A minha verdade, de Vitali Vorotnikov é um livro importante do qual se tem falado menos do que seria desejável. O desconhecimento da obra é compreensível. Até agora somente foram lançadas duas edições, quase simultâneas, uma em Cuba e outra na Rússia (1).

O subtítulo por si só, justifica, entretanto, o interesse que suscitou entre os leitores: notas e reflexões do diário de trabalho de um membro do Politburo do Partido Comunista soviético (PCUS).

Vorotnikov além das funções que desempenhou na alta direção do PCUS, foi presidente do Conselho de Ministros da Federação Russa, membro do Soviete Supremo e embaixador do seu país em Cuba. Pela sua vida como homem público foi, não apenas espectador, mas participante de acontecimentos de extraordinária importância da história contemporânea do seu país e do mundo. Durante anos registrou no seu diário o que de mais importante ouviu nas reuniões de alto nível em que esteve presente. A tragédia que destruiu o Estado soviético levou-o a editar em livro os seus apontamentos.

Foi forçado, pela abundância do material, a proceder a uma seleção. Ao rever tudo, decidiu comentar fatos e situações, o que não fizera antes. Essas opiniões posteriores são, aliás, reveladoras das fragilidades de Vorotnikov. Deixam entrever arrependimento por, na altura própria, haver sido omisso, não assumindo as posições que as circunstâncias impunham.

A documentação reunida é, contudo, suficiente para fazer de A Minha Verdade uma bomba política. Ilumina os bastidores apodrecidos da perestroika.

As primeiras notas remontam ao tempo em que Andropov foi eleito secretário-geral do PCUS. De certa maneira, esse comunista austero e lúcido foi um precursor da perestroika. Sentiu no início dos anos 1980 que era urgente e indispensável romper a estagnação e a burocratização do Estado e do Partido, que caracterizaram a época de Brejnev. O país atravessava uma crise política e econômica que exigia soluções eficazes e inovadoras.

Andropov esboçou uma estratégia e definiu um estilo de trabalho. Mas não viveu o suficiente para fazer obra duradoura. O seu sucessor, Tchernenko, não deu continuidade ao trabalho iniciado no sentido de revitalizar a sociedade e o Partido.

Gorbachev, democrático, dialogante, amável, sabia ouvir os camaradas do Politburo e sabia seduzir. Invocava Lênin com convicção, assumia os princípios do marxismo-leninista com firmeza, mostrava ser um crítico severo do imperialismo e da estratégia de Reagan.

Poucos, então notaram, que começou logo a rodear-se dos camaradas que na direção do PCUS o adulavam. Em junho de 1985, colocou Alexandre Iakovlev à frente do Departamento Ideológico do Comitê Central. Essa decisão pesou na evolução dos acontecimentos porque Iakovlev se tornou o ideólogo do desvio da perestroika do projeto inicial.

A admiração de V. V. por Gorbachev transparece do conjunto de anotações relativas aos anos de 1985, 1986 e 1987. O discurso de Gorbachev era então muito diferente. As notas de V. V. registram passagens expressivas do seu relatório ao XXVII Congresso do PCUS: “A tarefa do imperialismo consiste em salvar o sistema e não mudar nele nada, custe o que custar (…) A política internacional do PCUS tem um caráter aberto, honesto e leninista”.

Nos dias que se seguiram ao Congresso, Gorbachev proclamava, num tom dramático, que impressionava os camaradas do Politburo: “se fracassarmos e não cumprirmos os compromissos assumidos perante o povo, perderemos a luta pelo socialismo, pelos ideais do homem, pelo prestígio do socialismo e do país”.

A 20 de junho, V. V. anota no seu diário uma opinião de Gorbachev emitida numa reunião do Politburo: “através dos Sovietes, agora temos de incorporar as massas no processo político”. Poucos se davam conta, então, de que a ênfase posta na suposta revitalização dos sovietes era já uma manobra tendente a esvaziar o papel do Partido.

Estranhas reformas

A 15 de agosto no Politburo, Gorbachev declarou: “a reforma deve começar pelo Partido, pelos quadros”. Na aparência defendia a ética e a austeridade: “debilita-se – salientou – a exigência da responsabilidade a ladrões, burocratas e bêbados. A tarefa não é abandonar as posições de princípio”.
A ambiguidade, entretanto, já causava algum mal estar. Não se percebia a favor de quem ou contra quem estava em muitos casos, porque alguns dos quadros que principiavam a ser afastados (ou reformados) era dos melhores, com um passado de bons serviços. Gorbachev alegava que estavam cansados… Mas a apologia do Partido desfazia as dúvidas. “Tudo depende do Partido – insistia. É necessário convocar menos reuniões, ter menos papelada, menos relatórios e comissões de controle e ajuda, e que resolvamos os problemas básicos".

O ano de 1987 foi muito mais difícil. A palavra de ordem segundo a qual as mudanças se fariam no socialismo – repetida continuamente por Gorbachev – não foi levada à prática. No processo da perestroika as contradições e decepções multiplicavam-se. Mas na reunião do Politburo de 6 de janeiro, Gorbachev insistiu: “o socialismo é a alternativa do capitalismo; a democracia socialista é a verdadeira democracia”.

Em nota atual, V. V. chama a atenção para o fato de Alexander Iakovlev, no seu livro “O derrubamento” afirmar que em 1987 “já tinha compreendido a necessidade da renúncia ao marxismo. A confissão confirma que a conspiração se desenvolvia porque era Iakovlev, como braço direito de Gorbachev, quem dirigia a atividade ideológica.

Gorbachev ocultou sistematicamente, nos últimos anos, os compromissos que assumia no diálogo com os dirigentes do ocidente capitalista

Na sessão plenária do CC de 27 de janeiro Gorbachev afirmou que a estratégia da perestroika visava a “fundir os êxitos da revolução técnico-científica com a economia planificada, pondo em movimento todo o potencial do socialismo”. O papel de vanguarda do Partido nessa tarefa foi enaltecido.
A influência dos assessores, entretanto, fazia-se sentir cada vez mais. A perversão do significado das palavras acentuava-se na linguagem política. Vocábulos como conservador, democrata e radical adquiriam na URSS significações absurdas. Os radicais eram no discurso gorbacheviano, aqueles que pretendiam acelerar a perestroika, mas na realidade preparavam a destruição do regime; os conservadores eram os defensores do socialismo…

Na reunião do Politburo de 30 de abril ficou transparente que a planificação anual tinha sido abandonada… Em nome de uma suporta necessidade de criar condições para a economia de mercado – expressão na moda, cujo conteúdo e alcance, o povo não entendia – as leis da economia socialista começaram a ser ignoradas.

No dia 22 de maio, Kriuchkov, não hesitou em afirmar no Politburo que as transformações na política poderiam ir até à mudança dos nomes do país e do Partido. A ausência de reações foi chocante.
A partir do final de setembro, Gorbachev deu uma nova guinada. Começou a repetir que, além de se reestruturar muita coisa, também “era preciso destruir”, porque “a demora e a indecisão são nefastas”. Mas, destruir o quê? Não esclareceu. “A democratização e a Glasnost – recorda – desenvolviam-se sem controle; não somente estimulavam, mas incitavam a opinião pública a opor-se ao governo e ao PCUS”. E acrescenta: “às censuras pelo atraso e pela atitude conservadora na aplicação das reformas seguiu-se o ataque frontal a outras atividades do Partido.

Anos depois, Iakovlev reconheceu que a força demolidora da Glasnost fora além de tudo o que ele imaginara. Em novembro no plenário do CC do PCUS dedicado ao 70º aniversário da Revolução de Outubro, Gorbachev fez o elogio entusiástico da “arte de Lênin” como dirigente genial do Partido. Definiu o socialismo como parte do mundo, sublinhando que no destino do planeta influíam “também a luta de classes, a luta pela democracia e pela independência nacional”.

Entretanto, com a economia a afundar-se e a desordem política a alastrar, as relações entre as nacionalidades começavam a tomar um rumo explosivo. Na sessão de 17 de fevereiro do CC, Gorbachev declarou que: “para se interpretar de maneira correta e objetiva a história recente da URSS, é indispensável uma análise marxista-leninista”.

O famoso artigo da professora Nina Andreieva, de Leningrado – então uma desconhecida – no diário Soviestskaia Rossia – serviu de pretexto a uma estranha campanha de caça às bruxas. Foi apresentado como campanha contra a perestroika montada por stalinistas incorrigíveis. Gorbachev levou o assunto ao Politburo e o debate foi tempestuoso. O secretário-geral repreendeu todos os que acharam que se estava a atribuir demasiada importância ao artigo em causa. O Izvestia foi o canal utilizado para uma resposta a Nina Andreieva que confundiu a opinião pública e o Partido.

A crise nas Repúblicas do Báltico fez vir à tona a decomposição separatista acelerada do Partido e a ausência de uma política clara no diálogo com as nacionalidades. Chevardnaze reagia às arrogantes provocações dos EUA com um servilismo que se acentuava dia após dia. Entretanto, Gorbachev entoava uma cantilena cada vez mais divorciada da realidade. A 23 de Maio, no CC do PCUS, dissertou longamente sobre o “conteúdo ideológico e o sentido socialista das transformações no desenvolvimento da perestroika e sobre o renascimento dos princípios do socialismo científico”.
Isto quando o socialismo estava já a ser demolido. Enquanto reorganizava o sistema político, CC desbravava o caminho para a sua destruição galopante, embora poucos dos seus membros tivesse consciência do que se passava.

A confissão de Iakovlev

O jogo elíptico de Gorbachev mobilizava cada vez mais o apoio do Ocidente que via no secretário geral do PCUS o melhor instrumento da sua própria política. Mas, no interior, o discurso ambíguo e demagógico do dirigente soviético começava a irritar os autênticos comunistas, cuja desconfiança crescia. Era muito descaramento afirmar que: “o nosso Estado, como arma da ditadura da classe operária, se transformou posteriormente no Estado de todo o povo. Mas a última palavra deve dizê-la ao povo. É necessário devolver todo o poder aos Sovietes”.

O jogo tornava-se mais claro. A paráfrase do Partido Bolchevique nas vésperas da Revolução funcionava como prólogo à liquidação do Partido.
Na Conferência Nacional do Partido, os debates foram, pela primeira vez, tempestuosos. Ieltsin pronunciou um discurso insolente, exigindo a sua reabilitação.

A pergunta mais formulada pelos delegados – “Que tipo de socialismo estamos afinal preparando?” – expressou a desorientação que alastrava pelo Partido. V. V. também se interrogou muito, inquieto. Mas procurava respostas tranquilizadoras. As pessoas – escreveu mais tarde – ainda não tinham perdido a esperança de responder unanimemente ao apelo da direção do Partido.

“Se o diz o secretário-geral, se o Politburo e o secretariado do CC o propõem é porque certamente eles analisaram o problema e não desejam nada de mau para o povo; portanto, devemos confiar neles, porque querem fazer as coisas o melhor possível e devemos, por isso, apoiá-los”. Essa era a melancólica atmosfera da Conferência em junho de 1988.

Somente transcorridos cinco anos, Iakovlev, ao discursar na Universidade de Tartu, na Estônia, fez uma confissão tardia: “No caminho proposto por Gorbachev para a democratização não havia nada de original, mas a democratização não se desenvolveu através das instituições democráticas. Isso num determinado sentido, destruiu então a sociedade. O objetivo que nós tínhamos traçado era uma experiência histórica única, uma revolução sem violência.”
Qualquer comentário seria supérfluo.

Gorbachev – pergunta V. V. – faria também parte desse nós, ou seja, do grupo que preparava a destruição do regime socialista?

Vorotnikov não responde com clareza à pergunta que formula. Mas conclui que, a partir dessa data “se pode contar a estória de sua própria traição à causa das transformações socialistas da sociedade (…) concretizaram-se, etapa após etapa, as palavras de ordem do novo pensamento, dos valores de toda a humanidade, da desideologização – e a perestroika socialista transformou-se no seu oposto”.

Nem uma só das propostas feitas por Gorbachev em 1986 foi cumprida. O povo não interveio na reforma dos preços, a ciência soviética em vez de avançar foi abandonada, os princípios leninistas foram esquecidos e Lênin passou a ser insultado até por dirigentes do Partido, o Comitê Central e o Politburo em vez da renovação anunciada, foram desmantelados; o secretário geral abandonou o Partido que foi proibido com seu aval… A questão das nacionalidades exacerbou-se e as repúblicas separaram-se da União que se desintegrou. Em vez da legalidade socialista, o desemprego, a pobreza e a delinqüência assumiram proporções inimagináveis. Os sovietes não assumiram o poder: foram liquidados.

A partir do final de 1988, Gorbachev deixou de pedir opiniões; limitava-se a comunicar as decisões tomadas por ele e o seu grupo. Em novembro reduziu praticamente a zero as funções do secretariado do CC com o argumento de que duplicavam as do Politburo…

As notas relativas aos anos 1989, 1990 e 1991 repetem, pela forma e conteúdo, muito do já dito. O regime agonizava, não obstante ao final isso se haver tornado evidente. As relações de Gorbachev mesmo com algumas das personalidades que desde o início o haviam apoiado, deterioraram-se. As caras foram mudando no Politburo, tal como o CC. O primeiro-ministro Rizkhov acabou por entrar em choque com a engrenagem trituradora e foi sacrificado.

No Ocidente aumentava o coro de aplausos à medida que os muniques soviéticos se multiplicavam. Gorbachev emergia já publicamente como um herói glorificado pelo mundo capitalista. No Politburo esforçava-se atabalhoadamente por manifestar espanto perante os elogios da direita européia e norte-americana, mas nunca escondeu a sua profunda admiração por Margareth Thatcher. Identificava nela “a líder da Europa Ocidental”.

Limpeza no CC

Em abril de 89, foi duramente criticado no CC. Recordaram-lhe que, numa atmosfera de caos, já se ouviam apelos à desintegração do país e ao enforcamento dos comunistas. A resposta de Gorbachev foi uma limpeza geral. Foram reformados 110 membros do CC.

Meditando sobre esses dias, V. V. pergunta: “Quem era afinal Gorbachev?”. Esse homem – escreve – sempre se considerou a si mesmo um comunista de princípios e, por conseguinte, em seguidor de opção socialista (…) por longo tempo eu e muitos colegas do Politburo acreditamos em Gorbachev, tínhamos confiança nele e não podíamos imaginar, nem remotamente, para que tipo de lutas ele estava preparado. Quando percebemos era demasiado tarde: “o comboio da pseudo-democracia tinha já adquirido uma tal velocidade que era impossível deter-lhe a marcha (…) Gorbachev tinha a capacidade, mediante uma torrente de palavras difíceis e de confusas formulações, assim como através de todo o tipo de justificações e referências ao seu prestígio e experiência – de transformar os interlocutores em aliados e, assim, confundia de tal maneira a questão que cada um podia considerar que era precisamente a sua posição aquela que ele apoiava”.

Perante a opinião pública passou “da admiração entusiástica para a indiferença, a reprovação e, por fim, o ódio”.

A partir de 1989, a influência de Iakovlev sobre Gorbachev assumiu transparência, era tão esmagadora que incomodava. Passou a acompanhá-lo em todas as viagens ao estrangeiro como conselheiro especial. No Partido deixou a ideologia e passou a ser responsável pelas relações internacionais.

Das anotações de V. V. infere-se que Gorbachev ocultou sistematicamente nos últimos anos os compromissos que assumia no diálogo com os dirigentes do Ocidente Capitalista. O relato que fez, aliás breve, do seu encontro com Bush na Cimeira de Malta, foi totalmente fantasista. Apresentou com notável êxito aquilo que foi uma capitulação total.

No CC, a 13 de outubro de 1989 afirmou, entre outros disparates: “Está a verificar-se um aumento das manifestações da direita como resistência ao impulso da esquerda. Trata-se de uma reação negativa de nostalgia do passado”. Para ele, os trabalhadores eram a direita e sua gente a esquerda. E, a despropósito perguntou: “Porque não há uma avaliação objetiva daquilo que a Revolução de Outubro deu, na realidade, ao nosso país?”

Começava a comportar-se como um palhaço político.

Perante os sucessivos desastres ocorridos em 89-90 na Polônia, na Hungria, na Tchecoslováquia, na RDA, defendeu aquilo a que chamou “a liberdade de opção dos países socialistas”, sublinhando que não permitiria, porém, que “ofendessem a RDA”.

A 22 de janeiro de 1990, dirigindo-se ao CC, fez, pela primeira vez, a defesa do multipartidarismo, argumentando que estava “na lógica do desenvolvimento da sociedade”. Na sua opinião, “o Partido apoiado no legado de Marx, Engels e Lênin, estava a desenvolver de maneira crítica as idéias socialistas adequadas ao momento atual”.

O auditório, mais uma vez, reagiu de maneira confusa e contraditória. Mas choveram críticas. Kornienko, então primeiro secretário do comitê urbano de Kiev, do Partido Comunista da Ucrânia, foi um dos mais cáusticos. “É preciso antes que seja tarde – disse – meditar no destino do Estado Socialista. No Partido iniciaram-se processos perigosos que conduzem à cisão”.

Poucos se deram conta de que a ênfase posta por Gorbachev na suposta revitalização dos sovietes era uma manobra para esvaziar o papel do partido

Rizkhov perguntou: “continuará o PCUS a ser o partido do governo e a vanguarda política do povo? Haverá ou não multipartidarismo? Mantém o PCUS as suas posições comunistas ou inclina-se para a social-democracia?

O simples conteúdo dessas perguntas ilumina o ventre da crise dramática em que o Partido e o Estado estavam mergulhados.

Confrontando com o perigoso desenvolvimento da questão alemã, Gorbachev afirmou com frieza: “Se proclamamos no nosso país a liberdade e a democracia, como podemos negar a outros essas coisas; é impossível e desnecessário deter os acontecimentos”.

A 15 de março, Gorbachev foi eleito presidente da URSS pelo Congresso Extraordinário dos Deputados do Povo.

Mas da máscara inicial quase nada sobrava. Os pedaços haviam ficado na estrada da perestroika traída.

A 29 de março, Ligachov distribuiu antes da reunião do Politburo uma carta em que pedia uma sessão extraordinária no CC, alegando que “sob as bandeiras da democracia e da glasnost vão apodrecendo os pilares ideológicos e morais da sociedade”. Depois da Europa Oriental – denunciava – “colocaram agora como objetivos, eliminar o socialismo da URSS, levar ao fracasso as transformações sociais a caminho do socialismo científico e fazer o país atravessar a fronteira do desenvolvimento capitalista”.
Gorbachev não incluiu o debate sobre a carta na ordem do dia. V. V. lamenta a decisão, mas comenta: “Todos nós ainda acreditávamos no secretário geral e tínhamos a esperança de que ele, com a sua capacidade, encontrasse uma solução”.

Apetece perguntar: qual? A economia afundava-se num caos generalizado. O PCUS derretia-se.
O XXVIII Congresso do PCUS, o último, foi simultaneamente penoso e caricatural. Ao defender a renovação do PCUS, Gorbachev afirmou que ele “deveria transformar-se num partido de opção socialista, fiel as idéias gerais do homem, libertado da ideologia que estrutura as relações na base da camaradagem”.

A definição foi, posteriormente, considerada por humoristas do Ocidente merecedora de figurar uma antologia universal da asneira e do cinismo político.

Aleksander Iakovlev foi vaiado e ridicularizado. O general Lebed pediu-lhe um comentário à declaração de que seria enforcado num pinheiro se publicasse o seu livro inédito “a visão do marxismo”, e esclarecesse quantas caras tinha.

Do Congresso saiu um novo Politburo. Do anterior sobrava apenas Gorbachev e Ivashko. Os acontecimentos do ano de 1991 são de maneira geral, mais conhecidos.
V. V. lembra que a influência de Gorbachev caía rapidamente. Até o CC, cujos membros haviam sido selecionados pela sua docilidade, se voltou contra ele.
Ieltsin foi eleito presidente da Federação Russa, cargo que na perspectiva do anterior Politburo deveria ser desempenhado por Vitali Vorotnikov pela sua grande experiência dos assuntos de governo da Rússia.

Obviamente, Ieltsin foi aclamado pelas forças mais reacionárias e a cerimônia da posse abençoada pelo patriarca ortodoxo Alexis II.

Sobre os fatos de agosto de 1991, V. V. não traz elementos novos, mas tem interesse o relato que faz da sessão do Soviete Supremo da Rússia. Ieltsin obrigou praticamente Gorbachev a ler um texto que o humilhava. O momento culminante dessa farsa dramática chegou quando Ieltsin tomou a palavra e declarou: “para aliviar a atmosfera vou assinar o decreto sobre a suspensão das atividades do Partido Comunista da Rússia”. E assinou. Gorbachev apenas balbuciou: “Trata-se de suspender, não de proibir”. Houve risos na sala.

No dia seguinte, 24 de agosto, V. V. escreveu no seu diário: “Uma notícia inaudita: o secretário geral do CC do PCUS só renunciou aos seus poderes à frente do Partido como recomenda a sua dissolução. Bom, e o Partido? Tudo está claro: não pode continuar a funcionar no território da Federação Russa. Por decreto do presidente da Rússia, proíbe-se de fato o PCUS na República (…) são confiscados os bens do PCUS e seladas todas as sedes do Partido”.

Aquele dia antecipou o fim do poder real de Gorbachev. Era já um cadáver político quando, a 21 de dezembro, Ieltsin desfechou o seu golpe pessoal, criando a Comunidade dos Estados Independentes – CEI, que implicou o fim da URSS.
No dia 25 era arriada no Kremlin a bandeira vermelha da União Soviética.

A citação de Álvaro Cunhal

No epílogo do seu livro – gerador de polêmicas não imaginadas pelo autor – Vorotnikov, que nunca consegue ser convincente nas tentativas de explicar porque acompanhou Gorbachev praticamente até o fim, alerta os leitores para a extrema dificuldade de se refletir sem paixão sobre a tragédia que foi a breve e tempestuosa perestroika.

Para ele o XXVII Congresso do PCUS esboçou uma linha revolucionária para a perestroika (ainda sem rótulo) voltada para a aceleração do desenvolvimento econômico traçada pelo CC em abril de 1985. Essa linha que o povo então apoiou com entusiasmo era incompatível – e aí V. V. tem toda razão – com os desvios que sofreu e levaram ao desfecho. Para o povo russo, hoje, a palavra perestroika tornou-se sinônimo de engano e traição. O autor recorda que “o afundamento do Estado soviético foi obra da contra-revolução e nele desempenhou papel destacado o próprio líder da perestroika, Mikhail Gorbachev”. Continua, porém, a ser polêmica e assim será por muito tempo uma questão fundamental: terá Gorbachev desde o início – como agora sustenta – pretendido destruir o socialismo, não abrindo o jogo porque não dispunha de força para tanto, ou, pelo contrário, era sincero ao jurar fidelidade aos princípios do marxismo-leninismo e aos valores da Revolução de Outubro?

Não é passível de dúvida, porém, a conclusão de que Gorbachev foi manipulado e dominado pelo seu principal assessor, Alexandre Iakovlev – um político muito mais dotado intelectualmente e que, esse sim, era há muito um inimigo inconfessado do socialismo.

Qualquer que seja a opinião dos leitores sobre o papel de Vitali Vorotnikov nos acontecimentos, o mérito do seu livro é inquestionável pelo próprio valor da documentação por ele pacientemente reunida nas notas publicadas em A Minha Verdade. Algumas são páginas da história contemporânea.
O livro fecha com palavras de otimismo. Vorotnikov escolheu uma citação de Álvaro Cunhal. Não dispondo do texto original, traduzo da edição cubana o seu voto “para que se cumpra, oxalá que em tempo não muito distante daquilo que afirmou o dirigente dos comunistas portugueses, Álvaro Cunhal: ‘Embora as folhas secas tenham caído das árvores, as raízes populares mantêm o vigor e vão gerar novos rebentos’”.

Miguel Urbano Rodrigues é jornalista. O livro está disponível na Editora Anita (ver endereço no corpo de créditos da Princípios)

Notas
(1) Mi verdad – Notas y reflexiones del diario de trabajo de un miembro del Buró Politico del PCUS, 487 p., Vitali I. Vorotnikov, Casa Editora Abril, La Habana, 1995. A edição russa saiu quase simultaneamente em Moscou, mas a cubana começou a ser impressa muito antes, devendo-se o atraso no lançamento às dificuldades do Período Especial.

EDIÇÃO 46, AGO/SET/OUT, 1997, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66, 67