Socialismo no século XXI
Já vai distante a época dos profetas que vislumbravam o futuro com a suposta ajuda da divindade. Em geral prediziam as calamidades, os males que atormentariam a humanidade, o fim do mundo. Apareceram também os que negavam a possibilidade de conhecer o porvir. "O futuro a Deus pertence", sentenciavam. Nos tempos modernos surgiram verdadeiros profetas. Já não eram adivinhos, mas pensadores apoiados na ciência, no conhecimento das leis que regem a natureza, a sociedade e conformam o pensamento humano. A predição deixou de ser fruto da simples conjetura, mas resultado da elaboração de teorias e premissas que refletem os processos do eterno movimento de tudo que existe no universo.
Vivemos os anos finais do século XX pleno de contradições. Muitos gostariam de conhecer a feição provável dos acontecimentos vindouros, os caminhos por onde trilhará a humanidade em busca de uma vida feliz. O futuro não pode, porém, desligar-se do passado, do exame crítico da época que vai ficando para trás. Esse exame dá indicações, às vezes precisas, das perspectivas vindouras, porquanto a História segue rumos definidos por leis objetivas.
O século XX começou com a passagem do capitalismo florescente da livre concorrência para a sua fase monopolista, imperialista. Todo este século transcorreu sob o domínio dos monopólios que, afinal, converteram-se em monopólios gigantes, os oligopólios transnacionais que aceleram a globalização da economia mundial.
A par dos progressos indiscutíveis na vida da sociedade ocorridos neste século, na produção, na ciência, nas artes, nos meios de comunicação, na identificação de fenômenos ecológicos, no aumento considerável da população do planeta, destacou-se também o lado sombrio, perverso, do sistema monopolista: duas grandes guerras nas quais pereceram cem milhões de pessoas, guerras variadas de dominação colonial, extermínio nuclear de populações indefesas, supressão violenta da liberdade, alargamento do fosso das desigualdades sociais.
Mas o século XX registra também memoráveis lutas sociais e políticas: revoluções, resistência armada aos opressores, levantes camponeses, combativas greves operárias, embates vigorosos contra o fascismo em defesa das liberdades.
A revolução socialista na velha Rússia dos czares é o grande marco da nossa época, seguida mais tarde – por outro evento significativo, a proclamação da República Popular da China. Destaque especial teve ainda o movimento da descolonização. Muitos países, após a II Grande Guerra, sacudiram o jugo da opressão nacional, tornaram-se independentes.
Esse processo violento, contraditório, que já dura cem anos é, em última instância, o lento e prolongado parto da História. O capitalismo chegou ao fim, já não tem condições de resolver os magnos problemas sociais e políticos gerados pelas próprias contradições que encerra. Não pode assegurar a convivência pacífica entre os povos, nem garantir o exercício da liberdade sempre mais restringida. Não pode deter a exclusão social de consideráveis parcelas da população laboriosa, nem impedir o crescimento da miséria que se alastra por todo o Globo. O socialismo, nova forma de organização da sociedade, apresenta deficiências naturais de um regime que acaba de nascer, carece de experiência suficiente para se consolidar em definitivo como sistema progressista. Sofreu derrota passageira na União Soviética e no Leste europeu, depois de haver alcançado importantes vitórias na edificação da nova vida.
A experiência histórica demonstra que o socialismo não conseguirá afirmar-se de um só golpe. Sua consolidação e enraizamento universal registrará muitas vitórias e também reveses. A construção da nova sociedade é mais difícil e complicada do que antes se imaginara. Erra quem pensa que o socialismo morreu definitivamente. Erra igualmente quem o imaginava um processo em linha reta, somando sempre vitórias e expandindo-se sem obstáculos, continuadamente. Também o capitalismo não desaparecerá em cada país com uma única cutilada. De certo modo, a morte do capitalismo está relacionada com a construção êxitos a do socialismo. Em suma, não se constrói a nova vida nem liquida o capitalismo de uma só vez.
A transformação socialista da sociedade é um largo processo de lutas e de aprendizagem permanente. Transferir os meios de produção capitalista para a comunidade é relativamente fácil com a vitória da revolução. Mas essa transferência abrange tão somente a área econômica. Como organizar dinamicamente em todos os aspectos a nova sociedade é obra que demanda tempo e visão progressista, revolucionária.
Quando apareceram as primeiras idéias que sinalizavam a necessidade de substituir o capitalismo, aí pela metade de século XIX, surgiram os utopistas. Saint-Simon, Owen, Proudhon imaginavam, ou melhor, idealizavam a sociedade perfeita do futuro que terminaria com a exploração do homem pelo homem, com a corrida desenfreada ao lucro. Eram pregoeiros de ilusões, de utopias.
O socialismo, em certo sentido, é o novo desconhecido. Até hoje, em vários países, após a revolução, não se sabia exatamente como construir integralmente a sociedade do futuro. Tinha-se o plano geral, de base científica, e as forças militantes do partido de vanguarda. Já é muito, mas não o suficiente, pois além da construção econômica precisa-se forjar a vida espiritual das grandes massas. A sociedade reflete a base material em que se assenta, não, porém, de modo direto. Condicionadas pela base material, as massas criam suas próprias formas de existência. Hábitos, moral, ética, convivência social, vínculos culturais não se forjam de um dia para o outro.
O socialismo não pôde vencer simultaneamente em todos os países, nem mesmo, como supunham Marx e Engels, nos mais desenvolvidos. Triunfou na Rússia, na China, na Coréia, no Vietnã, na Albânia, em Cuba. As idéias e modos de vida aí predominantes são de países atrasados. Tais idéias e modos de vida entram em contradição com os projetos avançados que se pretendem instaurar. É preciso tempo para reverter essa situação. Ademais, a pressão do modo de vida capitalista dos países ricos repercute entre as populações onde se instituiu um regime diferente, progressista, que não pode, de imediato, assegurar condições de vida confortável a todo o mundo. Certamente, nos países ricos, a par do conforto que desfrutam as classes privilegiadas, existe a imensa faixa dos que vivem na pobreza.
Essa faixa, na propaganda capitalista, fica na sombra, não aparece.
O século XXI será cenário da grande batalha histórica que se desenvolve no seio da sociedade humana. Batalha da luta entre o novo que procura abrir caminhos, tradicionais ou inusitados, ao progresso social, e o velho que resiste por todos os meios, pacíficos e não-pacíficos, a desaparecer. Quanto tempo ainda durará esse enfrentamento, é difícil, mesmo impossível prever.
O capitalismo monopolista ingressa nessa batalha, na viragem do século, sustentando a orientação neoliberal que seus apologistas tentam fazer crer tratar-se da nova forma, irreversível, de desenvolvimento da sociedade. A verdade, no entanto, indica que o neoliberalismo é a mais brutal ofensiva do grande capital contra todas as conquistas alcançadas pela humanidade, em termos de democracia, direitos sociais, avanços culturais, identidade nacional, desenvolvimento econômico independente.
Haja vista o quadro desolador do mundo de hoje, em boa parte resultado dessa ofensiva neoliberal:
Um bilhão e 300 milhões de pessoas vivem na pobreza extrema, 800 milhões passam fome; cerca de 900 milhões de trabalhadores vivem o drama do desemprego e do subemprego. Mais de um bilhão de pessoas não conseguem usufruir cuidados básicos de saúde e ter livre acesso à educação.
A regressão antidemocrática, com a degradação da democracia política e os atentados às liberdades fundamentais, é expressão chocante da ofensiva reacionária. A soberania nacional dos países menos desenvolvidos sofre restrições e ameaças de toda ordem. Pari passu, a concentração das riquezas atinge níveis inimagináveis: 358 bilionários possuem fortunas iguais aos rendimentos anuais de 45% da população do mundo. Esta situação paradoxal não pode deixar de suscitar anseios de mudança na forma de organização da sociedade.
De outra parte, o socialismo, como corrente do pensamento avançado, projeta-se sobre o novo século como alternativa inevitável ao capitalismo decadente. É a grande bandeira da renovação social.
Contudo, o socialismo ressente-se da derrota que sofreu na ex União Soviética e no Leste europeu. Suas idéias transformadoras da sociedade perderam força entre as massas. Evidenciou-se profunda crise no campo da teoria, da ideologia. Proliferam por toda parte "críticos" do marxismo, os que renegam princípios e a própria organização de vanguarda, assustados com o final desastroso do regime socialista na URSS e com a campanha anticomunista que se seguiu. "Ser revolucionário – dizem – é coisa do passado, velharias de outros tempos … "
Sem vencer essa crise, o socialismo não poderá avançar, nem comandar exitosamente a luta emancipadora de milhões de trabalhadores, dos explorados e oprimidos. Não há movimento revolucionário na ausência de teoria revolucionária.
Certamente vencer a crise no plano da teoria não significa repelir simplesmente fórmulas ultrapassadas, posições dogmáticas, sectárias. Impõe-se a defesa dos fundamentos da teoria marxista, seu espírito crítico e revolucionário, desenvolve-la criadoramente, ligada ao tempo em que vivemos. Já Lênin, nos primórdios deste século, dizia: "Não temos a doutrina de Marx como algo acabado, inatingível; ao contrário, estamos persuadidos de que ela somente coloca as pedras angulares da ciência que os socialistas devem fazer progredir em todos os sentidos se eles não querem se atrasar na vida". É preciso renovar o marxismo revolucionário, extrair as lições das primeiras tentativas de instauração do socialismo, particularmente na ex-União Soviética, a fim de que o movimento progressista continue avançando. Longe de pretender fazer prognósticos infalíveis acerca da marcha dos acontecimentos políticos do próximo século, pode-se afirmar que prosseguirão as lutas que vêm de decênios passados por transformações da sociedade e que caracterizam a nossa época como a época da transição do capitalismo para o socialismo. Inevitavelmente, contra o neoliberalismo, expressão acabada do capitalismo declinante, levantar-se-ão os trabalhadores, os camponeses, os democratas, os patriotas, a juventude sem futuro, as massas populares atiradas à miséria. Entretanto, muitos desses movimentos sociais carecerão de perspectiva política mudancista, enquanto perdure a crise do marxismo. Neles atuarão por certo tempo os sotisticadores social-democratas, pretendendo inutilmente "reformar" o capitalismo.
Voltará o socialismo a triunfar na Rússia?
É possível que os comunistas voltem ao poder na Rússia pós-revolucionária. O capitalismo aí instaurado contrasta brutalmente com a vida no tempo do socialismo, apesar das deficiências. O povo russo tentará livrar-se das calamidades que recaíram sobre o país com o retorno ao capitalismo. Mas a simples volta dos comunistas ao poder não significará ainda o triunfo do socialismo científico. A Rússia perdeu o rumo revolucionário ao final da década de 50. E não conseguiu até hoje desenvolver a teoria marxista, analisar em profundidade a causa dos erros cometidos, como e por que a União Soviética retrocedeu ao capitalismo. O revisionismo de Kruschov, Gorbachov, Brezhnev e outros não são meros desvios ideológicos, é toda uma doutrina contra-revolucionária destinada a solapar as bases do socialismo, desorientar os trabalhadores e o povo, obscurecer a consciência política das massas.
No curso do século XXI a crise de teoria e da construção socialista será superada. Em vários países observam-se sérios esforços para enfrentar essa tarefa de magnitude histórica. A China, passando por altos e baixos, acabará consolidando o regime socialista que sofreu abalos com os erros do passado, nomeadamente no período da chamada revolução cultural proletária. O Vietnã, arrasado pelas agressões bélicas da França e dos Estados Unidos, será reconstruído e fortalecerá a via socialista. Em outros lugares onde houve revoluções e retrocessos, o socialismo terminará predominante.
No conjunto do mundo, particularmente nos países menos desenvolvidos, a bandeira da luta pela liberdade e pela independência nacional, abandonada pela burguesia capitulacionista passará às mãos das forças progressistas que almejam transformações radicais da sociedade. Grandes países, como a Índia e o Brasil, apresentando formas inovadoras de passagem ao socialismo, poderão alcançar expressivas vitórias.
Assim será o século XXI. Em seus começos, haverá sombras e luzes, mais sombras do que luzes. Depois, o quadro se inverterá. A humanidade viverá tempos de grandes esperanças.
JOÃO AMAZONAS é presidente nacional do Partido Comunista do Brasil.
EDIÇÃO 45, MAI/JUN/JUL, 1997, PÁGINAS 6, 7, 8