Vietnã: o tigre prepara outro salto
Certa vez, falando ao jornalista norte-americano David Schoenbrunn, Ho Chi Minh referiu-se a resistência de seus compatriotas ao colonialismo francês como a um combate entre um tigre e um elefante: “se o tigre parar, o elefante o transpassará com suas possantes presas. Mas o tigre jamais parará, e o elefante morrerá de exaustão e hemorragia” (1).
O 8° Congresso do Partido Comunista do Vietnã, realizado no início de julho, em Hanói, e ao qual tive a honra de assistir como representante do Partido Comunista do Brasil, atualiza os passos do incansável tigre, festejando um feito singular: o partido dirige a segunda economia que mais cresce na Ásia – 9,5% em 1995 – logo depois da China, por sinal outro país que persiste no caminho socialista.
Em um mundo capitalista que assiste estarrecido e impotente ao declínio das taxas de crescimento, quer nas nações industrializadas, quer nos países da periferia submetidos à brutalidade da estabilização neoliberal, as realizações econômicas do Vietnã e da China merecem atenção e destaque.
“Renovar não significa mudar de objetivo socialista, mas ter uma concepção mais justa do socialismo e realizar este objetivo através de formas, passos e medidas apropriadas” (Relatório ao 8° Congresso)
Enquanto Brasil, Argentina, México e outras vítimas do receituário do Banco Mundial e FMI naufragam no desemprego, aumento da marginalização social e vêem suas economias destroçadas a pretexto da manutenção da moeda estável e inflação baixa, a experiência Vietnamita alerta que pode haver um caminho para o desenvolvimento com equilíbrio social, moeda confiável e inflação sob controle.
Os vietnamitas empenham-se, hoje, em reconstruir sua pátria devastada por três guerras sucessivas de agressão, movidas pelo Japão, pela França e pelos Estados Unidos. A resistência heróica e prolongada do povo vietnamita terminou com a derrota americana em 1975 e a reunificação nacional em 1976. O país enfrentou uma grave crise econômica e social no final dos anos 1970 e no começo dos 1980, em parte por causa das dificuldades herdadas do período da guerra e em parte pela aplicação mecânica dos modelos de construção do socialismo, conforme reconheceu o Partido Comunista em 1986, no 6º Congresso, iniciando um movimento de retificação, aprofundado após a derrota do Socialismo no Leste Europeu e na União Soviética.
O modelo de forte centralização burocrática foi substituído por uma orientação mais flexível que, preservando a direção do Partido Comunista, a hegemonia do setor socialista da economia e os planos quinquenais, adotou mecanismos de mercado e promoveu uma abertura controlada a investimentos privados, principalmente estrangeiros, ou como eles próprios denominam no Informe Político do Comitê Central ao 8o. Congresso “economia mercantil com vários componentes, movendo-se segundo o mecanismo de mercado sob a gestão do Estado” (2).
O acelerado ritmo de crescimento entre 1991 e 1995 – taxas médias anuais de 8,2% na produção global, de 13,3% na indústria, de 20% nas exportações e de 27% na produção de alimentos – tornou o país capaz de garantir o abastecimento alimentar de sua população de 70 milhões de habitantes e ainda exportar excedentes de arroz, inclusive para o Brasil.
Ao mesmo tempo, o combate à inflação obteve êxitos invejáveis, sem cobrar do país e do povo os elevados custos sociais dos programas de estabilização tão conhecidos dos povos da América Latina. A taxa de inflação que chegou a alcançar 774,7% em 1986 foi baixando gradativamente para 67,4% em 1990, 67,6% em 1991, 17,6% em 1992, 5,2% em 1993, 14,4% em 1994 e 12,7% em 1995, índices absolutamente aceitáveis, considerando a elevada taxa de crescimento do país no mesmo período (3).
Uma apreciação dos resultados do plano quinquenal 1991-1995 evidencia as vitórias alcançadas e responde com um exemplo prático como a intervenção de um estado comprometido com os interesses populares pode fazer mais pelo povo do que a mão invisível e interesseira do mercado (tabela 1).
Os números, porém, não rebaixam o senso crítico e autocrítico dos vietnamitas em relação às suas debilidades. Eles reconhecem as dificuldades de gestão nas empresas estatais, reduzidas de aproximadamente 12 mil em 1990 para algo próximo de 6 mil em 1995. Essa redução, longe de significar a abdicação do Estado do papel dirigente da economia, apenas evidencia uma reorientação para se concentrar nos setores considerados estratégicos – eletricidade, petróleo, telecomunicações, informática, indústria naval, bancos, seguros. Ao mesmo tempo a indústria de manufaturados, alimentos, cerâmicas e artesanato perdem prioridade na ação estatal.
As estatísticas oficiais registram ainda que a participação do setor estatal no PIB apresenta uma tendência a diminuir, passando de 67,5% em 1990 a 59,8% em 1994. O governo e o partido não acham essa tendência lógica, mas apenas o reflexo das dificuldades das empresas estatais em explorar suas potencialidades. Acreditam que a melhoria nos mecanismos de gestão, principalmente a qualificação de mão-de-obra, ajudará na retomada da expansão do setor estatal no conjunto da economia.
Embora o último plano quinquenal (1991-1995) tenha criado uma média de um milhão de empregos/ano, o desemprego permanece como uma questão social dramática para milhões de vietnamitas da cidade e do campo.
Os dirigentes do Estado manifestam preocupação com o desenvolvimento da infra-estrutura. Os bombeiros norte-americanos, principalmente no Norte, deixaram o país praticamente sem pontes e com as malhas rodoviária e ferroviária destruídas. Mesmo quinze anos após o fim da guerra, o trabalho de reconstrução não está terminado e constitui grave inibição aos investimentos e ao desenvolvimento.
A cidade de Hao Long, situada na baía do mesmo nome, tem tudo para se transformar em um dos grandes pólos turísticos da Ásia. A baía com suas três mil pequenas ilhas serviu de cenário para boa parte do flime Indochina. Mas o hotel que hospedou a estrela francesa Catherine Deneuve obtém taxas muito baixas de ocupação.
Questionado sobre as razões de tanto potencial desaproveitado o responsável do partido respondeu que os turistas não podem ser trazidos para um local que não dispõe de um aeroporto internacional nem de acesso fácil por ferrovia ou rodovia. Tão logo seja possível, acrescentou, os investimentos serão realizados para tornar Hao Long um lugar irresistível aos olhos dos turistas de todo o mundo.
As esperanças do dirigente de Hao Long não devem estar muito longe da concretização, pelo menos a considerar as taxas de investimento na economia em relação ao PIB, que saltaram de 15,8% em 1990 para 27,6% em 1995. Os números são alentadores se cotejados com taxas de investimento de 15% do PIB do Brasil, e ainda que guardando uma relativa distância dos 37,2% alcançados pela Coréia do Sul e 39,7% por Cingapura.
Os avanços sociais também têm sido significativos, a ponto do Unicef, organismo das Nações Unidas para a infância, colocar o Vietnã em segundo lugar numa lista de países que adotaram programas eficientes de proteção às suas crianças.
A parcela de famílias abaixo da linha de pobreza caiu de 55% em 1989, para 20% em 1993. Vai ficando distante a imagem desoladora de milhares de Vietnamitas em frágeis botes à deriva fugindo das dificuldades econômicas no ápice da crise de final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Nos pronunciamentos dos dirigentes durante o Congresso, esses migrantes são tratados como parte do povo e a eles é feito o mesmo apelo para o esforço comum de reconstrução nacional.
Com apenas 30% de sua população residindo nas cidades, o vietnamita reserva um respeito especial ao trabalho no campo. É motivo de orgulho ter alguém na família no cultivo da terra, e o governo tem feito todo o esforço para levar ao campo escolas, assistência médica e melhorias que tornem a vida rural menos difícil.
As terras férteis cortadas por rios caudalosos e a posição estratégica de seu imenso litoral debruçado sobre o mar da China e o golfo do Sião tornaram o Vietnã uma atraente presa para a cobiça estrangeira ao longo de sua história. Invasores mongóis e chineses precederam as recentes ocupações do país pela França, Japão e Estados Unidos. Eis porque os vietnamitas são tão ciosos de sua independência e exigentes nos cuidados com a defesa de sua soberania e com a preparação de suas forças armadas.
“Encarar a verdade de frente, apreciá-la com justeza e dizê-la com nitidez” (Relatório ao 8° Congresso)
O museu das forças armadas em Hanói exibe nos jardins o Mig 21 que, pilotado por um vietnamita, derrubou 14 gigantescos bombardeios B 52 dos agressores americanos. Lá também pode-se ver os destroços dos aviões inimigos abatidos, a bateria de canhões que primeiro chegou a Dien Bien Phu na derrota francesa de 1954, além do tanque que entrou no palácio presidencial de Saigon em 1975.
Engana-se quem confundir este zelo com qualquer espírito belicista. Ao contrário, os vietnamitas são portadores de um elevado espírito internacionalista e uma curiosidade sem par em relação ao mundo. Nas províncias, inúmeros dirigentes manifestaram diversificado e surpreendente conhecimento do nosso país, de sua geografia e economia, do mesmo modo que um grande número de meninas e meninos camponeses lembraram o nome de astros de nossa seleção de futebol e das telenovelas brasileiras.
Ho Chi Minh, fundador do Partido Comunista e do moderno Vietnã, viveu quase trinta anos fora do país, percorreu continentes, visitando inclusive o Brasil, sendo recebido pelo pintor Di Cavalcanti (4). Ele via na luta de libertação do Vietnã não apenas a realização do patriotismo do seu povo mas a contribuição que ela representava para a causa comum da humanidade contra o colonialismo, a opressão e a barbárie.
Apesar do bloqueio norte-americano, mantido até recentemente, o Vietnã estabeleceu relações diplomáticas com aproximadamente 160 países e relações comerciais com cerca de 100 países, recebendo de pelo menos 50 deles algum tipo de investimento.
No Congresso de Hanói, pude ouvir, além doa pronunciamentos dos partidos comunistas de vários países, o comovente discurso da representante do Partido Social-Democrata da Suécia, que evocou o assassinato do ex-primeiro ministro Olaf Palme e sua posição crítica à agressão norte-americana.
Como pode um pequeno país como o Vietnã resistir ao cerco ideológico, político e econômico de um mundo dominado pelos valores do mercado? Que desafios vencer e dificuldades superar? Que concessões fazer e que linha imaginária traçar como limite na defesa das conquistas revolucionárias?
O 8° Congresso faz grave advertência:
“As forças hostis ao socialismo e à independência nacional dirigem sempre seu ataque contra o Partido. Suas manobras usuais consistem em falsificar a história, renegar as conquistas revolucionárias assim como os sacrifícios e os méritos dos comunistas, exagerar os erros e insuficiências do Partido, exigir o exercício dos direitos do homem e da democracia segundo a concepção burguesa, a despolitização do aparelho do Estado, o pluralismo e o multipartidarismo, com vistas a apagar o papel dirigente do Partido. Eles se sevem dos oportunistas, dos renegados políticos ou dos elementos degenerados em qualidade e em moral para dividir o Partido, enfraquecê-lo e sabotá-lo em seu seio”.
Com a finalidade de prevenir os riscos representados para a manutenção da construção do socialismo, o Congresso apontou a direção da economia como a tarefa central e a construção do Partido como a tarefa-chave.
Para impedir os danos causados pela burocratização, o Partido se esforça para ampliar a democracia socialista no país, aperfeiçoar o estado de direito, criticando e punindo a violação dos direitos do povo por parte de dirigentes partidários e funcionários do Estado.
Conscientes de que os tempos atuais ensejam perigos e desafios a Conferência Nacional do Partido realizada em 1994 advertiu contra os quatro grandes riscos: o perigo de cair no atraso econômico mais acentuado em relação aos outros países da região; o desvio da orientação socialista, o burocratismo e a corrupção.
A julgar pelas convicções manifestadas por dirigentes e militantes da tribuna do 8o. Congresso e pela conhecida disposição de luta e trabalho da nação indochinesa, os quatro grandes perigos serão vencidos para a merecida alegria de um dos povos mais resolutos e sacrificados da história contemporânea. (tabela 1)
* Deputado federal pelo PCdoB/SP.
Notas
(1) LACOUTURE, Jean. Ho Chi Minh, p. 132, Nova Fronteira, RJ, 1977.
(2) Informe Político do Comitê Central ao 8º Congresso do Partido Comunista do Vietnã, tradução direta do francês de Duarte Pereira.
(3) Economie Du Vietnã, Dix Annees de Renovation, Bureau Central des Statistiques.
(4) CAMPOS, Roberto; Lanterna na Popa, p. 838, Topbooks, RJ, 1994.
Bibliografia de referência
Ho Chi Minh. Organizadora: Maria Helena Alvarez, coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1984.
Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1984.
LLOYD, Dana Ohlmeyer. Ho Chi Minh. Nova Cultural, 1987.
RUSSEL, Bertrand. SARTRE, Jean Paul. DIDIJER, Vladimir. Estados Unidos no Banco dos Réus. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
LACOUTURE, Jean, Ho Chi Minh. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
Informe Político do Comitê Central ao 8o. Congresso do Partido Comunista do Vietnã, tradução do francês de Duarte Pereira.
Economie Du Vietnam, Dix Annees de Renovation, par Le Van Toan, directeur géneral, Bureau Central des Statistiques.
Os assassinos de My Lai
Entre os dias 2 e 10 de maio de 1967, em Estocolmo, na Suécia, reuniu-se o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, presidido pelos filósofos Bertrand Russel e Jean-Paul Sartre, nas presidências honorária e executiva, respectivamente, com o objetivo de levar ao banco dos réus os Estados Unidos pelos crimes de guerra praticados contra o povo do Vietnã.
O Tribunal proferiu sua sentença ao final das deliberações, condenando, por unanimidade, o governo dos Estados Unidos por “crime de genocídio contra o povo do Vietnã; por uso ou experimento de armas proibidas pelas leis de guerra; tratamento proibido pelas leis de guerra imposto aos prisioneiros ; e por tratamento desumano, pela lei internacional, em relação a população civil”.
Em My Lai, pequena aldeia Vietnamita, soldados e oficiais norte-americanos executaram friamente centenas de camponeses desarmados (maioria de velhos, mulheres e crianças). A denúncia do episódio comoveu o mundo, mas até hoje, ao contrário dos criminosos nazistas, nenhum dos facínoras de My Lai foi submetido s julgamento público por um tribunal internacional.
A destruição de 70% da capacidade produtiva do Vietnã pelos intensos bombardeios, a ruína dos campos de cultivo pelo uso de desfolhantes químicos (agente laranja), os 55 mil jovens norte-americanos mortos e 300 mil feridos ao lado de 1,5 milhão de vietnamitas mortos e milhões de mutilados, permanecem como uma mácula hedionda na história recente dos Estados Unidos.
“Agora temos um problema: tornar nossa força digna de crédito e o Vietnã parece ser o lugar, disse o presidente John F. Kennedy logo após a fracassada invasão de Cuba (Baía dos Porcos), em 1961, Kennedy não viveu para testemunhar os crimes que premeditara, bem como o retumbante fracasso de seu império assassino.
Hoje há quem imagine e fale que o mundo mudou e esta época está superada. Engano! A centopéia imperialista tem muitas pernas para correr atrás de seus objetivos: a guerra comercial, o monopólio tecnológico, política financeira de soterramento das economia nacionais. Mas lá, no ventre do monstro, a máquina de guerra permanece intacta, à espreita da ação.
EDIÇÃO 43, NOV/DEZ/JAN, 1996-1997, PÁGINAS 54, 55, 56, 57