No delta do Rio das Pérolas, em área de antiquíssima coleta de pérolas e de processamento de madeiras aromáticas, situa-se Hong Kong, chamada no Ocidente de “Pérola do Oriente” e que literalmente significa “baía cheirosa”. No dia 1 de julho passado, o mundo acompanhou embevecido o espetáculo de cores e fogos, de sons e danças que foi a volta de Hong Kong à China. O cenário era amplo e esplendoroso, a alegria intensa e incontida. A frustração também estava presente, cautelosamente encoberta, nos olhares dos que saíam.

O retorno de Hong Kong à China, depois de 156 anos em mãos inglesas, era um fato histórico. A análise mais detida de como a ilha passou à órbita inglesa e de como voltou à soberania chinesa, as eventuais consequências desse retorno, para a China e para o mundo, tudo realça a transcendência desse evento, visto por muitos como o mais importante do final do século XX.

É uma história reveladora. Mostra quão sórdidos foram os métodos usados pelo colonialismo inglês para ampliar seus domínios, aumentar seus lucros e impor a governos fracos tratados leoninos. Salienta como o mundo mudou no curso do tempo, como um resgate impensável a certa altura se transformou em algo exeqüível em outro momento, como um Estado prepotente perdeu força enquanto força ganhou uma Nação ultrajada que se apegou a um projeto nacional grandioso. Ensina, ainda, quão fundamental é a combinação da firmeza na defesa de uma meta inarredável com a audácia no emprego de variadas táticas correspondentes às situações existentes.

Uma história de opressão e pilhagem

A Inglaterra, pelo século XVIII, estendia seus tentáculos pelo mundo afora, à cata de mercado, em busca de matérias-primas, à procura de negócios. A Companhia das Índias Orientais recebeu do Governo inglês em 1773 a exclusividade na venda de ópio e, em 1793, a de fabricação do mesmo.
A comercialização desse produto no interior da Inglaterra era proibida e os infratores punidos severamente. A venda era porém liberada para os de fora. E foi assim que se intensificou o fornecimento de ópio à China.

Eram evidentes os prejuízos econômicos e morais do largo consumo de ópio pelos chineses. Um adágio da época advertia que “a continuar o ópio chegará o tempo em que na China não haverá um soldado capaz de enfrentar um inimigo, nem dinheiro para manter um exército.” O crescimento desmesurado do uso da droga levou em determinado instante o Governo imperial chinês a proibir o narcotráfico. Os ingleses não respeitaram a proibição. Os chineses a reiteraram. O desrespeito continuou. E no início do século XIX os narcotraficantes ingleses já contrabandeavam para a China mais de 4.000 caixas de ópio por ano, número que subiu para mais de 40.000 entre os anos de 1821 a 1851 (1). A partir de 1820 eles passaram a usar como seguro porto de seus desembarques na China as condições naturais excepcionais da baía de Hong Kong.

Em 1839 o Governo chinês da Dinastia Qing ordenou a queima do ópio encontrado em Guangzhou, onde se situa Hong Kong. O ópio queimado publicamente na praia de Humen consumiu 20.000 caixas.
A represália inglesa não se fez esperar – a guerra. Foi a Primeira Guerra do Ópio contra a China, desencadeada em 1840. Para a posteridade ficou esse registro indelével: a Inglaterra foi à guerra para manter o narcotráfico!

A superioridade bélica da então maior potência do mundo permitiu, em 1841, que tropas britânicas ocupassem parte da ilha de Hong Kong, de onde se estenderam, ameaçando inclusive Nanqui. A 24 de agosto de 1842 a dinastia Qing foi obrigada a assinar o Tratado de Nanquim, a partir do qual a Inglaterra apoderou-se da ilha de Hong Kong. Na história da China esse é considerado o “primeiro tratado desigual” que a China teve que assinar com a Inglaterra. O sentimento nacional foi atingido em cheio e o fato nunca foi esquecido. Publicação chinesa recente refere-se a esse tratado como “uma ferida no coração do povo chinês” (2).

Mas os imperialistas ingleses não ficaram por aí. Quatorze anos após, em 1856, organizaram uma força mista anglo-francesa e foram a uma Segunda Guerra do Ópio, com o objetivo de ampliar a área invadida à China. Em incursões bandidescas chegaram a Pequim, onde queimaram o majestoso Jardim Imperial Yuanmingyuan, numa demonstração impressionante de estupidez e barbarismo, após o que, de novo, forçou a Dinastia Qing a firmar o Acordo de Pequim – o “segundo tratado desigual” – passando a ocupar Kowloon do Sul, uma área de 9,71 quilômetros quadrados em terra firme, defronte de Hong Kong. Finalmente, aproveitando-se da difícil situação em que ficara a China após a guerra com o Japão (1894-1895), o imperialismo britânico voltou a impor à Dinastia Qing o “terceiro tratado desigual”, a 8 de junho de 1898, pelo qual “arrendava” por 99 anos, uma área do sul do Rio Shenzen, perto de Hong Kong, e mais 235 ilhotas, em um total de 961,5 quilômetros quadrados, que os ingleses passaram a chamar de Novos Territórios. A região de Hong Kong ocupada assim pelos ingleses englobava a ilha de Hong Kong, Kowloon do Sul e esses Novos Territórios, ao todo 1.092 quilômetros quadrados. Só o terceiro tratado, sobre os Novos Territórios, estabelecia prazo para o “arrendamento”, 99 anos. Os outros dois nem a prazos se referiam. A Inglaterra, como fizera em outras partes do mundo, usou dos métodos mais sórdidos para pilhar essa área.

Sem dúvida o ópio continuou sendo o principal produto comercializado após a ocupação. O volume do comércio naturalmente cresceu, sendo que, entre 1845 e 1849, três quartos de todo o ópio produzido na Índia foi vendido à China, através de Hong Kong (3). Mas, não só o narcotráfico era a atividade econômica suja ali praticada. Também fazia-se o tráfico de trabalhadores chineses. Camponeses pobres eram sequestrados no interior do país e transportados como escravos para outros países.
Calcula-se que, pelo porto de Hong Kong, entre 1851 e 1872, foram embarcados como escravos para diversas partes do mundo cerca de 320.000 chineses! (4). Sob o controle inglês Hong Kong começou vivendo sob o signo do narcotráfico e do tráfico de escravos.

Uma resistência prolongada e hábil

A atitude do povo chinês e dos governos da China que se seguiram aos “três tratados desiguais” tiveram uma coerência básica importante: nunca reconheceram legitimidade a nenhum dos três tratados, jamais deixaram de prognosticar o retorno da integridade territorial chinesa e não esconderam do povo a humilhação com que viam a ocupação de parte de seu território. Os escritos chineses sobre Hong Kong são carregados de ressentimento e de denúncia da infâmia de que a China foi e era vítima.
Essa postura foi a base da resistência que se prolongou durante 156 anos desde o primeiro tratado, ou por 99 anos, contando do terceiro. Mudaram muito, entretanto, as formas dessa resistência.

É que o mundo mudou substancialmente nesse período, sobretudo durante o século XX. O colonialismo foi rudemente golpeado pelos povos; um campo social novo surgiu, o socialista; o capitalismo transmuda-se em imperialismo e, imerso em viscerais contradições, promove duas guerras mundiais; guerra prolongada, civil e de libertação, combinadas, fizeram surgir a Nova China, soberana e socialista; findou-se o modelo soviético de socialismo e desabrocharam formas socialistas não autárquicas.

No desdobramento de todas essas drásticas mudanças, a Inglaterra perdeu a hegemonia do campo imperialista e o povo chinês, depois de fundar uma República no início do século e de travar guerra contra forças reacionárias e inimigo externo terminou organizando uma República Popular e caminhando, entre altos e baixos, para o socialismo. Em síntese, a Inglaterra entrou em declínio, embora mantendo grande poder ofensivo, enquanto a China percorreu o caminho de Nação fraca e aviltada a Nação forte e soberana, poderosa pela riqueza populacional incomparável que tem, e respeitada pela força armada agigantada de que dispõe.

A resistência prolongada em defesa da região de Hong Kong variou muito, notadamente de acordo com a situação da Nação chinesa. Quando esta era fraca, pleiteava, conseguia pequenos sucessos e a ocupação continuava. Quando ficou forte, consultou suas conveniências, estabeleceu metas, fixou prazos, negociou com flexibilidade e foi para o resgate final.

As negociações realizadas em posição de fraqueza tiveram resultados pífios ou diminutos. Depois da Primeira Guerra Mundial, na Conferência de Paris, em 1919, a parte chinesa propôs a devolução da região de Hong Kong. A Inglaterra e a França alegaram que este assunto não fazia parte da Conferência. Em 1931 uma área que não constava dos Novos Territórios, Weihaiwei, e que tinha sido anexada à força pela Inglaterra, foi devolvida. Em 1943 a extraterritorialidade de colonialista, que proibia tribunal chinês julgar estrangeiros, foi abolida. E em 1941, quando começara a Guerra do Pacífico, novas gestões foram feitas pela China junto ao governo britânico para a devolução de Hong Kong. O resultado: nenhum.

As negociações conduzidas por uma China forte começaram quando surgiu a República Popular da China, em 1949. A partir de então o novo governo chinês fez pública sua posição básica sobre a matéria, salientando dois pontos: “Hong Kong é território chinês”; e “a China não reconhece os três tratados desiguais” (5).

Entretanto a República Popular não se propôs a recuperar logo Hong Kong. Ao contrário, no início do novo regime, Mao Tsetung, falando a uma delegação da União Soviética disse que “não tinha razão apressar a solução dos problemas de Hong Kong e Macau”. E acrescentou: “Pelo contrário, seria mais vantajoso aproveitarmos os atuais estatutos desses dois locais, especialmente o de Hong Kong, para desenvolver nossas relações com ultramar, a exportação e a importação” (6). Zhou Enlai, no mesmo período, informou: “Antes da libertação da China, nós decidimos não libertar imediatamente Hong Kong. Isso não significa fraqueza, pelo contrário… Nós estamos construindo o socialismo, e Hong Kong serve de base para contatos econômicos com o exterior, atrair investimentos e ganhar divisas” (7).

Assim é que, em 1963, o governo chinês anunciou publicamente sua posição sobre Hong Kong em três pontos: os dois acima vistos e mais um terceiro: “a situação de Hong Kong será resolvida em momento adequado, através de negociações pacíficas” (8).

Desenvolve-se dessa forma uma política chamada de “planejar por longo tempo e aproveitar plenamente”, pela qual o relacionamento com a região de Hong Kong aprofundou-se nos sentidos econômico e cultural, enquanto amadurecia o momento oportuno. A China resolveu, nesse período, tornar reconhecida internacionalmente sua recusa em tratar Hong Kong e Macau como colônias. Colônias, sustentaram os chineses na ONU, em 1972, são estados que perderam soberania devido ao domínio de países estrangeiros. Hong Kong e Macau são partes inalienáveis do território chinês, ocupadas por países estrangeiros, mas não são colônias. São problemas a serem resolvidos “na esfera da soberania chinesa”. E em novembro de 1972, a 27ª Sessão da Assembléia Geral da ONU votou, por ampla maioria, a retirada de Hong Kong e Macau da relação das colônias existentes. A China começava a ganhar respaldo internacional efetivo.

Na reta final dos quinze anos

Normalmente os contratos imobiliários ou de hipoteca em Hong Kong são assinados por 15 anos. O tratado de arrendamento dos Novos Territórios, com duração prevista de 99 anos, terminaria em 1997. Então, desde o início de 1982, quinze anos antes, nenhum contrato desse tipo foi mais assinado. Os ingleses alarmaram-se e divulgaram que “em Hong Kong surgiu uma onda de pânico”. O ex-Primeiro Ministro inglês, Edward Heath, ainda no início de 1982, foi a Pequim e chegou a um acordo com Deng Xiaoping: era chegado o momento de resolver o problema de Hong Kong. O governo chinês já houvera dito ser necessário “recuperar não somente os Novos Territórios (cujo prazo se esgotava em 1997), mas sim toda a região de Hong Kong que inclui a ilha de Hong Kong, Kowloon e os Novos Territórios” a despeito dos tratados de Hong Kong e Kowloon não se referirem a prazo (9).

Ainda em 1982, em setembro, a Primeira Ministra inglesa Margareth Thatcher foi a Pequim para a primeira conversação de cúpula com o governo chinês sobre Hong Kong. Teve, a 24 de setembro de 1982, audiência decisiva com Deng Xiaoping.

Os ingleses haviam elaborado uma proposição sobre Hong Kong, em geral expressa por Margareth Thatcher. A idéia era: “na lei internacional continuam válidos os três tratados em relação a Hong Kong”, estes podem ser revisados de comum acordo, não revogados por uma das partes; a Grã Bretanha admitiria rever a questão da soberania sobre Hong Kong se o governo chinês aceitasse uma fórmula para a administração da região; em suma, faria a “troca da soberania pela administração”; poder-se-ia analisar novo acordo por 50 anos. A Dama de Ferro ouviu de Deng Xiaoping respostas cabais a essas posições.

Sobre a questão da soberania disse Deng: “Para falar com franqueza, o assunto da soberania não comporta discussões de nenhuma espécie. As condições já estão maduras e é preciso dizer-lhes em termos explícitos: a China recuperará Hong Kong em 1997” (10). A decisão era final e a Dama de Ferro teve que ouvir ainda: “Se ao cabo dos próximos 15 anos não recuperarmos Hong Kong (…) o Governo chinês, seja qual for, deveria renunciar ao poder e desaparecer automaticamente do cenário político sem mais alternativa” (10). Deng comunicou à primeira-ministra que, “não hoje, mas no mais tardar dentro de um ou dois anos, a China vai declarar publicamente sua decisão de recuperar Hong Kong”. E não perdeu a oportunidade para uma sutil ironia: “(…) a decisão tomada pela China também favorecerá à Inglaterra, pois esta terminará assim em definitivo seu período de dominação colonial, o que lhe valerá comentários positivos no mundo” (10).

Margareth Thatcher sustentou que a eventual declaração de que a China em 1997 iria recuperar Hong Kong “traria conseqüências catastróficas” e provocaria o “surgimento de desordens”, ao que Deng Xiaoping pacientemente respondeu: “Quero manifestar à senhora, D. Thatcher, que, ao tomar essa decisão, o governo chinês considerou todas as situações que possam se apresentar (…) Que fazer se nos quinze anos da transição ocorrem em Hong Kong graves distúrbios? Em tal caso, o Governo chinês será obrigado a considerar de novo em que momento e de que forma se fará a recuperação” (10). Ficava claro que os 15 anos poderiam ser antecipados e que a forma pacífica poderia deixar de o ser. A primeira-ministra não pode exibir sua catadura de Dama de Ferro. Deng reafirmou sua posição de “um país, dois sistemas”, a prevalecer por um tempo determinado, disse que a China ou Inglaterra “era muito fácil criar uma situação de caos” em Hong Kong, que julgava que isto não deveria acontecer e propôs a abertura de negociações formais sobre a transição dos 15 anos. Aos chineses o encontro pareceu proveitoso. Outra foi a opinião de Margareth Thatcher.

Em 24 de agosto de 1942 a Inglaterra apoderou-se de Hong Kong que começou a viver sob o signo do narcotráfico e do tráfico de escravos

Recém-desembarcada em Hong Kong, a primeira-ministra inglesa ressaltou as divergências havidas na conversa com Deng Xiaoping. Reafirmou o “fundamento jurídico” dos três tratados existentes entre a Grã Bretanha e a China e a impossibilidade de sua revogação unilateral. Disse que a Grã Bretanha sempre cumpriu seus tratados e que a discussão sobre Hong Kong deveria partir de que são “válidos” e “devem ser cumpridos” os três tratados, podendo, de comum acordo, serem alterados. E acrescentou que assumiria “a responsabilidade pelos habitantes de Hong Kong”. A resposta chinesa veio logo em seguida, em nota no “Diário do Povo”, a 1 de outubro. Dizia que ”o povo chinês não podia aceitar, em absoluto, as afirmações da Sra. Tatcher quanto à validade dos três tratados”. E que “só o Governo da República Popular da China tem o direito de assumir responsabilidade pelos residentes chineses de Hong Kong”. E as negociações, que mal tinham começado, foram paralisadas.

A China voltou-se então à discussão do mérito de sua proposta com os habitantes de Hong Kong. Em novembro do mesmo ano, divulgou a idéia de “um país, dois sistemas”, voltando ao assunto em outras oportunidades, o que levou a proposta sobre o futuro de Hong Kong a ser popularmente discutido na região.

Oito meses passaram-se da conversa Deng-Thatcher e, oficialmente, nada andara. Uma troca de cartas entre os dois governos levou a um acerto inicial sobre o reinício das negociações. E, antes do reinício, em junho de 1983, Deng Xiaoping, em conversa com visitantes de Hong Kong e Macau informou que “se as negociações sino-britânicas não chegarem a um acordo até setembro de 1984, a China anunciará publicamente o seu próprio esquema de solução” (13). A essa posição radicalizante, Deng acrescentou: “é necessário deixar os ingleses sairem da situação embaraçosa”, e pautar, em primeiro lugar, o que será feito com Hong Kong depois de 1997. A segunda etapa das negociações começaram em Pequim logo depois, em 12 de julho de 1983.

Foi longa e dificultosa essa segunda etapa. Do seu início, julho de 1983, ao seu final, setembro de 1984, as duas partes fizeram 22 rodadas de conversação. As quatro primeiras foram frustrantes. A parte britânica não tomava conhecimento do que a parte chinesa dizia sobre o futuro de Hong Kong. Aceitava a tese da soberania chinesa sobre a região mas insistia na “troca de soberania por administração, ela “cederia” a soberania mas administraria a região. Em setembro de 1983 as negociações entraram em novo impasse.

Nesse momento crítico visita a China de novo o ex-Primeiro Ministro da Inglaterra, Edward Heath, com quem Deng Xiaoping tem outra conversa. Deng exortou a parte inglesa a abandonar a proposta de “troca de soberania por administração”, dizendo ser isso necessário para se evitar que a parte chinesa, dentro de um ano – outubro de 1984 – divulgasse sua solução unilateral para o caso. Na quinta rodada a parte britânica não mais defendeu a referida “troca de soberania por administração”.

Daí por diante, até setembro de 1984, as conversações ganharam ritmo e houve avanços. Os maiores problemas ligaram-se à permanência de tropas chinesas em Hong Kong e à constituição de um órgão conjunto para funcionar durante a transição, pontos com os quais a parte inglesa concordou depois de muita delonga. A 26 de setembro de 1984 ficou pronta a “Declaração Conjunta Sino-Britânica sobre a Questão de Hong Kong”. Margareth Thatcher foi assiná-lo oficialmente em Pequim em 19 de dezembro de 1984.

Depois de 1989, novos embaraços surgiram, principalmente com pretensas iniciativas inglesas de “acelerar a democratização” em Hong Kong, mas com o objetivo real de continuar mantendo sua influência na região. A posição firme dos chineses não permitiu desvio da rota traçada e o retorno se deu na data prevista.

A política do “um país, dois sistemas”

A fórmula que viabilizou o retorno pacífico de Hong Kong à China, o núcleo da “declaração conjunta”, desdobrada depois em “12 políticas fundamentais” e traduzida na “Lei Básica da Região Autônoma Especial de Hong Kong”, aprovada em 4 de abril de 1990, pela Assembléia Popular Nacional da China, foi a de “um país, dois sistemas”. Essa fórmula foi cunhada em 1979 por Deng Xiaoping.
A idéia engenhosa apresentada e defendida por Deng, guarda sintonia com formulações anteriores feitas por Mao Tsetung e Zhou Enlai logo depois da proclamação da República Popular em 1949. Mao, na conversa já citada com uma delegação soviética, referiu-se às diferenças entre “os assuntos do continente” e os “assuntos mais complicados de Hong Kong e Macau”, opinando pelas vantagens de se aproveitar “os atuais estatutos desses dois locais”. E Zhou, em 1972, falando a visitantes ingleses, externou: “A política sobre Hong Kong vai ser diferente da do interior. Lá prevalecerá o capitalismo” (11).

“Um país, dois sistemas” simplificadamente significa que “na República Popular da China, a parte continental pratica o sistema socialista, enquanto que Hong Kong, Macau e Taiwan praticam o sistema capitalista” (12). Essa fórmula prevalecerá, para o caso de Hong Kong, por 50 anos, segundo opinião a que chegou Deng Xiaoping em reunião com representantes de Hong Kong. A idéia está detalhada nas “12 políticas fundamentais” e na Lei Básica que ressaltam, entre outros, os seguintes pontos: a China voltou a assumir a soberania sobre Hong Kong; de acordo com a Constituição chinesa, fica criada a Região Autônoma Especial de Hong Kong, RAEHK; a RAEHK gozará de alto grau de autonomia, exceto nas relações externas e na defesa; a RAEHK terá poderes executivo, legislativo e judiciário independentes; os direitos e as liberdades atuais serão protegidos por lei; o status de centro financeiro internacional será mantido; o dólar de Hong Kong continuará sua livre conversibilidade; a ordem pública será de responsabilidade local; a RAEHK deverá produzir leis que proíbam qualquer ato de traição à Pátria, de secessão, de subversão contra o Governo Popular Central, assim como leis que proíbam organizações estrangeiras de exercerem atividade política na RAEHK; as forças militares chinesas, sediadas em Hong Kong, responsáveis pela defesa, não podem interferir nos assuntos locais; prevalecem o calendário, o Hino Nacional, a Bandeira e o Dia Nacional da República Popular da China; o Governo Popular Central não arrecadará impostos; e, finalmente, em caso de guerra, ou de distúrbios que ponham em perigo a unidade ou segurança nacionais, o Governo Popular Central pode, por decreto, ordenar a aplicação das leis nacionais na região.

O retorno de Hong Kong: lições e consequências

As lutas de libertação nacional que vieram sobretudo desde o século XIX e atravessaram todo o século XX foram corrigindo, ao preço de muito sangue, as graves distorções deixadas pelas antigas expansões coloniais. A situação de Hong Kong era um desses problemas herdados do passado, especificamente complicado devido à pujança da área em questão. Sua solução, através de negociações demoradas, é um fato novo ocorrido entre países tensionados por questões de soberania. Deng Xiaoping realça esse aspecto do caso de Hong Kong, o de ter sido um caminho novo trilhado para resolver uma pendência antiga e crucial. Diz ele: “Esta solução (…) oferece a todos os países do mundo um exemplo de como resolver os problemas legados pela história. Ao colocar a idéia de “um país, dois sistemas”, pensamos também nos métodos que devem ser empregados na solução de litígios internacionais (…) de difícil solução. Penso que com este método poderiam ser resolvidos alguns desses litígios. Devemos encontrar uma fórmula aceitável para todas as partes interessadas (…)” (14).

A China é o desmascaramento da falsidade do discurso neoliberal; tem tudo que ele diz que é anacrônico e não funciona. Lá funciona, e bem

A incorporação de Hong Kong à China traz também inequívocas conseqüências no jogo internacional de forças. A China é a maior potência em ascensão no mundo e Hong Kong ocupou, em 1994, o primeiro lugar na lista das “Dez Maiores Cidades Comerciais do Mundo” (Revista Fortuna). Semelhante fortalecimento imediato e em potencial da China é um fato de alcance ainda imprevisível; inclusive porque a China é uma Nação socialista.

O colapso do leste europeu socialista mostrou os limites de um determinado modelo socialista, que poderíamos chamar, o soviético. Seu traço característico foi a socialização de todos os meios de produção, dos grandes aos pequenos. Isto foi a base do emperramento da administração em geral, especialmente da atividade econômica, que perdia dinamismo pelo gigantismo burocrático da estrutura que a comandava. O enfrentamento da situação com espírito conservador e rotineiro, por um setor dirigente que perdeu a têmpera revolucionária e transformadora, que começara a desfrutar de privilégios, a repetir dogmaticamente frases fora do tempo e a reprimir o povo, particularmente sua atividade criadora, criou o cenário onde se deu o colapso.

O sistema capitalista cuidou de apresentar ao mundo o colapso do modelo soviético de socialismo, que era um tipo determinado de modelo e que se deu a certa altura de seu desenvolvimento, como se fosse o fim de todo o socialismo. Alardeou que estaria demonstrado as excelências do capitalismo e de sua linha atual, o neoliberalismo. Qualquer coisa que se relacionasse com planejamento, Estado na economia, estatais, preocupação social, defesa nacional e soberania era estigmatizado como anacrônico. E mais “jurássica”, qualquer coisa seria se tivesse pelo meio partido comunista, marxismo, democracia popular, foice e martelo, centralismo democrático, socialismo enfim.

A China é o desmascaramento contundente da falsidade desse pueril discurso neoliberal. Tem tudo o que o neoliberalismo oficial diz que é anacrônico e não funciona. E lá funciona, e bem. A economia cresce com as taxas mais altas do planeta há 16 anos consecutivos, com partido comunista na direção, socialismo em construção, metas e planos, perspectiva social, Estado na economia, estatais fortes, marxismo e cor vermelha.

Antes do retorno de Hong Kong especialistas previam que, na marcha atual das coisas, a China seria a maior potência econômica do planeta entre os anos de 2015 e 2025. O resgate de Hong Kong, o maior porto de containers do mundo, acentua e apressa esse prognóstico. Inclusive porque, pelo caminho por onde retornou Hong Kong, Macau retornará breve e intenso trabalho é feito para o regresso de Taiwan.

A perspectiva de ter na linha de frente da economia mundial um país que empreende um caminho próprio e novo de construção socialista, dirigido por um partido comunista, aparece, no mundo do capital, como um espectro que volta a “rondar a Europa”. O sistema capitalista-imperialista vê-se objetivamente ultrapassado nessa corrida ao pódio da produção e do desenvolvimento, seu discurso neoliberal naufraga no mar da vida, especialmente quando o caminho socialista com peculiaridades nacionais, vitorioso na China, vai rompendo barreiras e, também com outras peculiaridades, se desenvolvendo no Vietnã, em Cuba, no Laos e na Coréia, e vai sendo também traçado, estratégica e taticamente, por uma série de partidos comunistas fora do poder, discípulos atentos da história, como o nosso PC do Brasil.

O imperialismo torna-se frenético quando não está em primeiro lugar. De maneira particular os EEUU, que se consideram predestinados ao comando do mundo, e assentam-se numa arrogância granítica, sentem-se traídos por qualquer tendência histórica que lhes retire o título de primeiro e único. E reagem. Como começam a fazer.

Acaba de ser lançado nos EEUU o livro O iminente conflito com a China, de Richard Bernstein e Ross Munro. O livro foi comentado na revista Beijing Informa de julho passado (15).

A análise da revista chinesa mostra o facciosismo da publicação, de onde não escapa nem um Henry Kissinger, visto como “agente chinês”, ou um William Perry, ex-secretário de Defesa do primeiro governo Clinton, que teria facilitado o fortalecimento do Exército chinês. O comentarista documenta que dita publicação aparece em contexto abrasado por denúncias contra a China, em que “tudo que a China faz é criticado”. Constata existir em setores estadunidenses uma espécie de “síndrome da falta de inimigos, produto da mentalidade da guerra fria”. E que esses setores tratam de “inventar” esse inimigo: “primeiro foi o Japão, depois o Iraque. Agora é a China”.

Feitos esses registros o articulista de Beijing Informa examina o que pode ocorrer. Diz: “De um ponto de vista sociológico eles (os setores referidos) não estão preparados para a emergência de outra potência”. E adiante: “os elementos antichineses poderão criar dificuldades depois da recuperação de Hing Kong, com o fim de obrigar a administração Clinton a intervir nos assuntos de Hong Kong”. Pensa o comentarista que Clinton pode conter essa tendência mas, “depois da volta de Hong Kong, não se sabe até onde irá.” Dependendo do cenário, haveria “um conflito político atrás de outro”, e a “possibilidade de originar-se uma nova guerra-fria”.

Por último o comentário adverte que “se essas pessoas (antichinesas) chegarem ao governo (dos EEUU) colocar-se-á uma confrontação em escala plena entre a China e os EEUU”. E tranquiliza: “Felizmente esse perigo é uma possibilidade remota, pelo menos por agora”.

* Membro do Comitê Central do PC do Brasil e deputado federal.

Notas

(1) Salvo indicação em contrário, no que se segue, as datas, os indicadores numéricos, os fatos básicos foram retirados de quatro livros (estilo livro de bolso), divulgados em 1997 pela República Popular da China sobre Hong Kong: A origem e solução da questão de Hong Kong, A economia de Hong Kong respaldada no continente da Pátria, Quem criou a prosperidade de Hong Kong e A lei básica – O arquétipo da Região Administrativa Especial de Hong Kong.
(2) A origem e a solução da questão de Hong Kong, p. 13.
(3) Beijing Informa, n. 25, 24 de junho de 1997, p. 19.
(4) Idem.
(5) A origem e a solução da questão de Hong Kong, p. 20.
(6) Revista da Observação, maio de 1997, trecho traduzido do chinês por diplomatas da Embaixada da China no Brasil.
(7) Idem.
(8) A origem e a solução da questão de Hong Kong, p. 21 e Hong Kong, documento distribuído a 1º de julho de 1997, na Câmara dos Deputados, pela Embaixada da China no Brasil, p. 3.
(9) A origem e a solução da questão de Hong Kong, p. 29.
(10) Transcrição da conversa de Deng Xiaoping com Margareth Thatcher, in tomo 3 dos Textos Escolhidos de Deng Xiaoping, Edição em Línguas Estrangeiras, Pequim, p. 18.
(11) Idem nota n. 6.
(12) Beijing Informa, n. 25, 24 de junho de 1997, p. 14.
(13) A origem e a solução da questão de Hong Kong, p. 50.
(14) Tomo 3 dos Textos Escolhidos de Deng Xiaoping, Edições em Línguas Estrangeiras, Pequim, p. 77.
(15) “Perigos do neomacarthismo”, Beijing Informa, 27, oito de julho de 1997.

EDIÇÃO 46, AGO/SET/OUT, 1997, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37