Jack London, expoente da literatura socialista
"Se você esconde a verdade, se você não se levanta para falar num comício, ou se fala num comício sem dizer a verdade toda, então você está abaixo da verdade. Deixe-me ver a face da verdade. Diga-me como é a face da verdade".
Jack London
Transcorreu em 22 de novembro do ano passado, sem que a mídia especializada fizesse qualquer registro, o 80° aniversário da morte de Jack London, o mais popular escritor norte-americano, dentre a multidão de grandes escritores surgidos nos Estados Unidos na passagem entre os séculos XIX e XX.
Durante sua tão intensa quanto breve existência (nasceu em 12 de janeiro de 1876), escreveu uma obra vastíssima composta por dezenas e dezenas de contos e romances, dentre os quais obras-primas da literatura mundial, como O lobo do mar e Martin Éden. A imprensa socialista não poderia deixar de homenageá-lo, porquanto lhe pertenceu uma das mais afiadas penas na militância literária em combate ao sistema capitalista. A importância de seus livros na divulgação das idéias socialistas é tão grande, que no prefácio a O tacão de ferro, Anatole France diz: "Jack London tem aquele gênio peculiar que sabe descobrir o que está escondido para o comum dos homens e tem um dom especial que o habilita a antecipar o futuro". Numa extensa bibliografia sobre obras comunistas, Bukharin cita apenas um livro norte-americano: O tacão de ferro.
Jack London debutou aos 17 anos com o conto Ciclone às costas do Japão, ganhador do primeiro prêmio num concurso literário promovido pelo jornal Morning Call de São Francisco. Mas nessa época London era obrigado a dividir sua paixão pela escrita com a dura luta pela sobrevivência. Desde idade ainda tenra foi jornaleiro e até completar 15 anos, quando se empregou numa fábrica de conservas, consumiu os verdes anos de sua infância e adolescência nos mais diversos tipos de trabalho para garantir o mínimo sustento e ajudar a família. Na fábrica, chegou a fazer horas extras, esfalfando-se em jornadas de até 18 horas diárias. Nessa época, Jack London não tinha ainda consciência política, mas aprendera, pela própria experiência, o mecanismo da exploração capitalista, cuja teoria viria a descobrir depois nos livros. Dono de vigorosa e fértil imaginação, Jack escrevia compulsivamente. Mas teve de percorrer longo caminho até que suas obras merecessem a acolhida dos editores.
Em 1893 e 1894, os Estados Unidos foram engolfados por uma crise econômica de proporções devastadoras. O desemprego se espraiou, gerando inquietação entre os trabalhadores e a organização de movimentos de luta pelo emprego. Por essa época foi organizada uma marcha sobre Washington a fim de exigir do Congresso a dotação de uma verba de 5 milhões de dólares para investimento em obras públicas. Em Oakland, onde vivia London, apareceu um cidadão, apelidado "general Kelly", que organizou brigadas de operários para se juntar à marcha nacional. London se incorporou ao "Exército de Kelly" e, seja pelo seu espírito aventureiro e individualista, seja pelas condições precárias em que se realizava a marcha, movimento que viria a fracassar, London começou uma vida errante de andarilho, durante a qual conheceu e fez de tudo, foi preso e conviveu com a escória da sociedade norte-americana.
Leitor contumaz, Jack London tomou contato na juventude com a obra de Babeuf, Fourier, Proudhon, Saint-Simon, Darwin, Spencer, Nietzsche, que deixaram marcante influência em seus escritos. Por indicação de um andarilho das estradas, seu companheiro na vida de vagabundo, buliçoso como ele e dado a filosofar, leu o Manifesto comunista, de Karl Marx. Instintivamente inclinado a combater as injustiças e já revoltado com as iniquidades do sistema capitalista, London se tornou um socialista consciente e visceral. No caderno de notas, Jack registrou as suas impressões da obra fundamental da teoria do socialismo científico:
"Toda a história da humanidade tem sido a História das lutas entre exploradores e explorados; a história dessas lutas de classe mostra a evolução da civilização econômica da mesma forma por que os estudos de Darwin mostram a evolução do homem. Com o advento do industrialismo e da concentração dos capitais atingiu-se um estádio social em que os explorados não podem emancipar-se da classe dirigente sem com isso, e de uma vez por todas, emancipar a sociedade em geral de explorações futuras, de opressão, de diferenças e lutas de classe".
Em abril de 1896, Jack London ingressou no Partido Operário Socialista, do qual se tornou um ensaísta e conferencista de nomeada. Sua relação com a cúpula do partido foi conflituosa. Jack London não concordava com a linha social-pacifista e reformista dominante no movimento operário estadunidense. Em seus artigos e conferências, e mesmo em algumas de suas obras literárias, o escritor demonstrava ser um adepto fervoroso da "guerra de classes", da "revolução", da "criação do Estado socialista". No auge de sua popularidade, os dirigentes socialistas chegaram a cogitar seu nome como candidato à Presidência dos Estados Unidos da América, mas a ruptura entre London e esses dirigentes era irreversível.
O trabalho precoce para garantir a sobrevivência e a vida de andarilho exerceriam papel decisivo na formação da consciência política de Jack London. Mas foi seu estágio entre os pesquisadores de ouro do Klondike que lhe deu a matéria-prima para o primeiro grande período de sua criação literária. Em 1897, com a descoberta do metal precioso no Klondike, começou a "febre do ouro" no Alasca. Jack London se juntou aos aventureiros. Não encontrou o ouro, mas o escorbuto. Vivendo ali durante muitos meses e enquanto empreendia o caminho de volta para casa através das margens do Yukon, convivendo com os pesquisadores de ouro, naquelas tão longínquas e inóspitas paragens, numa paisagem mirífica por vezes tenebrosa, em meio a animais ferozes, nativos e aventureiros de toda espécie, Jack foi desenhando em sua mente os personagens, as cenas e situações que viriam depois tomar forma em dezenas e dezenas de contos e romances. É o período heróico e romântico de sua obra, dos mais férteis, que o levou a vertiginoso sucesso. Anos mais tarde, ele diria: "No Klondike me descobri".
Os Contos do Norte são narrativas ambientadas num universo que de tão hostil parece sobrenatural. Aqui a aurora polar é ofuscante, como a noite é quase eterna. Mestre na arte de penetrar no âmago de situações extremadas e dotado de um estilo simples e linguagem direta, London põe o leitor em permanente tensão. Os personagens se movem pela paixão de enfrentar desafios e vencer obstáculos, sejam homens vis, a natureza inclemente ou animais selvagens. Gente de caráter inflexível e alma empedernida, para quem desistir é morrer, um tipo de personagem já desaparecido na literatura daquela época.
A luta pela sobrevivência em um meio hostil foi a grande obsessão de Jack London, tema recorrente no conjunto de sua obra. Desse ciclo, Luta pela vida e Acender um fogo, são os mais representativos e nos quais mais se reflete sua visão romântica e heróica. Luta pela vida é a odisséia de um homem, na solitária companhia de um lobo para sobreviver num deserto de gelo. Entre o pânico e o desespero, meio louco, meio morto, o homem trava o combate final com o lobo. Vence a consciência, a força de vontade, a persistência. Uma apoteose de amor à vida. Já em Acender um fogo o personagem central sucumbe, vencido pelo medo e pela inexperiência.
Faz parte desse período da criação de London uma série de livros sobre os animais e sua relação com os homens. Aqui a temática sobre a luta pela vida é enriquecida com reflexões sobre a força das influências atávicas. O apelo da selva, Caninos brancos (ambos adaptados para o cinema pelos estúdios Disney), Jerry das ilhas, Michael, irmão de Jerry conquistaram o público infanto- juvenil, mas ao escarnecer a brutalidade, London deixa claro o caráter alusivo dessas obras e seu significado social.
Jack London conheceu de perto as seqüelas do colonialismo ao empreender viagem às ilhas ao sul do Oceano Pacífico, a bordo do seu iate "Snark". Escreveu um conjunto de contos sob o título Contos dos mares do Sul, em que desenha quadros arrepiantes sobre o engodo, o saque e o aniquilamento bárbaro de populações nativas por todo tipo de aventureiros e empresários. Sua posição anti-colonialista esteve presente também na exaltação à revolução mexicana. Mas claudicou, ao defender em relação a essa mesma revolução algumas posições políticas do imperialismo de seu país.
A bordo do "Snark" Jack London escreveu Martin Éden, seu mais belo romance, autobiográfico, premonitório do seu suicídio, que viria a ocorrer quase dez anos depois. Martin Éden é a história do homem e do artista com seus conflitos, paixões e desesperos, amores e desilusões, mas também uma ata de acusação à hipocrisia, às mazelas e aberrações da vida social. O sinal primeiro de sua queda é o desencanto ante a constatação de que era enganadora a Beleza corporificada, moral e culta que julgara encontrar em sua amada Ruth.
Para boa parte da crítica, e não sem alguma razão, a obra maior de Jack London foi O lobo do mar, também adaptado para o cinema sob a direção de Michael Anderson, com o estupendo protagonismo de Charles Bronson. A história de Wolf (lobo) Larsen, homem terrivelmente forte, amoral, egoísta e inescrupuloso, retrata o apogeu e a derrota do super-homem nietzscheano.
A obra de London foi fiel tributária das fontes onde o autor bebeu. Spencer foi "agraciado" com os Contos do Norte, Nietzsche com O lobo do mar, Darwin com Antes de Adão. Karl Marx o seria com O tacão de ferro, um dos mais representativos exemplares da literatura de ficção, inspirada na luta e nos valores socialistas. Romance social-utópico, O tacão de ferro é apresentado na forma de um manuscrito da mulher do revolucionário norte-americano Ernest Everhard, sobre acontecimentos supostamente ocorridos entre 1912el932 encontrado sete séculos depois em plena "Era da Fraternidade". O livro despertou a ira da crítica burguesa e provocou enorme celeuma nos círculos socialistas. London participou pessoalmente da polêmica e, reprisando a mensagem fundamental do romance, declarou à imprensa: "A história mostra que nenhuma classe dominante está disposta a renunciar o seu poder sem luta. Os capitalistas têm em suas mãos os governos, os exércitos e a milícia. Alguém pensa que os capitalistas não utilizarão estas instituições para se manterem no poder? Eu penso que utilizarão".
Jamais na literatura norte-americana houvera aparecido uma obra que denunciasse com tamanho vigor e realismo as mazelas e violências do capitalismo. Jamais houvera aparecido nos EUA um escritor sem rebuços de linguagem na defesa do socialismo e mesmo da revolução social. A figura central do romance, Ernest Everhard é um destacado dirigente da insurreição anti-oligárquica e anti-capitalista.
Desta vez London não idealiza seu herói. Apresenta-o com virtudes e defeitos e com tamanha riqueza de detalhes e intimidade, que Everhard parece ser o revolucionário que London queria ser.
Os "manuscritos de Everhard" contam a sangrenta repressão sobre a insurreição dos operários, com a vitória do Tacão de Ferro, denominação da organização em torno da qual se unem os capitalistas. Nos lábios de Ernest Everhard, Jack London coloca uma lição e uma profecia, esta ainda por cumprir: "Desta vez perdemos…mas não para sempre.
Nós aprendemos. Amanhã a causa renascerá. Com maturidade e disciplina torná-la-emos inquebrantável". De certo ângulo, a obra de Jack London está ultrapassada, não se encaixa nos padrões estéticos atuais. Os valores éticos cultivados na obra do autor pertencem a outra época. De outro ponto de vista, nada é mais atual. Como nenhum outro escritor de sua época, como poucos do século XX, incluindo entre estes mesmo os mais talentosos autores do chamado realismo socialista, Jack London conseguiu fazer uma literatura plena de frescor, energia, relação intrínseca com a vida e aquele tônus vital, dramaticidade e carga emocional indispensáveis para que uma peça escrita seja uma verdadeira obra de arte. Na melhor tradição de Walt Whitman, ele foi o último escritor a exaltar os longínquos rincões da América do Norte e a dei-ficar o homem americano. Descreveu com aguda percepção as grandezas e misérias de sua época, fez profissão de fé no humanismo e por isso mesmo a profecia de um devir de fraternidade, considerado inatingível hoje, quando as trevas parecem ser mais perenes do que as das mais longas noites do inverno do grande norte. A obra de Jack London é atual e tende a permanecer.
*José Reinaldo Carvalho é membro do Conselho Editorial da Revista Princípios.
EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 61, 62, 63