A História não chegou ao fim
O escritor e jornalista francês Henri Alleg é um veterano comunista. Foi diretor do diário argelino Alger Republicain e secretário de redação de L'Humanité, órgão central do Partido Comunista Francês; publicou os livros La Question (editado no Brasil sob o título A Tortura), SOS América, Réquiem por Tio Sam, e O Século do Dragão (traduzido também em Portugal). Preso durante a guerra da Argélia, foi torturado pelo exército francês e seu depoimento, reunido em La Question, motivou um manifesto de solidariedade assinado por Jean Paul Sartre, François Mauriac, Roger Martin du Gard e Gabriel Mareei.
Foi um sucesso mundial. Seu último livro, Le Grande Bond em Arrière (O Grande Salto para Trás) é uma reportagem sobre a Rússia devastada pela revolução. Hoje, Alleg é uma das personalidades mais destacadas da corrente que vê com apreensão os rumos que o PCF vem tomando atualmente. Você acaba de publicar um livro que intitulou O grande pulo para trás (Le grand bond en arrière) no qual são abordados alguns problemas da Rússia atual sob uma ótica bem diferente daquela que existe habitualmente no Ocidente. O que aconteceu com os milhões de comunistas que eram membros do Partido Comunista da União Soviética (PCUS)? Em que os comunistas de hoje diferem dos de outrora? Qual é a estratégia imediata do Partido Comunista da Rússia?
Henri Alleg: Uma das minhas maiores preocupações, ao escrever este livro, era de mostrar que, ao contrário da idéia comum cultivada hoje pela maior parte da mídia, não chegamos "ao final da história" com a queda da URSS e nem o sistema capitalista é eterno, apesar de sua aparente solidez. A despeito da bancarrota da União Soviética (cujas causas, conseqüências e lições ainda não foram estudadas), a intensa atividade dos comunistas, o lugar que ocupam na vida política do país (com mais de 40% de votos nas eleições presidenciais e uma esmagadora maioria de deputados no Duma) seriam as provas suficientes, se fosse preciso provar que "o comunismo não morreu". Nem na Rússia, nem alhures.
No entanto, é preciso assinalar a diminuição gritante do número de filiados das organizações comunistas russas (como você sabe, há vários partidos) em relação ao efetivo do antigo PCUS. Só na Rússia havia 10 milhões de filiados. Hoje, só o partido mais importante, o Partido Comunista da Federação da Rússia (PCFR), que representa mais de quatro quintos do conjunto de militantes, conta com uns 500 mil membros. Portanto, ele só conta com um filiado em 20. Isso não significa que os demais 19 não fossem verdadeiros militantes, mas, de qualquer forma, indica que era grande a proporção dos oportunistas e carreiristas. Hoje, o PCFR se esforça em reagrupar os verdadeiros comunistas e reconstituir um partido sólido e renovado que levará em conta as lições do passado. Ele luta para impedir que Ieltsin e seus partidários liquidem com todos os valores conquistados pelo socialismo, ao mesmo tempo que tenta juntar as Repúblicas que constituem a União Soviética e criar uma ampla frente patriótica contra o imperialismo estrangeiro que, com a cumplicidade de diversas máfias internas, saqueia o país e tenta colocá-lo sob sua tutela econômica e política.
Duas observações podem ajudar a dar idéia da extensão da catástrofe que já se abate sobre a Rússia: a produção teve uma queda de 40/50 e até 70% nos setores-chave da indústria em relação a 1990, e a expectativa de vida diminuiu em seis anos entre 1989 e 1996, passando de 64 para 58 anos entre os homens. Sem falar dos outros desastres – que eu cito no livro – da falência dos serviços de saúde e educação que eram o orgulho dos soviéticos, do aumento do número de suicídios, do aumento da prostituição e da droga, flagelos quase inexistentes na antiga URSS, do crescente aumento da miséria e da criminalidade etc.
Como reage o povo russo às humilhações impostas ao país pelo imperialismo americano? Como ele reage ao cerco da OTAN? Ainda existe aquele vivo sentimento de dignidade nacional?
H: Sim, e está bem patente. A ponto de Ieltsin e aqueles que governam com ele, apesar de terem demonstrado sobejamente seu servilismo a Washington, para não correrem o risco de se isolarem completamente do povo, virem-se obrigados a renegar – pelo menos publicamente – a política americana no que se refere ao cerco da OTAN até as fronteiras da Rússia. Com exceção de um grupo de pessoas dispostas a tudo, inclusive à traição de seu país, se puderem tirar vantagem, pode-se dizer que todo o povo russo considera a atitude política e militar americana um insulto e uma ameaça direta à sua segurança e independência.
A visita do presidente da República Popular da China a Moscou pode ser interpretada como um passo em direção a uma atitude comum de resistência dos dois Estados às pretensões de hegemonia mundial de Washington?
H: É difícil prever de que forma irá se efetuar essa aproximação sino-russa. Mas é evidente que a China e a Rússia, qualquer que seja o estilo de seu sistema social atual e futuro, têm o mesmo interesse em enfrentar as ambições de dominação planetária que Washington não esconde mais. O maior questionamento surge quando se verifica que na liderança da Rússia as personagens temem muito mais o seu povo e um eventual retorno ao socialismo do que a ameaça que representa o imperialismo. Se fosse preciso, essas pessoas não estariam prontas a trair os interesses nacionais de seu próprio país para se mancomunarem abertamente com os EUA? Você voltou otimista da sua visita à China? Como foi recebido o seu livro Le siècle du Dragon (O século do Dragão)?
H: Permita-me dar uma resposta evasiva. Não voltei com idéias tão precisas quanto as veiculadas pela maior parte da mídia a respeito da China, ou seja, que não dá para negar os seus incríveis progressos, desfrutados por uma minoria (o que não é verdade) e que, inevitavelmente, a China passará por uma grave crise que questionará todo o seu sistema ou então que ela se transformará aos poucos em um país capitalista. O que eu acho é que, se é verdade que a China ainda tem de resolver grandes problemas, e seus dirigentes têm consciência dos graves perigos que a ameaçam, ela é capaz também de enfrentar e de se manter na via social que seu povo escolheu há quase cinqüenta anos. Eu também acho que é o que devem lhe desejar todos os homens progressistas do mundo. É nesse sentido que sou otimista. Foi o que quis dizer em O século do Dragão. Aqueles que fizeram a gentileza de o ler concordaram com essa maneira de pensar. Pude constatar isso principalmente em Portugal, onde o livro foi traduzido e teve uma recepção particularmente calorosa. Em diversos debates nos quais participei, pude verificar o grande interesse (e esperança também) que despertava a experiência chinesa.
Os Estados Unidos persistem em levar ainda mais longe a "estratégia da globalização". Quais seriam as conseqüências de uma tal orientação para a humanidade toda e mais particularmente para Terceiro Mundo?
H: Acho que basta examinar os sinistros resultados obtidos por essa orientação para perceber o alcance do desastre a que pode chegar. Permita-me citar a esse respeito o relatório anual do "Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas" (PNUD), publicado em junho passado. Os números encontrados constitui uma condenação implacável da política imposta pelos EUA: "20% dos seres mais pobres d mundo" – diz o texto – "tiveram que dividir 1,1% da renda mundial em 1994, contra os 2,3 % em 1960". O que vale dizer que o distanciamento entre pobres e ricos aumentou ainda mais, passando de 1 x 31 em 1960, para 1 x 78 em 1994! Segundo esse relatório, 1,3 bilhões vivem na "pobreza absoluta", ou seja, com menos de um dólar por dia. E onde estão esses pobres? Ninguém pode se surpreender ao ler que, basicamente, eles vivem na: zonas "tradicionais" de pobreza isto é, na África, na América Latina e na Ásia. Mas a África Ásia ou América não são as únicas. No Leste europeu e na ex-URSS, em seis anos – de 1988 a 1994 – o aumento da pobreza (uma alta recorde de 700%!) constituiu "um fato sem precedentes na história da humanidade" constata o PNUD. Um terço da população desses países – 120 milhões de habitantes – vive na miséria. Ao mesmo tempo, os relatores indicam que a supressão da miséria não é fruto de mera utopia. Bastariam, segundo apontam, 100 bilhões de dólares (ou seja 10% dos gastos armamentistas mundiais) para acabar com a miséria da Terra. O "pensamento único" que é denunciado hoje, na verdade, não passa de uma outra maneira de designar essa ideologia de dominação total, política, econômica, militar e cultural que a América acha que pode impor ao universo.
Você foi o diretor do Argel republicano (Argel républicain), um jornal que era a expressão de um jornalista revolucionário, algo muito raro hoje. Conhecendo bem a Argélia, como vê a atual crise? Para poder entendê-la, o que há por trás dos sangrentos episódios que dilaceram o povo que lutou com tanto heroísmo contra o colonialismo francês?
H: É uma tragédia para todos os amigos do povo argelino ver a situação em que está se debatendo. Eu só queria dizer, sem entrar no mérito das questões políticas internas do país, onde se desencadeia uma perversão integralista em primeiro lugar, que não dá para compreender isoladamente do estado geral da Argélia pós-independência. Apesar de suas riquezas, da força do movimento popular de liberação, a Argélia ainda não conseguiu se libertar da condição colonial e neocolonial. Como tantos outros países do Terceiro Mundo, ela está subordinada à ditadura do FMI e do Banco Mundial, sendo dizimada pelos mesmos males: pilhagem de suas riquezas pelo estrangeiro, miséria, desemprego e aumento da corrupção, principalmente entre aqueles que detêm postos-chave. Em tal cenário de desesperança para as massas populares, o terreno é fértil para o desenvolvimento de demagogias fascistas e de sangrentos desvios integralistas e obscurantistas, revestidos de uma forma tribal, nacionalista, racista ou de fanatismo religioso.
Você escreveu dois livros sobre os Estados Unidos: SOS América! e Réquiem para o Tio Sam (SOS America! e Requiem pour l’Oncle Sam). Você continua achando que os Estados Unidos não saíram de uma crise estrutural profunda? O atual reerguimento de sua economia seria puramente conjuntural?
H: Inicialmente, poderia-se fazer a pergunta: reerguimento econômico a favor de quem? Para o benefício das multinacionais; para Wall Street, para os já bilionários? No momento, a resposta é sim. Mas quando se trata da "outra América", a dos pobres, brancos e negros, a resposta é não. Mesmo a baixa dos números do desemprego – como se proclama – é questionável, pois sabe-se que são eliminados das estatísticas oficiais os há muito tempo desempregados, considerados "trabalhadores desanimados" (discouraged workers). Sabe-se também que as "novas" vagas de emprego são para cargos desqualificados e muito mal remunerados, aparentemente para substituir os de nível mais alto, que foram eliminados e que eram relativamente bem pagos; os números indicam um rebaixamento constante do nível de vida das camadas sociais menos favorecidas e de uma parcela cada vez maior das camadas médias. Acho que as contradições fundamentais que minam o sistema americano continuam e continuarão a ocorrer, mesmo havendo, em períodos mais ou menos longos, "remissões" conjunturais que não devem iludir. Não, o capitalismo americano não está "curado" de seus males.
O que você acha do bloqueio contra Cuba e de leis do tipo Helms-Burton e Amato?
H: Todos sabem, com exceção dos mais reles capachos do imperialismo, que os governos do mundo todo – inclusive aqueles que se alinharam com Washington em outras circunstâncias – condenam a atitude criminosa dos EUA em relação a Cuba. Mesmo sancionadas pelo Senado, essas famosas "leis" aproximam-se muito mais dos métodos dignos de gângsteres que de um Estado civilizado, o qual, além do mais, arvora-se o título de defensor intransigente da moral universal e dos Direitos Humanos.
O que significa para você a revolução cubana?
H: O heróico povo de Cuba representa atualmente a honra e a esperança de todos aqueles que se recusam a abaixar a cabeça diante da arrogância, do dinheiro e da prepotência. O dever de todo antiimperialista é ficar ao lado da revolução cubana, de defendê-la com todas as suas forças, como a seu próprio direito à vida e à liberdade.
Há quase dois séculos, na época em que, enfrentando a todos os seus inimigos, a revolução francesa derrubava reis e feudos, simbolizando o futuro, Thomas Jefferson disse: "Para todos os homens, sua primeira pátria é seu país, a segunda é a França". Com o mesmo alento, acho que se poderia dizer que todo homem digno desse nome, todo verdadeiro revolucionário hoje também tem uma segunda pátria, e ela se chama Cuba.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista.
EDIÇÃO 47, NOV/DEZ/JAN, 1997-1998, PÁGINAS 34, 35, 36, 37