Assim como no boxe há uma "luta da década" todo ano e todo inverno europeu é anunciado como "o mais rigoroso dos últimos trinta anos", tivemos a oportunidade de visitar, de outubro a dezembro do ano que terminou, "a maior Bienal da história", dois anos depois da "maior Bienal da história" e que certamente só perderá em tamanho e importância para "a maior Bienal da história" que se realizará daqui a dois anos.

Movida por um esquema publicitário, este sim, o maior já acionado para uma exposição de arte no Brasil, a última versão da Bienal Internacional de São Paulo parece ter definitivamente se afastado da velha fórmula de mecenato cultural de seu fundador, Ciccilo Matarazzo, herdeira, de certo modo, da visão do "déspota esclarecido" do iluminismo europeu do século XVIII, de cultura refinada e aristocrática.

A Bienal de 96 refletiu, em diversos aspectos, o espírito "novo-culto" do presidente da Fundação Bienal, o banqueiro emergente Edemar Cid Ferreira. Apesar de cercado por especialistas em curadorias de mostras importantes (como Nelson Aguilar e Aguinaldo Farias) que, na realidade, conceberam e organizaram a Bienal, mas também circundado por renitentes relações públicas de qualquer arte, a Bienal passou, em suas estratégias de publicidade e mesmo na estrutura interior da mostra, uma impressão de um shopping center que realiza sua queima de estoque em fim de estação.
Aí se manifestaram diversas contradições curiosas da arte deste fim de século. As chamadas publicitárias de televisão ironizaram todo o tempo o discurso acadêmico – uma voz feminina despejando no telespectador um conjunto de jargões técnicos vazios em longos períodos de difícil acompanhamento, numa entonação arrogante e professoral. No entanto, a estrutura da mostra procurou se diferenciar das anteriores por ter acentuado precisamente uma teoria acadêmica que lhe servia de fundamento: a teoria da "desmaterialização da obra de arte", sobre o que falaremos mais adiante.

Essa contradição reflete um problema geral da estética deste fim de século. A busca de um renovado contato entre observador e obra, que poderia reaproximar a arte contemporânea de um público maior (leia-se, consumidor) após a fenda aberta entre eles pelas rupturas da arte moderna do início do século, muitas vezes passa pela crítica e afastamento das teorias estéticas que, ao invés de instigar o observador a ver arte, se interpõem presunçosamente entre ele e a obra de arte, impossibilitando a fruição livre e prazerosa.

Por outro lado, é patente que todas as grandes renovações das artes do século XX foram acompanhadas por um conjunto de reflexões teóricas, muitas vezes produzidas pelos próprios artistas, outras vezes por teóricos e críticos sensíveis às novidades. Essas teorias difundem, explicam e ampliam o impacto das obras de arte e fizeram da estética um campo fundamental da filosofia no nosso século, um ambiente reflexivo essencial para se compreender a nossa época e a nossa visão de mundo. Para o artista, negar hoje uma formação técnica e uma preocupação teórica (mínima que seja, ao menos para saber situar criticamente sua própria obra diante da arte e do mundo) é se preparar para reduzir-se a feiras de artesanato, porque está cada vez mais evidente que é impossível criar sem refletir sobre a criação. Já para o público, as questões são de outra ordem. Primeiramente, a entidade "público" não existe abstratamente, idealmente como grupo uniforme de pessoas. E para cada fatia deste público, há um tipo de abordagem ou consumo das obras expostas. O "público especializado", isto é, profissionais ligados ou coligados à área de artes plásticas (artistas, arquitetos, escritores, professores, publicitários, críticos, etc), tem mais ou menos a postura padrão da "fruição culta" em qualquer ambiente artístico: silenciosa, polida e, principalmente, antenada na circulação ambiente. Em qualquer exposição, e isso se repete na Bienal, para essa fauna, visitar exposições é se mostrar, fazer "uma RP" (relações públicas), ver o artista mais que a arte. Se as vanguardas procuraram fundir arte e vida e a sociedade de massa fundiu arte e consumo, essa fatia de público criou a fusão da arte com a coluna social.

Às vezes, contudo, esse público é traído em seu próprio ambiente. Logo após a abertura da Bienal, quando algumas últimas caixas que serviram de container das obras ainda restavam pelos cantos, um arquiteto ou publicitário (são gêneros identificáveis pelo código de vestimenta) parou contemplativo diante de uma delas, intrigado e maravilhado com a complexidade daquilo que, para ele, era mais uma obra de arte exposta. Depois de alguns momentos, para sua indignação e perplexidade, dois funcionários da Bienal suspenderam, à sua frente, aquela obra-prima e carregaram-na para um depósito na lateral do prédio. Após alguns instantes de hesitação, o observador caiu em si, olhou em volta para ver se tinha sido observado na sua santa estupidez, se recompôs e seguiu, altaneiro e sempre culto.

Comportamento mais rico numa Bienal é o do vandalismo contido das turbas incultas ou semi-cultas: crianças, adolescentes, curiosos, donas de casa, desocupados, etc. Eles fizeram desta bienal a mais visitada das bienais, com mais de 300.000 pagantes, deram ao pavilhão imenso um rumor de vozerio de centro de cidade, provocaram um intenso soar de apito dos seguranças preocupados com o risco sempre iminente de danificação das obras, sujaram o chão com toda espécie de detrito, adequando o ambiente às obras de arte que, em grande medida, lidavam com os restos da sociedade industrial, dormiam nos bancos e andavam ao léu, sem entender bem aquele monte de coisas expostas e, a bem da verdade, nem se preocupando muito com elas e, quando gostavam da obra, manifestavam sua aprovação tentando carregar pedaços dela, lembrando o gesto dos astronautas que pisaram pela primeira vez na lua colhendo pedrinhas do chão para levar para casa (é sabido que um deles quis fazer milhares de chaveirinhos com pedras da lua para vender) ou o comércio de pedregulhos dos restos do muro de Berlim que infestou a Europa em 1990/91.

Essa "população" (é melhor do que "público") que habitou a Bienal nestes meses produziu cenas diferentes para um "ambiente artístico". Numa delas, um pai procurava pôr o filho montado sobre a aranha de Louise Bourgeois, que graças ao banco Itaú, que a comprou depois da Bienal, poderá ser cavalgada pelos brasileiros eternamente. Um guarda o interrompeu com o apito de estação de trem: "Isso é uma obra de arte. Não se pode subir". Ao que o pai respondeu: "E esse é meu filho. Eu paguei ingresso e quero usar!". Não usou, mas provocou uma calorosa celeuma sobre direitos da cidadania com os demais transeuntes, a maioria concordando que os direitos de um observador termina a um metro da obra de arte.

Não foi, portanto, somente a arte que sofreu mudanças radicais no século XX. O público observador também mudou, especialmente nessas grandes mostras coletivas, mas os organizadores continuam pensando o espaço artístico dentro da ótica de uma arte tradicional que se propunha autônoma e distanciada (ou protegida) do contato nem sempre "edificante" com a vida e idealizam um público disposto a se aculturar, dentro de um conceito de cultura o mais tradicional.

As vanguardas históricas, nas três primeiras décadas do século XX, extravasaram os espaços destinados à arte, saíram às ruas, aos bares, e com isso criaram a ruptura com os suportes tradicionais (tela da pintura, livro da poesia, etc). Hoje, frutos daquela ruptura com os suportes podem ser vistos nas diversas espécies de instalação, que sempre estão presentes em grande número à Bienal, mas agora estão recolocados no espaço destinado oficialmente à arte. Contudo, agora é o público que avança para dentro dos espaços da arte, com o mesmo ímpeto com que vai à praia no verão ou às compras no supermercado barateiro. Para ele, a Bienal é um parque de diversões. Não por acaso, as maiores filas se formavam para entrar em instalações que eram ambientes fechados que sugeriam surpresas ou sustos – como um corredor com duas paredes de vidro blindado de cada lado que protegiam o observador de violentos arremessos, feitos por aparelhos mecânicos, de tigelas de cerâmica, que se espatifavam contra a vidraça, a poucos centímetros do observador.
O Turista

Se o símbolo do homem citadino há cem anos era o flaneur, figura típica da paisagem urbana do século passado quando da emergência da sociedade de consumo e das cidades modernas, descrito pelo poeta francês Charles Baudelaire como o transeunte que passa em meio ao turbilhão e observa tudo com distância e ironia, hoje o representante da época é o turista. Feliz de se juntar a grandes grupos em excursões a lugares com os quais nunca se vincula e aos quais nunca se integra, passa por eles como se fizesse uma viagem num cartão postal virtual do qual tenta levar pedaços para seu mundo real como lembrança. O turista paga para consumir em seus vinte dias de excursão, com a mesma sem-cerimônia e indistinção, comidas de restaurantes típicos, roupas de lojas de grife, exposições, brinquedos de parques de diversão, ruas sem nada para se ver ou fazer, e volta ileso para seu mundo, no qual nada disso comparece.

O artista e os organizadores de exposição querem esse público, mas o querem para ensiná-lo, para educá-lo, impondo-se uma grande tarefa esclarecedora e emancipadora que o próprio mundo contemporâneo, feito do espírito do turismo, não consegue realizar. O público da Bienal era de turistas visitando um país ao qual não retornarão a não ser, talvez, nas próximas férias, daqui a dois anos. E o turista típico, quando pode, raspa seu nome nos monumentos que visita, rouba cinzeirinho do hotel onde ficou, furta a colherinha de café no melhor restaurante onde comeu, pisa na grama proibida de Versailles, só para pisar, quando o guarda não está olhando, enfia furtivamente o dedo num quadro renascentista e sai rindo da proeza, e o brasileiro ainda termina com um sambão coletivo em altos brados.

Mesmo aqueles que não podem fazer turismo em outra cidade ou ainda não tem idade para isso estão imbuídos desse espírito, porque nos aglomerados urbanos contemporâneos os habitantes são turistas em suas próprias cidades. A impessoalidade das ruas, a transformação constante da paisagem urbana, a crescente oferta de novas casas de diversão de toda espécie, a perda do sentido do "local" e do "regional" dada pela globalização dos meios de comunicação de massa, dá a todos, indistintamente, a mentalidade de turista em sua própria terra, desenraizado e interessado passageiramente pelas coisas.

As vanguardas históricas extravasaram os espaços destinados à arte e com isso criaram a ruptura com os suportes tradicionais

Se o artista quer lidar com o público de hoje, terá que deixar sua obra sofrer os efeitos e as alterações que a presença do observador-turista imprimirá nela. Há sentido em se fazer uma aranha gigante de ferro para tomar o espaço público do transeunte e proibir que ele a use como coisa comum e banal? Como evitar que ele a tome, como toma os monumentos diariamente: para se encostar neles e namorar, ou subir para ver a paisagem, grudar chiclete, urinar à noite? Que se faça, então, uma aranha menor e feche-a num museu com entrada cara. E mesmo assim, cuidado com o turista!

Não se trata de defender os direitos da barbárie de um mundo do consumo frenético e destrutivo. É apenas fundamental pensar: 1) se a educação para a passividade contemplativa de uma cultura tradicional e de poucos pode ter lugar ainda hoje numa cultura multiforme, multimídia e de muitos, ainda que estes muitos sejam culturamente os excluídos da maior parte dos eventos; 2) se é possível combater o "espírito turístico" ou se não há outra saída senão penetrá-lo, entendê-lo e tentar direcioná-lo para projetos em que a emancipação do homem não fique restrita a conceitos herdados de um mundo puro (que nunca existiu).

A desmaterialização da arte

Outro aspecto importante a se considerar na Bienal foi o fundo teórico que serviu para organizar a exposição desse ano. De um lado, havia a parte museológica, com obras de Picasso, Klee, Munch e outros históricos. De outro, a Universalis, parte que reuniu as tendências sob o guarda-chuva da "desmaterialização do objeto artístico". Essa tese foi elaborada pela crítica americana Lucy Lippard para analisar a produção artística da virada dos anos 60/70. No arranjo dessa Bienal, essa idéia revelou a pretensão embutida nas suas premissas: toda significativa vertente da arte do nosso século se marcaria pela esmaecimento gradativo do objeto, pela perda de corporalidade do objeto artístico. Se o nome "desmaterialização" é relativamente recente, a idéia, na verdade, faz parte de uma visão que pode ser rastreada desde há muito na crítica da arte moderna. A rigor, há duas grandes tendências da visão estética sobre a arte moderna desde seu início no final do século passado (com o simbolismo na poesia, o impressionismo na pintura e o cromatismo dissonante na música tardo-romântica). De um lado, pontos-de-vista que viam no percurso abstrato da arte (a música sem melodia, a pintura sem figuras, a poesia visual e sonora) um aniquilamento do material e do corpóreo para que fossem realçados aspectos menos passageiros e efêmeros da arte. De outro lado, um ponto-de-vista que sempre destacou o contrário: a arte moderna acentuou radicalmente sua forma, sua linguagem, seus materiais, deixando de fora qualquer problema que estivesse além dos elementos com que se expressa.

Se o artista quer lidar com o público de hoje, terá que deixar sua obra sofrer os efeitos e as alterações que a presença do observador imprimirá nela

Isto é, o primeiro ponto-de-vista divide o objeto artístico (mesmo que não assuma isto) em "essência" e "aparência", crê que os artistas, em suas rupturas com os suportes, os materiais e as formas, estejam procurando a parte eterna da arte, o inefável, as profundezas do sentir – isto é, desmaterializar a arte. Para o outro ponto-de-vista, a arte era historicamente (na metáfora feliz do filósofo espanhol Ortega y Gasset) uma vidraça através da qual se olhava a realidade e o que fez o artista moderno foi pôr em destaque o vidro, deformando-o, destacando-o como elemento em si, exaltando-o – isto é, materializando a linguagem. Talvez não seja errado afirmar que as duas tendências convivem no seio de uma produção tão diversificada quanto a arte contemporânea. Mas duas coisas são certas: não há como falar de "desmaterialização" sem mostrar a grande arte imaterial de nossa época – a arte computacional, a virtual, a videoarte, todas feitas de impulsos eletro-eletrônicos; e o que se viu nessa Bienal foi exatamente um excesso de matéria, como em qualquer Bienal anterior (terra, cerâmica, vidro, pano, ferro, madeira, instrumentos musicais, produtos químicos, máquinas, parede pintada, etc). E foi dessa matéria abundante que o turista arrancou seus pedacinhos de lembrança.

*Philadelpiío Menezes é poeta e professor do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, autor de A crise do passado — modernidade, vanguarda, metamodernidade (São Paulo, Experimento, 1994).

EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 57, 58, 59, 60