (ou a Rússia, ou a China, ou a Índia), a opção indiferenciada pela “integração plena nos fluxos mundiais de comércio e investimento” é particularmente inadequada para sustentar um novo ciclo integrado de desenvolvimento nacional. Em contrapartida, uma política mais seletiva e diferenciada de inserção internacional – orientada para a elevação da produtividade média da nossa economia e não apenas para concentração em setores capazes de concorrer na fronteira tecnológica dos mercados globais – pode ter efeitos muito mais integradores para nossa sociedade (tanto do ponto de vista social, como econômico e político). E para confrontar as iníquas estruturas de poder econômico e político prevalecentes no sistema internacional, esta deve necessariamente vir conjugada com uma política mais ativa de integração horizontal regional (no nosso caso, latino ou sul americana).
Enfim, parafraseando Sartre, do ponto de vista da liberdade humana, mais importante do que constatar a existência de “condições objetivas” é decidir o que fazer com elas. E um bom começo é reconhecer/conceber os processos e forças sociais que nos defrontam como criações históricas, passíveis de transformação.
* Professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Esta é uma versão ampliada do artigo publicado na revista Vertente, vol. 1, n. 8, jun./jul. 1996.
Nota
(1) O nosso século foi profundamente marcado também, é claro, pela tentativa de constituição de um sistema mundial socialista alternativo à economia global capitalista, mas como essa tentativa fracassou, não me ocupo dela no presente ensaio.
EDIÇÃO 43, NOV/DEZ/JAN, 1996-1997, PÁGINAS 32, 33, 34, 35