A tarefa das forças políticas que se opõem ao neoliberalismo não é somente uma tarefa de denúncia constante e de resistência aos males sociais que ele provoca. É, cada vez mais, uma busca permanente de alternativas concretas à política neoliberal, sob pena de o combate político e ideológico ao receituário neoliberal se transformar em mera retórica.

Todos os acontecimentos deste final de século transformaram profundamente o cenário político e ideológico do planeta, colocando o regime capitalista como realidade quase que imbatível e irrecusável. Ele é novamente apresentado como fenômeno que sempre existiu e que nunca acabará, supostamente por suas qualidades intrínsecas, qualidades estas expressas na noção de mercado. Neste momento, então, para o pensamento dominante, falar-se em socialismo e comunismo passa a ser uma espécie de loucura. E, em termos imediatos, quaisquer contestações às políticas implementadas pela oligarquia financeira – setor hegemônico do capitalismo em escala mundial e nacional – também são vistas como gestos inconsequentes e, no mínimo, quixotescos.

Temos, porém, nossas próprias referências, independentemente do que o pensamento dominante possa ou não achar delas. De um ponto de vista mais geral, sustentamos uma visão crítica radical do capitalismo, como regime de exploração e de opressão, baseado na apropriação feita pelos capitalistas da mais-valia gerada pelos trabalhadores no decorrer do processo social de produção.

Estrategicamente, não pretendemos apenas remendar, reformar ou “dar uma face humana” ao capitalismo, deixando intocado seu mecanismo básico de exploração da força de trabalho pelo capital – a extração de mais-valia –, que é o fundamento da acumulação capitalista. Nosso objetivo maior é substituir o capitalismo por um regime novo, o socialismo, como transição a uma sociedade social e culturalmente superior e sem classes, o comunismo. Não alimentamos “utopias”, isto é, sonhos impossíveis de serem realizados e que não se vinculam à situação concreta que enfrentamos. As contradições do capitalismo são fenômenos objetivos que geram nele permanente instabilidade e crises e que, combinadas com uma estratégia e uma tática corretas, possibilitam a sua transformação revolucionária.

Esta transformação não está, agora, imediatamente, na ordem-do-dia. Depois de conseguir vitórias memoráveis nesse século – entre as quais a Revolução de Outubro, na Rússia, e a Revolução Chinesa –, o campo socialista e popular sofreu grandes derrotas, até se delinear a situação presente, de ofensiva geral do imperialismo e de predomínio dos interesses da oligarquia financeira, materializados na propaganda e nas políticas neoliberais. Nem por isso, entretanto, devemos perder de vista nossas referências básicas. Necessitamos, como é da tradição do movimento revolucionário, de uma tática política adequada à atual situação, que contemple a presente correlação de forças e que nos ajude a enfrentar esse momento ainda adverso, em que o inimigo se encontra na ofensiva. Nossa política não é uma política do “tudo ou nada”. Não somos reformistas, mas defendemos quaisquer medidas parciais que, na atual situação, possam impedir a plena consecução das medidas neoliberais e que aliviem a situação difícil das massas. Precisamos explorar o máximo todas as oportunidades em que seja possível sinalizar, ainda que de maneira parcial e limitada, com uma política alternativa ao receituário neoliberal, em termos de conteúdo e de método. Estas oportunidades têm surgido no transcurso das campanhas eleitorais e nas medidas tomadas pelos governos ocupados por frentes de partidos e forças do campo popular e democrático, sobretudo em alguns governos estaduais e municipais com maior repercussão nacional.

Para a população, quais têm sido as diferenças visíveis praticadas por estes governos estaduais e municipais, que se dizem de oposição, e os demais governos? Pode-se dizer que as diferenças não têm sido grandes. Uma das justificativas para este fato seria a de que a margem de manobra que estes governos efetivamente têm é muito pequena ou quase nenhuma e que, portanto, não podem fazer praticamente nada de diferente. Estão mergulhados numa enorme crise fiscal e financeira, além se ter grande parte de suas receitas comprometidas com a folha de pessoal. Assim, portanto, não lhes sobraria outra alternativa senão a de seguir os mesmos passos que quase todos estão seguindo, de severa contenção de gastos de investimento e de custeio – inclusive nas chamadas áreas sociais – de enxugamento da máquina pública e de priorização absoluta à rolagem da dívida pública.

Não há dúvida de que as dificuldades são grandes, mas nem mesmo por isso as forças que se opõem ao neoliberalismo devem deixar de praticar uma política que sinalize diferenças visíveis com a política neoliberal, sob a pena de nossa luta se transformar em pura retórica. Antes de mais nada, temos de abordar a crise social de outra maneira. As pesquisas recentes de opinião pública divulgadas pelos grandes meios de comunicação têm revelado uma reação da população frente à política do atual governo de se concentrar quase que exclusivamente na questão da estabilidade monetária. Estas pesquisas mostram que, atualmente, a primeira preocupação das pessoas é com o problema do desemprego, a chaga mais visível e dramática da crise social. Se esta reação é verdadeira, haveria condições objetivas para se combater a política de privatizações e de “ajuste” da máquina pública praticada pelo governo federal e pela maioria dos governos estaduais, pois são, antes de tudo, políticas alimentadoras do desemprego. O plano real destrói empregos e empurra as pessoas para a insegurança total e a informalidade. Desde sua implantação, de acordo com dados oficiais, já acabou com mais de 750 mil empregos formais no país (1). A única categoria que cresce com o real é a dos ambulantes, uma espécie de último recurso que os trabalhadores desempregados recorrem para tentar sobreviver. Neste quadro geral, a responsabilidade direta do governo é total. As empresas federais privatizadas, desde o governo Collor até o começo de março deste ano, acabaram com cerca de 40 mil empregos diretos ao passarem para o controle do setor privado (2). Nesta cifra não está incluída, por exemplo, a Companhia Vale do Rio Doce que, apenas um mês após ser privatizada, já demitiu 200 trabalhadores em Itabira (MG) (3). Todo mundo sabe qual é a primeira conseqüência da onda de fusões de empresas, de aquisições de empresas nacionais por grupos estrangeiros e de privatizações em curso: desemprego.

De alguma maneira, quaisquer governos que se opõem ao receituário neoliberal têm de colocar para si, como primeira e principal tarefa, o enfrentamento da crise social e do desemprego. Isso implica garantir uma margem mínima de ação e uma capacidade mínima de investimentos. Surge então a pergunta: onde conseguir estes recursos?

Os meios tradicionais de que se tem valido os governos na tentativa de buscar recursos têm sido a negociação com organismos internacionais de crédito (como BIRD, BID), a tentativa de endividar a máquina do Estado por quaisquer outros mecanismos (lançamento de títulos, invenção de falsos precatórios etc) e, do lado da despesa, um violento corte até mesmo no custeio de ações básicas como aquelas voltadas para a saúde pública. Além disso, agregue-se uma paranóia permanente em relação ao “enxugamento da máquina”, entendendo-se isso sobretudo como a necessidade de se diminuir drasticamente o número de servidores públicos. Em todo esse modelo de “ajuste neoliberal”, o que se nota é que tudo é permitido, exceto tocar nos interesses da oligarquia financeira, que detém e manipula a dívida pública, cujo pagamento e rolagem é considerado o dever número um dos governantes. Não importa, como ocorreu recentemente em Alagoas, se os serviços públicos não funcionam, se os salários dos servidores atrasam até sete meses, se os policiais vão para as ruas vender suas armas sob a alegação de que não têm como sobreviver. Basta o governo não honrar qualquer vencimento da dívida pública, ainda que seja parcela pequena – e Alagoas cometeu o sacrilégio de deixar vencer cerca de R$ 100 milhões em títulos sem resgatá-los para vir imediatamente a intervenção do governo federal.

Assim, de um ponto de vista mais geral, a exigência mais premente para se recuperar a margem de ação do Estado e sua capacidade de enfrentamento da crise social é livrá-lo, ainda que de forma parcial e limitada, da prisão e da paralisia que lhe foram e lhe são impostos pelos interesses da oligarquia financeira. Realizar esta tarefa plenamente, hoje, é coisa quase impossível, dado o enorme poder detido atualmente pela oligarquia financeira nos terrenos mundial e nacional. O que não significa, porém, que nada pode ser feito e que devemos nos submeter passivamente aos ditames do capital financeiro neste quadro de grave crise social, como tem feito o governo FHC.

Seguindo esse raciocínio, o programa apresentado em Santiago, do Chile, no começo de maio passado, pelo professor Roberto Mangabeira Unger, num encontro de forças de esquerda denominado “4a. Reunião de Políticas Alternativas para a América Latina”, é absolutamente recuado e insatisfatório.

O programa não coloca a crise social no centro da discussão e não propõe medidas capazes de enfrentá-la. Não critica o programa de privatizações e nem propõe sua interrupção e, o que é pior, sugere usar os recursos das privatizações para abater a dívida pública (4). Coloca, assim, como fato consumado e irrefutável, que as privatizações devem ser feitas – com suas sequelas de desemprego, etc – para atender os interesses do capital financeiro, que é o verdadeiro dono da dívida pública.

Compare-se este programa de Santiago com o que foi apresentado pela coligação de centro-esquerda na França, e que venceu as últimas eleições, levando o socialista Lionel Jospin à condição de primeiro-ministro. A principal bandeira da coligação foi o compromisso dela criar, no prazo de um ano, cerca de 700 mil empregos, num momento em que a taxa de desemprego na França atinge 12,8% da força de trabalho. Isso tem enorme implicações na política interna e externa francesa, diante das condições impostas pelo Tratado de Maastricht para a criação da moeda européia única, o euro. A coligação do primeiro-ministro Lionel Jospin se encontra numa situação delicada, pois está espremida entre o tratado da União Européia, por um lado, e, por outro, a seus compromissos de campanha, em que se sobressai suas promessas relativas à criação de empregos, que foram decisivas para sua vitória, como concorda a maioria dos analistas. Como observou Ignacio Ramonet, do Le Monde Diplomatique, na França “os cidadãos não aceitam mais o princípio do duplo programa político: o primeiro (aliciante e público) para se eleger e o segundo (arrasador e secreto) para governar” (5).

Enquanto isso, o programa de Santiago praticamente desconhece o problema do desemprego no Brasil, quando os levantamentos de maior credibilidade indicam, atualmente, uma taxa de desemprego de 16% na Região Metropolitana de São Paulo (pesquisa Seade/Dieese) e de mais de 13% na Região Metropolitana de Belo Horizonte (pesquisa Fundação João Pinheiro/Dieese) (6), o que dá uma idéia da dimensão que o problema está atingindo em nosso país. Neste caso, o problema não é tanto de retórica, mas de posição muito recuada, em que fica difícil perceber diferenças relevantes com a política neoliberal atual.

* Economista e jornalista. Foi editor de economia dos semanários Opinião e Movimento e membro do Conselho Federal de Economia de 1987 a 1989.

Notas

(1) “Real já eliminou 755 mil empregos”, Folha de S. Paulo, 28-02-1997.
(2) “Privatizadas cortam 39,6 mil empregos”, Folha de S. Paulo, 03-03-1997.
(3) Folha de S. Paulo, 10-06-1997.
(4) “Esquerda quer capitalismo regulado”, Folha de S. Paulo, 11-05-1997.
(5) Ver o artigo do Le Monde Diplomatique, de Ignacio Ramonet, transcrito pela Folha de S. Paulo com o título “França, retorno à esquerda”, 08-06-1997.
(6) “Desemprego atinge 227 mil pessoas”, Estado de Minas, 20-05-1997.

EDIÇÃO 46, AGO/SET/OUT, 1997, PÁGINAS 16, 17, 18