A privatização da Vale e o leilão dos minérios brasileiros
O governo de Fernando Henrique Cardoso deu partida oficialmente, no limiar do ano de 1996, ao processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce – CVRD – com leilão previsto para o primeiro semestre de 1997. A notícia correu mundo e está provocando enormes expectativas em todos os mercados, sobretudo após a descoberta das duas megajazidas de ouro em Carajás, com reservas de 150 toneladas e 300 a 500 toneladas, respectivamente. Nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia, grandes investidores do capital financeiro e grupos de interesse no mercado internacional dos minérios produzidos e comercializados pela Vale do Rio Doce, sobretudo seus concorrentes australianos, preparam-se para o grande leilão. Como nos tempos das ordenações manuelinas, não esconde sua ansiedade por se apossar dos "veeiros de ouro ou qualquer outro metal encontrados em terras do Brasil".
Numa espécie de ato falho, uma inconfidência, em que revela onde se encontram os verdadeiros interessados na alienação da Cia Vale do Rio Doce, usando linguagem que mais se assemelha à de um garoto-propaganda anunciado as excelências de sua mercadoria, o inglês Nicholas R. Hurd, diretor geral do Banco Flemings no Brasil declarou, eufórico:
"A Vale é uma empresa de primeiríssima linha. Não conheço no mundo nada igual. Nenhuma outra empresa de mineração no mundo tem o potencial da Vale. O grupo é completo. Além de ser líder em ferro, tem minas de ouro, cobre, bauxita, e ainda atua em papel e celulose, navegação e ferrovias".
É curioso, de fato os números comprovam. O lucro líquido obtido pela Vale de janeiro a setembro deste ano demonstra um crescimento 33.9% maior do que o obtido no mesmo período do ano passado. A Companhia Vale do Rio Doce é a maior e talvez a última expressão do esforço nacional para abrir e trilhar um caminho de desenvolvimento econômico independente e sustentado, numa época de predomínio cada vez maior dos grandes grupos econômicos internacionais sobre as nações do chamado Terceiro Mundo. Criada há pouco mais de meio século, a Vale do Rio Doce foi o resultado da luta de setores nacionalistas pela industrialização do país e pela aplicação de um projeto nacional de desenvolvimento, favorecida pela conjuntura mundial de então.
Hoje, a Cia Vale do Rio Doce é um poderoso conglomerado, com 14 empresas controladas, 22 coligadas e quatro participações minoritárias, operando em nove estados brasileiros nas áreas de mineração, pelotização, pesquisa mineral, siderurgia, metalurgia, fertilizantes, bauxita, madeira, celulose, papel, ferrovia e navegação. É a maior produtora de minério de ferro do mundo; detém 25% do mercado mundial desse produto. É ainda a maior produtora de ouro da América Latina e uma das cinco maiores do mundo, com uma produção de 17 toneladas anuais. Possui uma fabulosa infra-estrutura e eficientes meios de transporte: duas ferrovias – Vitória-Minas e Carajás – que, embora representem apenas 7% da malha ferroviária do país, transportam mais de 64% da carga movimentada em ferrovias.
A Vale é responsável por 40% da movimentação portuária do Brasil. Os 50 navios da Docenave (pertencente a Vale) transportam 30 milhões de toneladas de produtos por ano. Os investimentos realizados e previstos atestam que a empresa encontra-se em franca expansão. Nos últimos dois anos, a Vale investiu cerca de 4 bilhões de dólares. Recentemente, com a inauguração da nova fábrica da Alunorte em Barcarena, no estado do Pará, cujos investimentos chegaram perto de um bilhão de dólares, o Brasil deixou de depender da importação da alumina, estágio intermediário entre a bauxita e o alumínio. Na área de papel e celulose, onde a empresa tem intensificado suas atividades, estão sendo viabilizados projetos cujos investimentos se aproximaram de 1,8 bilhão de dólares. No Projeto Cobre Salobo, também no Pará, serão investidos 1,5 bilhão de dólares, enquanto que, para a exploração do caulim, cujas reservas são calculadas em 100 milhões de toneladas, o Projeto Pará Pigmentos, também de responsabilidade da Vale, absorverá investimentos da ordem de 174 milhões de dólares. Também a produção de minério de ferro está em vias de expansão, com o projeto para a instalação de mais uma usina de pelotização no Porto de Tubarão, no Espírito Santo, com investimentos estimados em 200 milhões de dólares.
Esses dados, que traçam com nitidez o perfil de uma empresa patrimonialmente forte, produtiva, lucrativa, com atuação diversificada e excelente desempenho, segundo todos os indicadores econômicos e financeiros, denunciam, ao mesmo tempo, que sua alienação, se consumada, constituirá grave crime de lesa-pátria do governo de Fernando Henrique, um flagrante atentado à soberania do país, um golpe mortal aos anseios de desenvolvimento do povo brasileiro. Ressalte-se que não há no Brasil nenhum grupo econômico com recursos para adquiri-la. O interesse em privatizar a Vale do Rio Doce parte de grandes grupos econômicos internacionais, que cobiçam os abundantes minérios que repousam na vastidão do território nacional e, em especial, na Amazônia. Frise-se ainda que somente uma empresa no mundo compete com a Vale, em desvantagem, no mercado internacional de minério de ferro: o conglomerado australiano CRA-DHP. A venda da Vale ou sua fragilização por meio da pulverização das empresas que fazem parte do seu complexo desbancaria a empresa brasileira da posição que ocupa no mercado mundial, que passaria a ser hegemonizado pelo conglomerado australiano. A privatização da Vale interessa diretamente, também, aos grandes corretores de títulos e ações no mercado internacional de capitais, lucrativos rentistas na parasitária atividade da especulação financeira.
Quando faço referência à pujança da Companhia Vale do Rio Doce é para pôr em evidência os prej uízos que sua privatização acarretaria ao País. Mas isto não esgota o problema. Os ministros e tecnocratas do governo estimulam a discussão sobre o valor das ações da Vale no mercado financeiro e vinculam a venda da empresa ao reforço de caixa do tesouro, a fim de reduzir a dívida pública, inominável falácia, visto que, por maior que seja a cotação das ações, e supondo que toda a sua venda resultasse em ingresso de dinheiro vivo no caixa do tesouro, nem mesmo 10% da dívida pública seria amortizada | com a operação. Os leiloeiros ganham tempo para anestesiar a opinião pública. Lançam balões de ensaio nos jornais, falam ora em 8 bilhões de dólares, ora em 10, ora em 12, discutem a forma de vender a companhia, se em bloco ou por partes, debatem sobre percentuais, anunciam a pulverização do conglomerado CVRD e a diversificação dos compradores.
Eludem, assim, o problema principal. A venda da Vale não está relacionada a este ou àquele valor a entrar no caixa do tesouro, nem é uma questão de cotação de títulos, se o governo ganhará tal ou qual soma no mercado de capitais. A questão de fundo é a alienação dos vastos recursos minerais do Brasil aos interesses imperialistas. Aqui o problema é de natureza estratégica, de concepção de desenvolvimento nacional. De defesa ou de renúncia à soberania do país. De responsabilidade com seu futuro ou de capitulação, tão vergonhosa quanto pragmática, às pressões dos grandes potentados internacionais.
O Brasil ocupa posição privilegiada no mundo quanto às reservas e à produção de uma série de minerais estratégicos, alguns dos quais chamados de minerais do futuro, porquanto relacionados às revoluções tecnológicas e à descoberta de novas tecnologias de ponta. Dados de 1992 de Departamento Nacional da Produção Mineral, que extraímos da brochura Retrato do setor mineral no Brasil, publicado no ano passado pela Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), atestam a posição privilegiada de nosso país quanto à posse de reservas em relação às reservas mundiais (tabela 1) e quanto à produção, também em comparação com a produção mundial (tabela 2). No território nacional, particularmente a Amazônia e, de modo ainda mais específico, a Província Mineral de Carajás, controlada pela Companhia Vale do Rio Doce, são os maiores depósitos naturais dessas riquezas.
A Companhia Vale do Rio Doce é guardiã, detém direitos minerários sobre imensas reservas de minério de ferro, ouro, cobre, bauxita, níquel, estanho, manganês, zinco, titânio e outros minerais com alto potencial econômico, como cobre associado ao ouro, prata e molibdênio, o níquel e a cassiterita,
existentes nas ricas jazidas da Província Mineral de Carajás numa área de mais de 400 mil hectares da floresta amazônica.
A Província Mineral de Carajás é uma das áreas mais ricas em minérios do planeta. Ali estão depositadas 18 bilhões de toneladas de minério de ferro com teor de 67% de hematita, o suficiente para, mantido o ritmo atual, fornecer minério de ferro por mais 500 anos. A jazida de manganês possui reservas estimadas em 65 milhões de toneladas. As reservas de ouro são calculadas em mais de 500 toneladas – sem considerar a última descoberta em Carajás. Hoje, o projeto Carajás, tocado pela Cia. Vale do Rio Doce, responde pela produção, beneficiamento, transporte e exportação anual de 35 milhões de toneladas de minério de ferro, além de 1 milhão de toneladas de manganês e 9 toneladas de ouro. O Brasil é o 3 o produtor mundial de bauxita (minério de alumínio) com reserva de 3,8 bilhões de toneladas, das quais 3,231 bilhões de toneladas em Carajás guardadas pela Cia. Vale do Rio Doce, sofregamente cobiçadas por três das "seis irmãs" do alumínio com empreendimentos no Brasil – as norte-americanas Alcoa e Reynolds e a canadense Alcan. Repousam no território brasileiro seis bilhões de toneladas de titânio, 5 bilhões das quais na Amazônia, sob controle da Cia. Vale do Rio Doce. O titânio, valorizado pelas tecnologias de ponta, é considerado um "metal do futuro", um dos principais componentes de superligas, conhecido como anatásio, resistentes à corrosão e às deformações mecânicas, mesmo quando submetido a elevadas temperaturas. É usado, por essa razão, em veículos espaciais, condensadores de instalações nucleares navais, usinas dessalinizadoras de água do mar, protótipos de reatores de fusão nuclear, etc. Especialistas afirmam que, no total, poderiam ser obtidas, a partir dessas reservas, mais de 700 milhões de toneladas de óxido de titânio puro, o que posicionaria a CVRD como controladora de 50% das reservas mundiais desse metal do futuro. Tal como a bauxita, cobiçada pelas "três irmãs" do alumínio, o titânio brasileiro, com a alienação da Cia.Vale do Rio Doce cairia em mãos da norte-americana Du Poty e da luxemburguesa Samitri, principais interessadas na apropriação desse metal precioso.
A venda da Vale do Rio Doce aparece, assim, como passo decisivo para a alienação do rico patrimônio mineral brasileiro, uma vez que, com sua venda, a estatal perderá os direitos minerários acima referidos.
Se por um lado, constatamos que se acelera o processo de privatização da Vale, no quadro da aplicação da política neoliberal pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, por outro, temos razões para confiar no espírito patriótico do povo brasileiro e de suas lideranças mais lúcidas. Nos últimos dias, várias iniciativas trilham no rumo de um verdadeiro movimento patriótico em defesa da Companhia Vale do Rio Doce: um Manifesto contra a venda da Vale tendo a frente o ex-Presidente Itamar Franco, Aureliano Chaves, ex-Ministro das Minas e Energias, D. Luciano Mendes de Almeida, Arcebispo de Mariana, entre outros, foi lançado recentemente em Minas Gerais e assume dimensão Nacional; da mesma forma, uma campanha para alcançar 1 milhão de assinaturas a um Projeto de Iniciativa Popular, propondo incluir a Vale do Rio Doce entre as exceções do Programa Nacional de
Desestatização é assumido por personalidades, entidades civis e populares de todo País; também uma Ação Popular assinada por nós e toda bancada Federal do PCdoB, propõe a suspensão dos atos que conduzem à privatização da CVRD.
Estamos em um momento decisivo. Só mesmo um levante nacional, como este que se inicia, poderá barrar a fúria entreguista do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Socorro Gomes é deputada federal pelo PCdoB-PA, membro da Frente Parlamentar em Defesa da Vale e Coordenadora do Movimento Paraense em Defesa da Cia. Vale do Rio Doce.
EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 13, 14, 15, 16