Tecnologia na ex-União soviética
O livro deste historiador norte-americano mescla duas questões sem conexão aparente. Segundo o próprio autor "este livro tenta explicar porque a União Soviética falhou em tomar-se um país industrializado moderno. Ele começa com a história da vida de um notável engenheiro russo, Peter Palchinsky, que viu claramente no início da industrialização soviética os equívocos que estavam sendo cometidos, e tentou retifica-los".
Dois trunfos valorizam este pequeno mas valioso livro: em primeiro lugar Loren Graham é hoje, provavelmente, o maior especialista em história da ciência e da tecnologia soviéticas, com uma vasta obra que o credencia pela profundidade e isenção neste domínio. Em segundo lugar o livro é fruto também do acesso a documentos dos arquivos soviéticos, como o relatório da polícia secreta sobre o "Partido Industrial', datado de 1930. Embora o autor tivesse sua atenção despertada para o tema desde o início dos 60, este documento, e outras informações coligidas, eram indisponíveis antes da derrocada do estado soviético, no início dos anos noventa.
P. I. Palchinsky (1875-1929) é um nome conhecido na história do movimento marxista como o líder do "Partido Industrial", acusado de conspirar para a derrubada do governo soviético e executado em fins dos anos vinte. Graham traz à tona uma trajetória de vida bem diferente desta "história oficial". Este engenheiro russo desenvolveu uma elevada sensibilidade para as questões sociais desde a sua juventude, quando foi encarregado, ainda pelo governo czarista, de elaborar um relatório sobre o declínio da produção nas minas de carvão da Bacia do Don. Nessa missão Palchinsky se deu conta que não se poderia pensar em elevar a produtividade das minas sem mudar substancialmente as condições de vida e de trabalho dos mineiros. Ligou-se em seguida ao movimento revolucionário russo, foi preso, viveu anos no exílio, exercendo a profissão em diversos países europeus. Ocupou postos no governo de Kerenski, saído da revolução de fevereiro de 1917, e foi preso junto com membros do governo menchevique quando da tomada do Palácio de Inverno na Revolução de Outubro.
A liberação de Palchinsky deve-se a uma intervenção de Lênin, que fora alertado para a sua competência técnica por uma carta do social-democrata suiço K. Moor. Desde então, nos dez anos que se seguiram, ele trabalhou ativamente como consultor do governo soviético em diversos projetos e em diversos órgãos, sem contudo aderir ao partido bolchevique.
Combinado com o trabalho estritamente técnico Palchinsky externou opiniões, muitas vezes contraditórias com aquelas dos bolcheviques, sobre a política de industrialização e tecnologia a ser seguida pelo regime emergente, sobre a função da engenharia nas sociedades contemporâneas e sobre a formação dos engenheiros. Ele defendeu a combinação de grandes plantas industriais com o papel de pequenas e médias indústrias, bem como a combinação do planejamento centralizado com a exploração das peculiaridades locais. Criticou a adoção pelos soviéticos do fordismo e do "taylorismo" implantados nas indústrias norte-americanas; defendendo o que chamava de "engenharia humanitária", segundo a qual "seres humanos não devem ser considerados como mãos de aluguel, mas indivíduos criativos com necessidades espirituais e culturais". Apoiou a iniciativa do governo de buscar capitais estrangeiros para auxiliar a industrialização. Sobre a formação dos engenheiros ele expressou reiteradamente sua preocupação com os programas tradicionais – com muita ênfase em ciências exatas e nenhuma preocupação com economia e economia política. Embora trabalhando par:! o governo soviético ele opôs-se ao controle pelo partido das organizações sindicais e culturais das quais ele era membro. Segundo Graham ele havia estabelecido uma "distinção entre os interesses da Rússia enquanto país, os quais ele apoiava fortemente, e os interesses do Partido Comunista, aos quais ele se opunha". Uma tal atitude pôde conviver com a União Soviética dos anos vinte, mas entrou em colisão com os novos rumos políticos e econômicos a partir do final dos anos vinte.
Preso em abril de 1928, teve sua execução anunciada em 24 de maio de 1929. Um ano após, quando do julgamento do "Partido Industrial", seu nome foi apresentado como líder de um complô para derrubar o governo. As pesquisas levaram Graham a uma outra conclusão, argumentando que "suas [de Palchinsky J ambições para os engenheiros poderiam ser realizadas somente em uma sociedade que assegurasse às várias profissões um alto grau de autonomia e cujo governo fosse receptivo a ouvir conselhos oriundos de fora dos círculos oficiais". Graham conclui que efetivamente ocorreu uma colisão entre a atividade técnica e política do engenheiro e a política stalinista, exemplificando: "enquanto Palchinsky sustentou que o fator humano era de fundamental importância, Stalin acentuou que 'tecnologia decide tudo'''. Graham analisa em seguida, em detalhes, as opções técnicas e a viabilização de três grandes projetos que marcaram a industrialização acelerada na URSS – a represa do Dnieper, a cidade de aço de Magnitostroi e o Canal do Mar Branco – contrastando muitas das decisões adotadas com as opiniões expressas anteriormente por Palchinsky e por engenheiros a ele ligados. Muito interessante é a análise feita sobre o perfil dos engenheiros formados em larga escala no regime soviético e o papel político que esta camada social veio a jogar nas décadas subseqüentes. Prevaleceu uma especialização absoluta – sem igual em outros países – combinada com aulas sobre história do partido bolchevique, materialismo dialético e economia política, com programas (Graham examina e evidencia) que primavam pelo ensino dogmático. Analisando o fato da geração que sucedeu os antigos bolcheviques na estrutura dirigente do partido ser, no fundamental, egressa destas escolas de engenharia, o autor conclui: "se tecnocracia é definida como o domínio de pessoas educadas em assuntos técnicos, a União Soviética na altura do último quartel deste século foi claramente uma tecnocracia; foi uma tecnocracia dominada por engenheiros com uma educação mais estreita que em qualquer outro lugar do mundo".
O último dos cinco capítulos é dedicado à discussão das origens dos erros técnicos associados a dois grandes projetos soviéticos do pós-segunda guerra. A construção da estrada de ferro Baikal-Amur, cuja ineficiência econômica é notável, e o desastre da grande central nuclear de Tchernobyl. A esta altura do livro o autor justifica o título escolhido: "alguns podem desejar chamar Palchinsky de profeta, eu prefiro chamá-lo de um fantasma", porque "o fantasma de Peter Palchinsky, que tinha alertado para os efeitos da educação técnica estreita e ignorância das questões sociais, voltou a freqüentar a União Soviética".
Este livro nos leva, por fim, a refletir sobre o significados da abertura dos chamados "arquivos soviéticos", afinal ele deve parte substancial de sua qualidade ao uso criterioso destas fontes. Em um primeiro momento, predominou o uso político destas fontes, cujo exemplo mais significativo parece ter sido a revelação, por Ieltsin, de documentos comprovando a responsabilidade de Stalin no massacre dos 26000 oficiais e civis poloneses em Katyn, durante a Segunda Guerra (Le Monde, 16.10.1992 e 1112.04.1993). Se muitas das afirmações supostamente baseadas nestas fontes precisam passar ainda pelo crivo da pesquisa histórica rigorosa, também é verdade que começam a aparecer trabalhos significativos que nos ajudam a melhor compreender a experiência socialista soviética. O livro de Loren Graham insere-se nesta última categoria.