O que estarei aqui discutindo partiu do contato com manuscritos e documentos de natureza diversa de diferentes manifestações artísticas e do desejo de compreender o processo de criação.
Sentindo a saturação e as limitações dos estudos de casos isolados, iniciei o movimento em direção à busca por traços gerais do fazer artístico para que as uni cidades fossem melhor apreendidas.
A recursividade e a simultaneidade, inerentes aos processos não lineares, oferecem resistência à rigidez de esquemas e ordenações temporais. Com esta preocupação em mente, uma teoria, que se encontra em aberto, foi sendo delineada: ferramentas teóricas amplas e flexíveis que tiveram como ponto de partida a concretude oferecida por manuscritos e, ao mesmo tempo, mantêm-se alimentadas por esta materialidade. São princípios de natureza geral que atuam como guias condutores para pesquisas que lidam com especificidades.

Esses guias, no entanto, não devem ser vistos como modelos fixos que, normalmente, mais funcionam como fôrmas teóricas que rejeitam aquilo que nelas não cabem.
Muito do que será discutido, aqui, de modo sucinto, já foi estudado de forma aprofundada em outros artigos. Apresento, portanto, uma visão geral de algumas características do fazer artístico – uma possível morfologia do processo criador.

É importante ressaltar que assim como partindo de estudos de manuscritos de artistas específicos foi possível retirar generalizações para o campo da arte, este mesmo caminho pode ser seguido em outras direções. Esta mesma morfologia oferece meios para se olhar para processo em sentido bastante amplo, seja este concretizado na ciência ou na sociedade como um todo.
Trajeto com tolerância

Apresento a criação como processo de representação que dá a conhecer uma nova realidade com características que lhe vão sendo atribuídas. a esforço do artista é o de fazer visível aquilo que está por existir – um trabalho sensível e intelectual executado por um artesão. Um movimento feito de sentir, agir e pensar, sofrendo intervenções do consciente e do inconsciente.

A criação mostra-se como uma metamorfose contínua – permanente mutação. É um percurso feito de formas em seu caráter provisório e precário porque hipotético. Um caminho de constantes transformações.

O percurso criador é um contínuo processo de transformação buscando a formatação da matéria de uma determinada maneira e com um determinado significado. Processo que acontece no âmbito de um projeto estético e ético e cujo produto é uma realidade nova permanentemente experienciada e avaliada pelo artista – e um dia experienciada e avaliada pelo receptor. a gesto criador está sendo visto como um movimento com tendência mas sem pré-determinação de fins. Peter Brook (1994) fala dessa tendência como uma intuição amorfa que dá senso de direção e Murray Louis (1992) como uma premissa geral. Essa trajetória é a perseguição de uma miragem para Maurice Béjart (1979). Arnheim (1976) detecta na criação de Guernica de Picasso uma idéia germinal, precisa em seu conteúdo geral mas não fixada em seus aspectos, que adquiriu seu caráter final ao ser contrastada com uma variedade de possíveis realizações visuais.

Rodin (1990) já carrega essa tendência com sua forma de expressão pois fala na concepção inicial do movimento geral da escultura e Miró a concretiza em uma maquete, como forma de colocar-se no clima.
O artista é atraído por esse propósito nebuloso e move-se em sua direção. A criação é, assim, um projeto mas sempre em progresso. O final pode ser que nada tenha a ver com a "maquete inicial" (Miró, 1989) pois o plano não tem nada da experiência que se adquire na medida em que vai se escrevendo a estória (Bioy Casares, 1988).

O processo de criação, como processo sígnico (segundo a teoria semiótica apresentada pelo filósofo Charles S. Peirce), é o lento clarear da tendência que por sua vagueza está aberta a alterações. Um movimento falível com tendência, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para o mecanismo de raciocínio responsável pela introdução de novas idéias. Um processo marcado pela continuidade e crescimento, estando, portanto, em estado de permanente mutação, indefinido acabamento, regressão e progressão infinitas.

O movimento, no âmbito individual do artista, tende para a concretização de seu projeto poético; além do limite individual, essa tendência concretiza-se no aspecto comunicacional do processo criador.

Projeto poético

Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam as obras daquele criador. São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista pois estamos no campo da unicidade de cada indivíduo. Gostos e crenças que regem o seu fazer – um projeto pessoal, singular e único.

O projeto está ligado a princípios éticos de seu criador: seu plano de valores e sua forma de representar o mundo. Pode-se falar de um projeto ético conduzido pelo grande propósito estético do artista.

O projeto poético vai se mostrando, desse modo, como princípio ético e estético, de caráter geral, que direcionam o fazer do artista: princípios gerais que norteiam o momento singular que cada obra representa. O artista está comprometido com seu projeto e, ao mesmo tempo, sente-se seduzido pela idéia de concretizá-lo. O projeto encontra suas concretizações em cada obra do artista.
Pode-se, assim, dizer que o processo de criação de uma obra é a forma do artista conhecer, tocar e manipular seu projeto de caráter geral, através de diálogos de natureza intrapessoal.

As tendências poéticas vão se definindo ao longo do percurso – são leis em estado de construção e transformação. Trata-se de um conjunto de princípios que colocam a obra em criação em constante avaliação e julgamento.

Ato Comunicativo

O processo de criação mostra-se, também, como uma tendência para o outro. A arte é social porque toda obra de arte é um fenômeno de relação entre seres humanos (Mário de Andrade, 1989): "Assim como o pão e o amor, a língua e as idéias são compartilhadas com seres humanos" (Carlos Fuentes, 1989). A obra de arte carrega, sim, as marcas singulares do projeto poético que a direciona mas faz parte também da grande cadeia que é a arte.

Assim, o projeto de cada artista insere-se na frisa do tempo da arte e da ciência. É o diálogo de uma obra com a tradição, com o presente e com o futuro. A cadeia artística trata da relação entre gerações e
nações: uma obra comunicando-se com seus antepassados e futuros descendentes.

Carlos Drummond de Andrade (1985) lembra que se não fossem esses tios literários, que mal ou bem nos transmitem o fio de uma tradição que vem de longe, não haveria literatura. Ninguém a inventaria. Para Kundera (1986), o espírito do romance é aquele da continuidade: cada obra é a resposta a obras precedentes e contém toda experiência do romance.

De modo semelhante, a natureza do projeto individual de cada artista é dependente do tempo e do espaço em que aquela obra se insere no percurso da criação daquele artista específico: uma obra em relação a todas as outras já por ele feitas e aquelas por fazer. Em termos gerais, processos de criação tendem para o outro carregando os traços de seu tempo e de seu espaço. Mais especificamente, pode-se dizer que o processo criativo também é um ato comunicativo na medida em que, em sua intimidade, são travados outros diálogos de naturezas diversas.

Diálogos internos: uma mente em ação que mostra reflexões de toda espécie. Diálogo do artista com o primeiro receptor da obra: esse artista receptor é seu primeiro leitor.
Diálogo do artista com a obra em processo: ao longo do percurso, o artista muitas vezes vê-se produzindo para a própria obra.

Diálogo do artista com o receptor: a obra necessita de um receptor. Para Borges (1987) o texto é o resultado da estreita colaboração entre um autor e um leitor. Se é certo que não existe texto sem autor, não é menos certo (e tautológico) que não existe sem leitor (nem mesmo o autor escapa dessa regra: é impossível escrever um texto sem o estar lendo simultaneamente).

Pode-se falar de uma espécie de interdependência entre artista-obra-receptor: o artista não cumpre sozinho o ato da criação. relação comunicativa é intrínseca ao ato criativo. Está inserido em todo processo criativo o desejo de ser lido, escutado, visto ou assistido. Há diferentes maneiras de abordar essa relação: complementação, cumplicidade, alvo de intenções, associação e soberania do leitor. a percurso criador, que tende para a concretização do desejo do artista, deixa transparecer uma tendência comunicativa, em sentido bastante amplo. A partir dessa caracterização, em traços gerais, do gesto criador passamos a conhecer a tessitura desse movimento. Esse processo busca concretização – a construção de um objeto – a recompensa material (Kandinsky, 1990) de seu sonho.

Busca de recompensa material

Na tentativa de concretização do desejo do artista observa-se a presença de método – um determinado modo de ação: fazer ou não esboços, diários, anotações; disciplina, rotina, horários. Estamos, portanto, no campo do método de trabalho: como e quando o objeto é construído. A idéia de método não está ligada ao conceito de ordem mas ao longo do processo surgem regularidades no modo do artista trabalhar – são leis de caráter organizacional.

Não nos interessa, aqui, discutir métodos mas constatar que todo processo criador é, entre outras coisas, um processo de encontro de um método. Não se pode falar em procura porque não há, normalmente, no artista consciência nem preocupação metodológica.

O tecido do percurso criador é feito de relações de tensão assim como se fosse sua musculatura. Pólos opostos agem dialeticamente um sobre o outro mantendo o processo em ação.
Em termos bastante gerais, a criação dá-se na tensão entre limite e liberdade: liberdade significando possibilidade infinita e limite, enfrentamento de leis.

"A arte é filha da liberdade" (Schiller, 1989). a artista tem o horizonte em suas mãos. Aparentemente, ele pode criar tudo – é onipotente. No entanto, liberdade absoluta é desvinculada de uma intenção e, por conseqüência, não leva à ação. A existência de um propósito, mesmo que de caráter geral e vago, é o primeiro orientador desta liberdade ilimitada.

Criar livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira. As delimitações são como as margens de um rio pelo qual o indivíduo se aventura no desconhecido. Vemos o ser livre como uma condição seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade presente, embora talvez inconsciente, e a valores de um tempo individuais e sociais ( astrower, 1978).

Limites internos ou externos à obra – a tendência em seus dois aspectos já discutidos – oferecem resistência à liberdade do artista. No entanto, esses limites revelam-se como propulsores da criação. a artista é incitado a vencer esses limites estabelecidos externamente e, às vezes, determinados por ele mesmo.

A capacidade de estabelecer limites é a maior prova de liberdade o artista é um livre criador de limites, do cumprimento deste elemento cerceador e/ou da superação deste elementos. a artista é um criador de leis, um livre criador de leis infinitas (Accioly, 1977).

Marcas de caráter psicológico

As marcas psicológicas do gesto criador carregam sentimentos opostos que, atuando um sobre o outro, tornam a criação possível harmonia dos opostos.
Necessidade de isolamento e de relacionamento com outros
o homem solitário pode preparar muitas coisas futuras pois suas mãos erram menos (Cecília Meirelles, 1980), talvez porque seja fechado na sua solidão que o ser de paixão prepare suas explosões e suas façanhas (Bachelard, 1978). No entanto solidão não significa recusa ao mundo. O artista precisa de sua torre de observação. Faulkner (apud a.a. Marquez, 1982) dizia que a casa perfeita para um escritor é um bordei pois nas horas da manhã há muita calma e, em compensação, à noite há festa.

Desprazer e prazer

Desprazer está ligado ao fato de que se encontra na feitora problemas infinitos, conflitos sem fim, provas, enigmas, preocupações e mesmo desesperos que fazem do ofício do poeta um dos mais incertos e cansativos que possa existir (Valéry, 1984). Valéry fala de dificuldades que são, na verdade, de toda ordem: desconforto de decidir; resistência dos limites; busca da "palavra certa"; enfrentamento de bloqueios.

O artista mostra necessitar a paciência daqueles que trabalham sob o estímulo da esperança. Trabalho de quase-Sísifo. "O tempo não serve de medida – ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranqüila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir". (Rilke, 1980:82).

O artista enfrenta angústia de toda ordem: morrer e não poder terminar a obra; reação do público; bloqueio; busca de disciplina; o desenvolvimento da obra; querer e não poder dedicar-se ao trabalho; precisar e não conseguir dedicar-se ao trabalho; a primeira versão; enquanto todos "personagens" não se põem em pé; angústia que leva à criação.

Surge o artista enfrentando dificuldades com angústia e buscando paciência – em estado de aparente desequilíbrio, no entanto Miró, na época do fascismo, desenhava para seu equilíbrio pessoal.
O enorme prazer que acompanha o desenvolvimento artístico poderá ser descrito algum dia como uma manifestação de energia (Klee, 1990). Kafka não pode ter sentido somente angústia mas também felicidade. O ato de escrever é uma felicidade. Talvez isso baste para justificar o que faz (Borges, 1984).

A criação pertence ao mundo do prazer e ao mundo lúdico – um mundo que se mostra um jogo sem regras, se estas existem são estipuladas pelo artista, o leitor não as conhece. Jogar é sempre estar na aventura com palavras, formas, cores, movimentos.

Diante de tanta dificuldade e da consciência de problemas o artista depara-se também com facilidades como a fluidez das associações. São fluxos de lembranças e relações: pessoas esquecidas, cenas guardadas, filmes assistidos, fatos ocorridos, sensações são trazidas à mente sem aparente esforço. Há também momentos fáceis em que idéias, gestos, decisões parecem jorrar ou aqueles instantes que exigem do artista, simplesmente, acolher o acaso.

Relação com a matéria.

Olhando mais de perto a relação do propósito do artista com sua matéria prima, por exemplo, compreendemos a interdependência di ai ética entre os elementos. O tipo de relação que une o artista ao material envolve a escolha de um determinado material de acordo com os princípios gerais da tendência do processo, um conhecimento dos limites dados pela natureza do material, o desejo e possibilidade de superar esses limites e a impossibilidade de superação.
Ao longo da criação é estabelecida uma relação complexa entre o criador e os meios selecionados que envolve resistência, flexibilidade e domínio.

A matéria é limitadora e cheia de possibilidades por isso, ao mesmo tempo, impede e permite a expressão artística. O desejo do artista libera as possibilidades numa ação extremamente ativa de ação e reação e impele para o desbravamento do (aparentemente) não-permitido. Este diálogo exige uma negociação: um diálogo entre artista e matéria que assume a forma de "obediência criadora" (Pareyson, 1989). Todo esse processo envolve manipulação que implica em um movimento dinâmico de transfonnação em que a matéria é transfonnada pela ação artística.

Relação entre forma e conteúdo

Não se pode tratar forma e conteúdo como entidades estanques. Se, por um lado, vê-se o conteúdo determinando ou falando através da forma, isto é, uma visão da forma como um recipiente de conteúdo; não se pode negar que a forma é a própria essência do conteúdo. È a noção de forma não como autoritarismo mas como poesia feita de ação.

O poder de expressão do produto que esta sendo fabricado esta na fusão de forma e conteúdo – uma espécie de amálgama. O processo mostra essa permanentemente interferência de um sobre o outro. Investigar onde começa e o outro termina é descobrir a própria natureza da arte (Carlos Fuentes, 1989)

Relação entre partes e todos

A combinação de crescimento e execução, que caracteriza o fazer artístico, conduz a procedimentos que não podem ser descritos como a elaboração de cada entidade parcial (uma substituição de um adjetivo, uma alteração de uma marcação teatral, uma ampliação de curvatura de um tubo de aço em uma escultura) atua dialeticamente sobre a outra. Uma interação de interferências, modificações, restrições e compensações conduz gradualmente à unidade e complexidade da composição total (Arnheim, 1976).

Relação entre acabamento e inacabamento

Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe é inerente há sempre uma diferença entre aquilo que foi concretizado e o desejo do artista sempre a ser completamente realizado.
Este é o valor dinâmico do inacabado. A arte é uma insatisfação humana. Fazer outra arte é a única receita para a doença estética de imperfeição (Mario de Andrade, 1989). Para Lasar Segall (1984), satisfação é realmente, algo que o artista desconhece. Isto é “uma de suas grandezas, mas também uma de suas desgraças; estimula- o continuamente para diante, mas o artista não encontra paz interior. Há uma profunda verdade que ele procura expressão em sua obra, algo pessoal, mas nunca o consegue integralmente. Faulkner (apud Ernesto Sábato, 1985) radicaliza: se sua obra chegasse a poder equipar-se com a imagem que ele faz dela, só restaria ao artista precipitar-se do pináculo dessa perfeição definitiva e suicidar-se.

O artista dedica-se à construção de um objeto que para ser entregue ao publico precisa ter feições que lhe agradem mas que se revela sempre incompleto. O objetivo “acabado” pertence a um processo inacabado. Cada forma contem, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final representa, também de forma potencial, um instante do processo.

Por outro lado, existe uma diferença entre a intencionalidade ou o desejo do artista e a concretização final da obra- algo realizado mas não racionalizado que Duchamp (1989) denominou de eficiente da arte.

Percurso de experimentação

Rascunhos e rasuras , que adquirem características especificas em cada linguagem, deixam transparecer o caráter indutivo da criação – o método de investigação na arte.
São encontradas testagem em estudos, croquis, plantas, esboços, roteiros, maquetes, copiões, projetos, ensaios, contatos, story-boards.

Diferentes hipóteses são levantadas e vão sendo testadas. Decisões são tomadas a partir de critérios ligados a unicidade de cada processo. Nessa medida criar é optar e selecionar. Assim dá-se o movimento criador – a mobilidade do objeto em criação. Tudo é mutável mas nem sempre é mudado.
A rasura nos é dada nos rascunhos em sua feminilidade: gerando e engendrando novas formas. È nesse momento de testagem que novas realidades são configuradas excluindo outras. Nesse sentido construir é destruir.

Ação transformadora

O percurso criador em sua construção de uma nova realidade alimenta-se de outras “velhas”realidades. Essa elaboração dá-se em um processo de transformação ou combinação inusitada. O homem que habita o mundo lúdico é colocado dentro de um mundo de invenção combinatória que esta continuamente criando novas formas (Cortázar, 1985). O ato criador manipula a vida em uma permanente transformação poética para construir a obra. A originalidade da construção encontra-se na unicidade da transformação. As combinações são singulares. Os elementos combinados já existiam, a inovação está na idéia de colocá-los juntos. A construção da nova realidade, sob esta visão, não surge milagrosamente do nada mas se dá através de um processo de transformação de elementos já existentes. Há combinações que atraem o artista mais do que outras e assim sua atenção se fixa sobres essas – imagens carregadas de não sei o quê (Cortázar, 1985).

Momento em que o artista impõe uma ordem seletiva à balbúrdia da experiência vi vida, fazendo emergir desse emaranhado de impressões e sensações do dia-a-dia esses artefatos ficcionais (J ohn Updike, 1986).

A percepção artística, como atividade criadora da mente humana
(Arnheim, 1976), é um momento especial da ação transformadora. O filtro perceptivo vai processando o mundo em nome da construção da nova realidade que a obra de arte oferece. A lógica criativa consiste na construção de uma realidade – na formação de um sistema que gera significado a partir de características que o artista lhe concedeu. É a construção de mundos mágicos decorrentes de estimulação interna e externa recebidas através de lentes originais (Vieira, 1994).

A percepção é um dos campos de estagem do ato criador. O artista é profundamente afetado por um efeito que tem poder criativo. Essa impressão guarda sempre o frescor de sensações e, muitas vezes, guarda o frescor de sensações que agem como ponto de partida para futuras obras – imagens geradoras.

O artista, nessa perspectiva, está sendo visto como um explorador da existência. Formas e cores reais são absorvidos pelo mundo imaginário Bachelard, 1988).
obra de arte surge como uma reorganização criativa da realidade e não apenas como um produto ou derivado da realidade (Jung, 1987). Essa reorganização recebe diferentes descrições: decomposição da realidade, transformação poética, mesclagem, transfiguração, filtragem ou decantação.

A ação transformadora implica, portanto, em momentos de apropriação em sentido bastante amplo. O artista apropria-se da realidade externa à obra e em gestos transformadores revela novas realidades.
A percepção é o olhar que traz imagens geradoras cujo efeito é um dos momentos de descoberta e de transformação poética. Em seu processo de apreensão do mundo, o artista estabelece relações inovadoras. Encontramos, no entanto, a unicidade de cada obra e a singularidade de cada artista não só na natureza dessas combinações perceptivas como também no modo como são concretizadas.

Os procedimentos artísticos ou recursos criativos são esses modos de concretização. Estão relacionados não só aos princípios que regem o fazer daquele artista como também à natureza da matéria com a qual ele está lidando e à escolha de técnicas.

Recursos seriam, portanto, formas de ação artística – modos de manipulação e conseqüente transformação da matéria. É a existência desses procedimentos singulares que nos possibilita detectarmos, por exemplo, verticalidade de formas de Giacometti, sintaxe de Proust, pinceladas de Van Gogh ou montagens de Eisenstein.

Diferentes momentos da criação mostram gestos diversos de apreensão de conhecimento.
A percepção artística, já discutida sob o ponto de vista de seu papel transformador, é o instante em que o artista vai tateando o mundo com olhar sensível e singular. Ele vai conhecendo o mundo ou melhor vai conhecendo o seu mundo – o mundo por ele transformado em nome da nova realidade em criação. Nesta experiência cognitiva, o artista imprime seu traço na transformação que seu olhar impõe aquilo que é observado.

Conhecendo a matéria

Acompanhando os movimentos da mão que faz, percebe-se gestos que significam e encontra-se, inevitavelmente, a mão que aprende. É através do gesto que o artista entra em contato com a solidez de seu pensamento. As mãos são o instrumento da criação mas mostram-se, antes de tudo, um órgão de conhecimento (Focillon, 1983).

No momento da recompensa material, o artista estabelece um relacionamento íntimo e tensivo com a matéria através do qual seu projeto tornar-se-á palpável.
No processo de manipulação e transformação há mútua incitação.
Nessa troca recíproca de influência, artista e matéria vão se conhecendo, vão sendo reinventados e seus significados são, conseqüentemente, ampliados.
o artista, quando sente necessidade, sai em busca de informações. Um conto como um iceberg deve ser sustentado, na parte que não se vê, pelo estudo e reflexão sobre material reunido e não utilizado diretamente na obra (Hemingway apud G. G. Marquez, 1982).

Klee estudou anatomia enquanto meio e não como fim e Guimarães Rosa alimentou-se de anotações pesquisadas.

Aquisição de conhecimento, aqui, está relacionada à pesquisa de toda ordem como assuntos a serem tratados e técnicas a serem utilizadas. Conhecimento em diferentes níveis mostra-se como premente pela necessidade ou pela dificuldade de expressão.

Dentro da perspectiva da criação como processo, o ato criador está inserido no espectro da continuidade. A obra cresce e é executada simultaneamente. Está, assim, em estado de permanente mutação, refazendo-se ou talvez fazendo-se, já que cada versão é uma possível obra.
Na medida em que o artista vai se relacionando com a obra, ele vai naturalmente conhecendo-a: aprende as leis que passam a rege-la. Modificações são feitas, muitas vezes, de acordo com critérios internos e singulares daquele processo. O artista conhece, neste momento, o que a obra deseja e necessita.

Bioy Casares (1988) discute essas leis no âmbito da narrativa, tratando, mais especificamente, de unidade de tempo, de lugar e de ação. Há uma ordem? "Não, a ordem será a mais conveniente para a eficácia da história que se vai contar porque as observações gerais se modificam para cada uma das histórias. São tão diversas. Há de se descobrir uma poética para cada texto que se escreve".
Ao corrigir ou rasurar uma possível concretização de seu grande projeto, o artista vai explicitando para ele próprio o que espera da obra e, assim, seus propósitos vão ganhando contornos mais nítidos. O projeto poético vai se delineando, clareando e definindo na medida em que a obra vai sendo executada.

Daí Arnheim (1976) perceber um Picasso que vai nascendo: é a revelação de uma poética. Vejamos seu comentário sobre o primeiro esboço de Picasso para Guernica: A distribuição da cena está mais próxima da tradição pictórica clássica do que do mural definitivo. É menos 'moderna'.
Sendo o processo a forma do artista aproximar-se de seu projeto até ali de caráter geral e estando esses princípios envoltos pela aura da singularidade de cada artista, o percurso criador é para o artista também um processo de auto-conhecimento. O artista se conhece diante de um espelho construído por ele mesmo.

Ao dizer que a verdade da arte é mutável e que emerge sob comando estético, não a estamos diferenciando da verdade científica.

Enquanto a ciência tem um compromisso com um objeto que lhe é externo, o artista, ao construir um nova realidade, vai desatando-a de realidades externas e vai, assim, tecendo a verdade da obra. Esse artefato que vai se formando é um microcosmo com suas próprias leis, como já vimos. São leis internas que vão sendo estipuladas e passam a reger aquela obra: um determinado vocabulário, uma certa forma poética, o uso específico do som em um filme. Assim como Pablo Milanez descreve, em sua música Anos, uma fase do amor em que "tomar tua mão e roubar-te um beijo, sem forçar o momento, faziam parte de uma verdade", essas escolhas fazem parte da verdade daquela obra. São opções que levam à uni cidade de cada obra.

A verdade, que brota de cada obra de arte, vai, portanto, se construindo ao longo do processo. O artista vai dando características àquele objeto em criação, que vai, aos poucos, ganhando determinadas feições. Esses traços passam a se relacionar, formando um sistema com leis próprias. Nesse sentido é que podemos falar do gesto criador como construção de verdades.

A verdade está na obra e a verdade é da obra mas não está desatada do artista pois as leis internas do mundo ficcional são construídas pelo seu desejo – guiadas pela tendência do processo. Princípios éticos e estéticos direcionam a construção de realidades que são consideradas verdadeiras quando o artista as julga belas.

Uma possível morfologia do gesto criador fala da beleza da precariedade de formas inacabadas e de sua metamorfose complexa.

CECÍLIA ALMEIDA SALLES é professora titular do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e coordenadora do Centro de Estudos de Crítica Genética.

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EDIÇÃO 45, MAI/JUN/JUL, 1997, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69