O Shturmovick era uma das peças mais admiradas do Museu. Seu diretor, Dr. Anatoly Shumkin, lembrava-se de uma vez em que tivera de chamar os guardas para tirar dois meninos de cerca de dez anos que tinham conseguido se esconder na carlinga do avião. Houve outros episódios semelhantes, mas depois do desaparecimento do Shturmovick o Dr. Shumkin iria se lembrar particularmente de um dia no verão de 1990, quando encontrara um visitante, homem de seus cinqüenta anos, vestindo um velho casaco de piloto, de pé no hangar admirando o avião. Duas vezes mais, naquela tarde de pouco movimento, o diretor entrara no hangar, e lá estava o homem de casaco de couro olhando o Shturmovick. Na terceira vez o Dr. Shumkin dirigiu-se polidamente ao visitante:

-É piloto?
– Quase – foi a resposta. Fiz meu serviço militar na manutenção de aviões de transporte.
– Mas isso faz muito tempo, não?
– Entre 1966 e 67. Mas em 75, quando tivemos que auxiliar Angola e precisávamos de todos os Ilyvshin pesados, me apresentei e fui aceito.
– E então? – perguntou o Dr. Shumkin.
– Fiquei seis meses na Algéria. E, com uma voz mais baixa, concluiu:
– Era nossa base de manutenção … O Dr. Shumkin tinha uma vaga impressão de que tornara a ver aquele homem. De qualquer maneira, na tarde daquele domingo de fevereiro, o museu tivera o seu contingente normal de visitantes. Aos domingos, sempre que o tempo permitia, o Museu apresentava um show de aviação. Pois o velho Shturmovick 4065 ainda conseguia voar, tripulado por um único piloto, que nos últimos anos vinha no seu carro da Base Aérea de Grosny. Os Shturmovicks foram originalmente construídos para uma tripulação de dois homens, mas no 4065 a metralhadora de cauda e o assento do metralhador tinham sido removidos há muito tempo. Quanto aos dois canhões de 23 mm nas asas, permaneciam em boa forma, pois, às vezes, nos vôos rasantes de demonstração, eram acionados com tiros de festim.

Naquela tarde de fevereiro, o Shturmovick voou muito bem e fácil para o Tenente Eremenko, que não se deu conta de que os dois canhões estavam com algumas balas explosivas em posição nas culatras rotatórias. Depois de três ou quatro voltas, quando Eremenko realizou várias acrobacias muito apreciadas pelo público concentrado do lado de fora do Museu, o avião fez um pouso perfeito na pequena pista e foi recolhido ao hangar.

O Museu fechava às 18 horas, que já era muito escuro em Maykop naquela quadra do ano. Dois vigias mantinham a segurança do prédio durante a noite, alternando-se cada quatro horas nas suas rondas. Segundo contou ao chefe da Polícia Distrital o vigia de serviço no quarto das 2 às 6 horas da madrugada, Oleg Khotynetz, este ouvira, perto do fim do seu período, o som de um avião passando baixo. Uma neve molhada caía naquele momento e Khotynetz, abrigado no saguão do Museu, não fez qualquer ligação entre o que ouvira e o Shturmovick guardado no pavilhão. De manhã cedo, porém, seu substituto, Mihail Popov, numa visita de rotina ao hangar, dera o alarme: o Shturmovick 4065, orgulho do Museu da Guerra de May kop, tinha simplesmente desaparecido.

O Shturmovick 4065, um Il-2 com motor Mikulin de 1750HP, fora construído em 1944 em uma fábrica dos Urais. A fábrica tinha sido levada para aquela região remota a partir da sua sede original em Dnepropetrovsk em setembro de 1941. Diante da blitzkrieg nazista, os russos levaram a cabo uma grande operação para transportar para regiões bem distantes indústrias vitais para a continuação da guerra. Essa operação foi mesmo reconhecida como uma grande façanha soviética naquela guerra de tantos feitos espantosos.

Em junho de 1944, o Shturmovick 4065, novo em folha e testado na fábrica, foi levado pelo piloto de provas Yuri Chemyakovsky a um campo de apoio tático da 25" Divisão de Guardas da 2" Frente da Rússia Branca, comandada pelo Marechal Zhukov. Foi então transferido oficialmente à responsabilidade do Tenente Aviador Ivan Golikov e do Sargento Metralhador Kich Tolbukin. Como parte da força tática da 25" Divisão de Guardas, o 4065 tomou parte nas grandes ofensivas daquele verão, que resultaram na liberação final da Ucrânia e da Bielo-Rússia e na penetração dos exércitos soviéticos em grandes partes da Polônia e da Lituânia. Golikov e Tolbukin tiveram muita sorte em ter sobrevivido àqueles meses, pois os Shturmovicks, muito eficientes na destruição dos blindados, eram caçados pelas baterias antiaéreas e pelos velozes Me-l 09 alemães. Mas Golikov e Tolbukin eram moços destemidos, que se sentiam orgulhosos por lutarem à frente da Divisão de Guardas. Eram essas tropas que abriam grandes brechas nas linhas inimigas, atacadas depois por massas da infantaria soviética.

Em outubro de 1944, voando perto de Budapeste, o 4065 foi atingido pelo fogo antiaéreo, mas conseguiu voltar à base de Miskoic. O avião foi reparado, mas, com o rápido avanço da linha de batalha, não tomou mais parte nos ataques a blindados. Finalmente, em 10 de maio de 1945, um alegre Golikov fez aterrissar seu avião junto com a esquadrilha 260 do XL Corpo de Guardas em Praga, a bela capital da Tchecoslováquia. Depois de permanecer ativo por alguns anos, primeiro em Praga e depois em uma base no Mar Negro, e estando em boas condições mecânicas, o 4065, já de muito separado dos seus amigos Golikov e Tolbukin, foi doado ao Museu de Guerra de Maykop. Esses eram os antecedentes daquele velho avião de combate, como constava nos certificados do arquivo do museu.

O desaparecimento do Shturmovick foi divulgado entre os grandes noticiários a respeito dos bombardeios no Iraque. O antigo Tenente Ivan Golikov, que o tinha comandado na maioria das suas 162 missões de combate, foi um daqueles a saber do caso. Tinha agora quase 70 anos e morava com sua esposa Kaluga perto de Moscou. Há muitos anos ele lera em uma revista de aeronáutica sobre o Museu de Maykop e o 4065, mas nunca tivera a oportunidade de visita-los. Mas Golikov nada pôde adiantar sobre o caso, da mesma forma que os mais diretamente envolvidos, como o Tenente Eremenko e o vigia Khotynetz (o Sargento Metralhador Tolbukin morrera ainda jovem, logo depois do fim da guerra). Na realidade, somente dois homens, em todo o país, iriam dar alguma informação sobre o caso.

Na manhã de terça-feira 12, ao chegar à sua mesa de trabalho, Alexandre Ogarev, gerente de um pequeno aeroporto civil perto da cidade de Astara, na costa do mar Cáspio, encontrou um telex da Polícia Distrital relatando o incidente de Maykop. Foi então que Ogarev percebeu que ele parecia ser a única pessoa em toda a União Soviética capaz de ter informações novas sobre o avião desaparecido.

Ao telefone, ele informou que no dia anterior, às 16:20 horas, (como assinalava o seu livro de ocorrências), o avião referido no telex 2805/02 tinha aterrissado na sua pequena pista de pouso. Ogarev até estranhara um pouco as grandes estrelas vermelhas pintadas na cauda e nas asas daquele avião antiquado. Ogarev continuou contando que o piloto, um homem aparentando 50 anos, mostrou os documentos do avião,
caracterizando-o como um dos poucos Shturmovicks 11-2 aptos para voar e pertencente ao Museu de Maykop. O piloto mostrou também sua carteira de vôo, que parecia estar em ordem, e assinou seu nome no registro apropriado. Infelizmente sua assinatura era ilegível. O piloto pediu então para reabastecer o avião, pagando a conta em rublos.

Antes de o piloto entrar na carlinga para taxear o avião, a curiosidade de Ogarev venceu sua conhecida discrição, e perguntou:

– Qual é o seu próximo pouso, amigo?
– Para lá – respondeu o piloto apontando na direção do mar.
– Certamente você sabe que é preciso licença especial para sair do espaço aéreo soviético? – comentou Ogarev.
– Claro – respondeu o homem que usava um velho casaco de couro. – Olhe aqui no meu plano: dez minutos rumo 90° e depois 270°, direto para Solyany.

E batendo na fuselagem acrescentou: – Este velhinho tem autonomia para 600 quilômetros.
Ogarev diria à Polícia Distrital que essas foram as últimas palavras do piloto. Mas o avião nunca chegara a Solyany. Seguindo a pista de Ogarev, contudo, naquela mesma tarde dois agentes da KGB chegaram ao pequeno aeroporto e questionaram o gerente. Depois, foram investigar junto aos pescadores das redondezas. A princípio não conseguiram informação alguma, e já estavam para desistir quando encontraram um certo Yosif Bathral, mestre de uma traineira de pesca que regressara ao porto na noite de 11 de fevereiro.

Bathral contou que, faltando uns dez quilômetros para chegar ao ancoradouro, estando sozinho na roda do leme (pois fazia muito frio e a tripulação estava nos seus catres dentro da cabine), viu quando um avião monomotor passou voando baixo em direção ao sul. Ele notara especialmente o avião porque, além das luzes de navegação, a cabine estava acesa; dera mesmo para ver que havia dois homens a bordo. Questionado mais cuidadosamente, Bathral insistiu em dizer que havia um segundo homem na parte de trás da carlinga, da qual se projetava o que parecia ser um cano de arma.

Os agentes concluíram que o relato não fazia muito sentido. Descobriram que Mestre Bathral era conhecido entre os seus colegas por "embelezar" suas histórias. Resolveram abandonar a pista, o que foi uma pena, porque jamais se teve notícia do Shturmovick 4065.

RICARDO FERREIRA é professor do Departamento de Química Experimental da Universidade Federal de Pernambuco.

EDIÇÃO 45, MAI/JUN/JUL, 1997, PÁGINAS 70, 71