O que se entende por diretrizes e bases da educação? Por que se diz que o Brasil não chegou a edificar um sistema nacional de ensino? Quantas LDB's (Leis de Diretrizes e Bases) nosso país já teve? Quais as concepções de educação, escola, homem e sociedade dos diferentes projetos que tramitam na Câmara e no Senado, durante o processo de elaboração e aprovação da atual Lei da Educação? Quais as perspectivas para a educação nacional, no atual quadro de ofensiva neoliberal?
Essas e outras questões são tratadas no livro de Dermeval Saviani, A nova lei da educação – LDB: trajetória, limites e perspectivas, Campinas, Editora Autores Associados, 1997, que já se encontra na 2ª edição.

Pelas informações que fornece e, sobretudo, pelas análises e reflexões que apresenta e suscita, o livro interessa a um público amplo, não apenas a quem atua no campo educacional. Ao abordar a educação como questão nacional, o autor – filósofo, livre docente e professor titular da Unicamp – faz a crítica de como ela vem sendo tratada em nosso país e denuncia o caráter neoliberal das atuais políticas, dentre as quais situa o projeto que resultou na Lei n. 9394/96, a nova LDB. Mais que isso, aponta elementos para se forjar uma estratégia de resistência ativa, com vistas a reverter esse quadro desfavorável à viabilização da educação pública nacional e democrática. É este o tema da conclusão do livro que a Princípios reproduz, a seguir, contando com especial cortesia do autor e da Editora Autores Associados.

Uma outra vez deixamos escapar a oportunidade de traçar as coordenadas e criar os mecanismos que viabilizassem a construção de um sistema nacional de educação aberto, abrangente, sólido e adequado às necessidades e aspirações da população brasileira em seu conjunto.
O esboço de um sistema nacional, traçado no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, enfrentou resistências expressas nas disputas em torno da elaboração da Constituição de 1934 e acabou inviabilizado com o advento do Estado Novo em 1937.

A nova oportunidade aberta pela Constituição de 1946 e materializada no projeto de LDB que deu entrada no Congresso Nacional em 1948 se viu engolfada no conflito escola particular-escola pública e se deteve diante do avanço dos setores privatistas.

Desta vez, a circunstância da elaboração de uma nova LDB, propiciada pela Constituição de 1988, criou novas esperanças que resultaram frustradas pela ofensiva neoconservadora que logrou tornar-se politicamente hegemônica a partir de 1990.

À vista da trajetória percorrida, estamos prestes a transpor o limiar do século XXI sem termos conseguido realizar aquilo que a sociedade moderna se pôs como tarefa dos séculos XIX e XX: a educação pública nacional e democrática.

Como resultado, o déficit histórico em matéria de educação foi se acumulando de forma a neutralizar os pequenos avanços obtidos. Assim é que, em 1890 a taxa de analfabetismo estava em torno de 85% em relação à população total (12.213.356 para uma população de 14.333.915). Hoje pode-se considerar que houve um progresso relativo, já que aquela taxa caiu para cerca de 30% (oficialmente registram-se 21,6% em relação à população de idade igualou superior a sete anos, o que projeta uma taxa de 33,68% para a população total, tomando-se os dados do Censo de 1991). No entanto, se considerarmos a população total (146.825.475, conforme esse mesmo Censo), veremos que 33,68% correspondem a 49.458.776. Portanto, o número absoluto de analfabetos quadruplicou. Vê-se, pois, que o déficit em termos absolutos tende a aumentar mesmo quando o Estado detém a iniciativa de formular políticas educacionais que, dentro dos parâmetros vigentes, visam equacionar o problema reduzindo as taxas relativas. A situação acaba por se agravar, atingindo limites intoleráveis, num contexto como o de hoje em que o Estado busca demitir-se de suas responsabilidades transferindo-as para outras instâncias. Com efeito, a orientação neoliberal adotada pelo governo Collor e agora pelo de Fernando Henrique Cardoso vem se caracterizando por políticas claudicantes: combinam um discurso que reconhece a importância da educação com a redução dos investimentos na área e apelos à iniciativa privada e organizações não-governamentais, como se a responsabilidade do Estado em matéria de educação pudesse ser transferida para uma etérea "boa vontade pública".

A situação descrita só poderia ser revertida com a clara determinação do Estado de assumir a educação como prioridade número 1, com a consequente vontade política de realizar as ações concretas em que se expressa essa prioridade.

Ilustremos o que foi dito com a questão orçamentária.

A Constituição de 1988 determina que a "União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino" (art. 212). Frise-se: na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Ora, manter significa garantir a continuidade do que já existe. Portanto, esse dispositivo supõe o sistema já instalado. Assim, se o sistema nacional de ensino estivesse já implantado e funcionando plenamente, isto é, se todas as crianças pudessem nele ingressar aos
sete anos de idade nele permanecendo por oito anos até concluir o ensino fundamental, então tratar-se-ia apenas de mantê-lo funcionando e desenvolvê-lo, isto é, ampliá-lo na medida das novas necessidades postas pela sociedade.

Quanto à manutenção, portanto, os recursos aí alocados deverão, por um lado, garantir a infra-estrutura, conservando-a e repondo os elementos consumidos no processo de funcionamento do sistema; e, por outro lado, deverão garantir também o pagamento dos salários e as condições de trabalho dos professores e dos demais funcionários que atuam no sistema.

Quanto ao desenvolvimento, duas necessidades se impõem: a ampliação do sistema em decorrência do eventual crescimento demográfico; e a atualização do sistema pela incorporação dos avanços tecnológicos tanto em termos dos instrumentos e métodos como no que respeita ao aperfeiçoamento dos agentes da educação.

Observa-se, pois, que o problema da manutenção e desenvolvimento do ensino estaria satisfatoriamente equacionado nos termos constitucionais, se o sistema já estivesse implantado e funcionando plenamente como o fizeram os principais países que instituíram os respectivos sistema nacionais de ensino a partir do final do século passado e início deste. Porque nós assim não procedemos, o déficit histórico foi se acumulando.

O nosso problema, portanto, consiste no fato de que o sistema não está instalado. Será necessário fazê-lo. Mas para isso os recursos orçamentários regulares não são suficientes. Impõe-se um plano emergencial que permita investir maciçamente na construção do sistema, elevando-se substantivamente e em termos imediatos o percentual do PIB destinado à educação, o que implica o status de prioridade 1 e a vontade política de que se falou antes. Que isso é possível, o demonstram os países que implantaram os seus sistemas, inclusive aqueles que o fizeram tardiamente como são os casos do Japão e da Coréia. Mas também o demonstra o nosso próprio país através de projetos de impacto que contaram com grandes investimentos públicos em decorrência da vontade política de torná-los realidade. Estão nesse caso a construção de Itaipu, as usinas nucleares de Angra dos Reis, o SIVAM, o gasoduto proveniente da Bolívia e o PROER. Por isso, em outra oportunidade levantei a idéia, sugerindo-a, inclusive, ao MEC, de criar uma espécie de PROEN (Programa de Recuperação da Educação Nacional) através do qual seriam captados recursos de monta para viabilizar a implantação de nosso sistema de educação em âmbito nacional logrando-se, assim, universalizar o ensino fundamental, erradicando definitivamente o analfabetismo.

O desfecho da tramitação do projeto da LDB evidenciou, porém, que no âmbito da educação a vontade política que acabou prevalecendo operou em sentido contrário ao esforço necessário para se equacionar um problema que vem se arrastando há mais de um século e que, por isso mesmo, já não pode mais ser escamoteado e cuja gravidade é consensualmente reconhecida.

Consequentemente, também os conservadores, em razão de suas pretensões à hegemonia, não se podem furtar às proclamações da importância e prioridade da educação. Por isso, na tramitação da LDB, os embates se deslocaram para questões de filigrana jurídica, tendo como carro-chefe a palavra "inconstitucionalidade". A cada proposta que implicasse alguma transformação mais significativa, se contrapunha a palavra mágica: "é inconstitucional; não pode. Essa iniciativa é privativa do presidente da República". Ou então: "fere a autonomia dos Estados, dos Municípios, ou da iniciativa privada".

Ora, houvesse efetiva vontade política por parte dos setores hegemônicos para se resolver o crônico problema da educação nesse país, tais dificuldades não existiriam. Nessa hipótese, a maioria dos problemas sequer seriam levantados. E aqueles que o fossem estariam rápida e facilmente resolvidos. Um exemplo: digamos que, diante de determinado dispositivo, se constate claramente que, segundo a Constituição, se trata, sem dúvida de uma iniciativa privativa do presidente da República. Então, chama-se o ministro da Educação, pede-se a ele que formule um projeto ou a minuta de um decreto, o presidente o encaminha, e o texto da LDB remete o assunto para o disposto no ato de iniciativa do presidente da República. Pronto. Está resolvida a questão. Simples, fácil, rápido, descomplicado.

O problema, portanto, deve ser posto em outros termos. Cabe examiná-lo no quadro da correlação de forças determinada pelas mudanças estruturais e conjunturais que estão em curso no contexto atual.

O Contexto de Implantação da Nova LDB

A conjuntura em que entra em vigor a nova LDB se assenta em significativas transformações da base material da sociedade, identificadas como uma nova Revolução Industrial cuja base científica é dada pela microeletrônica e cuja expressão tecnológica se traduz na automação dos processos produtivos marcando, pela via da informática, a vida social em seu conjunto.

Diferentemente do período da Primeira Revolução Industrial, quando aconteceu a transferência de funções manuais para as máquinas, o que agora está ocorrendo é a transferência das próprias operações intelectuais para as máquinas. Por isso também se diz que estamos na "era das máquinas inteligentes".

Ora, se o advento da indústria moderna (Primeira Revolução Industrial) conduziu a uma crescente simplificação dos ofícios, com a consequente redução, tendente à supressão, da qualificação específica, na Revolução Microeletrônica, ora em curso, também as qualificações intelectuais específicas tendem a desaparecer, o que traz como contrapartida a elevação do patamar de qualificação geral.

Com efeito, a introdução da maquinaria, obra da Primeira Revolução Industrial, eliminou a exigência de qualificação manual específica, impondo um patamar mínimo de qualificação geral, equacionando no currículo da escola primária, como requisito para que os trabalhadores pudessem se adequar ao processo produtivo mecanizado. Mas, além do trabalho de operar com as máquinas, era necessário também realizar atividades de manutenção, reparos, ajustes, assim como o desenvolvimento e adaptação a novas circunstâncias. Subsistiram, assim, no interior da produção, tarefas que exigiam determinadas qualificações específicas, obtidas por um preparo intelectual também específico. Esse espaço foi ocupado pelos cursos profissionais organizados no âmbito das empresas ou do sistema de ensino, tendo como referência o padrão escolar, mas determinados diretamente pelas necessidades do processo produtivo. Portanto, sobre a base geral e comum da escola primária, o sistema de ensino se bifurcou entre as escolas de formação geral e as escolas profissionais. Estas, por não estarem diretamente ligadas à produção, tenderam a enfatizar as qualificações gerais (intelectuais) em detrimento da qualificação específica ao passo que os cursos profissionalizantes. diretamente ligados à produção, enfatizaram os aspectos operacionais vinculados ao exercício de tarefas específicas, intelectuais e manuais) no processo produtivo considerado em sua particularidade.

É essa situação que vem sendo revolucionada. Ao transferir para as máquinas, agora de base eletrônica, inclusive as operações intelectuais específicas, dispensa-se a exigência dos cursos profissionalizantes. Eis por que o modelo de profissionalização da Lei 5.692/71 fracassou, enquanto instituições do tipo das "Escolas Técnicas Federais", por enfatizarem as qualificações intelectuais gerais em articulação, porém, com o trabalho produtivo, contêm maior potencial para responder a essas novas necessidades desde que devidamente reorientadas.

Parece, pois, que a revolução em curso alberga virtualidades que, sendo desenvolvidas. conduziriam ao limiar da consumação do processo de constituição da escola como forma principal. dominante e generalizada de educação. Em consequência, a universalização de uma escola unitária que desenvolva ao máximo as potencialidades dos indivíduos conduzindo-os ao desabrochar pleno de suas faculdades espirituais-intelectuais, estaria deixando o terreno da utopia e da mera aspiração ideológica, moral ou romântica para se converter numa exigência posta pelo próprio desenvolvimento do processo produtivo (SAVIANI, 1994: p. 147-164).

Efetivamente, o grau de desenvolvimento das forças produtivas nas condições da atual revolução tecnológica torna essa possibilidade factível, uma vez que praticamente toda a produção dos bens socialmente necessários passa a poder ser feita por complexos automáticos, liberando o homem para o usufruto de uma ampla margem de tempo livre possibilitando-lhe o cultivo do espírito, a criação cultural, o desenvolvimento pleno de suas faculdades.

No entanto, para que esse grau de desenvolvimento atingido pelas forças produtivas possa produzir todos os seus frutos, beneficiando toda a humanidade, é necessário que se preencha uma condição: a apropriação coletiva de seus resultados. E isso é obstaculizado pelas relações sociais vigentes que, dificultando a generalização da produção baseada na incorporação maciça das tecnologias avançadas, dificultam também a universalização da escola unitária.

A orientação neoliberal se caracteriza por políticas claudicantes: o discurso reconhece a importância da educação, mas os investimentos na área são cortados

Sabe-se, com efeito, que as relações sociais próprias da sociedade capitalista se baseiam na apropriação privada dos meios de produção e, consequentemente, dos produtos daí decorrentes. Assim, enquanto o capitalismo socializou a produção, ele manteve sob controle privado a apropriação.

Nesse contexto, as revoluções tecnológicas se, por um lado, aumentam a capacidade de produção humana, por outro lado, têm sido feitas sob o signo do aumento da produtividade, entendida como o incremento da margem de valorização do capital. Com isso, o desenvolvimento das forças produtivas humanas, em lugar de beneficiar o conjunto da humanidade, redunda em benefício daquela parcela que detém a propriedade dos meios de produção. O panorama atual é, pois, atravessado por esta contradição: estão já disponíveis as condições tecnológicas capazes de produzir os bens necessários para manter todos os homens num nível de vida altamente confortável; no entanto, o incremento da produtividade produz o efeito contrário, provocando a exclusão e lançando na miséria um número crescente de seres humanos.

Em suma, as transformações no âmbito econômico, ancoradas na revolução microeletrônica, foram acompanhadas no plano social por um reordenamento nas relações de classe beneficiando os detentores do capital em detrimento da força de trabalho, para o que se foi instituindo, a nível político, uma nova relação Estado-sociedade traduzida na orientação denominada neoliberal,

Esse processo foi ganhando maior visibilidade a partir da década de 1970 como resposta aos sinais de esgotamento da "Idade de Ouro", período da grande expansão capitalista que se seguiu ao término da Segunda Guerra Mundial (HOBSBAWN, 1995). Certamente não terá sido por mera coincidência que os dois maiores protagonistas da corrente neoliberal, Friedrich von Hayek e Milton Friedman tenham sido agraciados com o Prêmio Nobel de Economia respectivamente em 1974 e 1976. A tendência em pauta foi sendo articulada e difundida por organismos internacionais, à testa o Banco Mundial, tendo sido assumida por alguns governos (Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos) ao longo da década de 1980, tornando-se hegemônica na década de 1990, favorecida pelo desmoronamento do chamado "socialismo real". Uma das características principais desse novo quadro é a globalização, com o consequente enfraquecimento dos Estados Nacionais, o que faz com que a tendência dominante se reproduza de forma semelhante nos diferentes países, de modo especial aqueles dependentes dos grandes centros produtores de tecnologia e que controlam as finanças, vale dizer, o fluxo de capitais.

Tomando como eixo o livre mercado, advoga-se a redução do Estado através dos processos de privatização, desregulamentação, redução da carga tributária e extensão das leis de mercado mesmo para aquelas áreas que tradicionalmente eram consideradas próprias da esfera pública e da alçada do Estado como a saúde, a previdência social e a educação. E as possíveis resistências da população trabalhadora e das forças políticas a ela articuladas tendem a ser quebradas pelo crescente desemprego que repercute no enfraquecimento de suas organizações cujas lideranças se procura cooptar ou neutralizar.

A situação de precariedade do sistema educacional só pode ser revertida quando o Estado assumir a educação como prioridade número 1

A nova LDB será implantada, pois, num contexto de dificuldades para os setores populares e seus representantes progressistas, sendo-lhes a correlação de forças claramente desfavorável. Verifica-se, com efeito, um refluxo no ascendente processo de organização e nas grandes mobilizações que caracterizam o campo educacional nos anos 1980. Como enfrentar essa situação?

A Estratégia da Resistência Ativa

À vista dos elementos dispostos e tendo presente o desfecho da tramitação do projeto de LDB no Congresso Nacional, resulta inviável que as forças progressistas, vale dizer, a comunidade educacional organizada, venham a assumir a dianteira do processo de implementação da nova LDB. Parece que a única alternativa que resta é o desenvolvimento de formas de resistência.

Tem-se constatado, entretanto, que as resistências às iniciativas de política educacional, por parte do movimento crítico e progressista, têm se revestido de um caráter passivo. Quando se anuncia uma medida de política educacional, tendem a surgir vozes discordantes que expressam suas críticas, formula objeções, alertam para os riscos e apontam as conseqüências negativas que poderão advir, caso a medida proposta venha a ser efetivada. São, em geral, manifestações individuais que, embora em quantidade significativa e representativa de preocupações e anseios generalizados entre os profissionais que militam no campo educacional, acabam não ultrapassando o âmbito do exercício do direito de discordar.

Ora, esse procedimento podia surtir algum efeito prático durante o governo Collor, mas não é mais suficiente no contexto atual. Isso porque naquele caso se tratava de um governo destituído de legitimidade, competência e sustentação política, razão pela qual, ocorrendo resistência, a iniciativa se inviabilizava. O governo Fernando Henrique Cardoso, ao contrário, dispõe de legitimidade, competência e base política para fazer valer suas propostas. Diante de eventuais resistências contemporiza, altera a tática e, através de nova investida, acaba efetivando a sua proposta. Aos críticos só resta conviver com o fato consumado, tendo que se ajustar de algum modo à nova situação.

Nesse novo contexto, a resistência passiva termina por resultar inútil. Daí a necessidade de se passar à resistência ativa. Esta implica pelo menos duas condições: a primeira se refere à forma, isto é, a exigência de que a resistência se manifesta não apenas individualmente, mas através de organizações coletivas, galvanizando fortemente aqueles que são, de algum modo, atingidos pelas medidas anunciadas; a segunda diz respeito ao conteúdo, envolvendo, portanto, a formulação de alternativas às medidas propostas, sem o que será difícil conseguir a mobilização.

O relativo impasse em que desembocou o encaminhamento da nova LDB tem a ver com a prevalência da resistência passiva. A mobilização anterior se arrefeceu e a capacidade de resistência foi quebrada pela adoção da estratégia das reformas pontuais. A falta de alternativas a essa forma de encaminhamento da política educacional, assim como ao seu conteúdo, tem imobilizado as chamadas "esquerdas".

Nesse contexto de crescente desemprego parece que faz todo o sentido que os sindicatos retomem vigorosamente a luta pela redução da jornada de trabalho. Ora, esse é um ponto que tem importantes conseqüências no âmbito da educação. Quando comentamos a Seção referente à Educação de Jovens e Adultos, salientamos a importância das medidas incluídas no Substitutivo Jorge Hage em especial a redução da jornada de trabalho para viabilizar a freqüência à escola. E observamos, diante da sua exclusão do texto aprovado, que medidas como essas não tinham mesmo chance de figurar no texto legal nestes tempos neoliberais em que os direitos dos trabalhadores tendem a ser comprimidos, senão eliminados, jamais expandidos.

No entanto, embora a redução da jornada de trabalho contrarie a orientação política dominante, ela tem respaldo no desenvolvimento da produção que permite, pelo incremento tecnológico, uma maior produtividade em menor tempo de trabalho. A articulação entre as organizações do âmbito educacional com as organizações operárias em torno desse objetivo comum, é um exemplo de como se pode acionar a estratégia da resistência ativa. Além do mais, como se trata de pontos que a lei não incluiu mas também não proibiu, na esteira da luta pela redução da jornada de trabalho é possível reintroduzir as outras medidas correlatas como o direito a horas de estudo durante a jornada de trabalho, recepção de programas de teleducação no local de trabalho, oferta de trabalho em tempo parcial etc., no próprio processo de implantação da nova LDB. E isso com base na Constituição e no artigo quinto da mesma LDB que considera que o acesso ao ensino como direito público subjetivo abrange também os jovens e adultos devendo, em consequência, lhes ser garantido pelo Estado.

Vários outros exemplos poderiam ser mencionados para ilustrar como, através da resistência ativa, se poderia ocupar os espaços deixados pelas diversas lacunas ou omissões do texto da lei.
Entretanto, penso que a referida estratégia poderá ser desencadeada sobre a base das duas instâncias consideradas centrais no projeto aprovado pela Câmara porque através delas se garantiria a efetiva participação da população organizada, em especial da comunidade educacional, nas decisões relativas à política educacional. Refiro-me ao Fórum Nacional de Educação e ao Conselho Nacional de Educação.

No Primeiro Congresso Nacional de Educação, realizado em Belo Horizonte entre 31 de julho e 3 de agosto de 1996, colocou-se como tema central a reunião de subsídios para a elaboração do Plano Nacional de Educação. Ocorreu-me, então, sugerir que, a partir desse I CONED, se constituísse um Fórum Nacional de Educação, com caráter permanente e estruturado à base de comissões técnicas, com a tarefa de levar a cabo um diagnóstico consistente a partir do qual se possa formular metas em curto, médio e longo prazo e delinear os meios e as ações que permitam viabilizá-las. A esse Fórum caberá a tarefa não apenas de formular uma proposta de plano mas também de acompanhar e avaliar a execução do referido Plano Nacional de Educação.

Nos termos do parágrafo primeiro do artigo 87 da lei, é atribuída à União a tarefa de encaminhar ao Congresso Nacional, no prazo de um ano, o Plano Nacional de Educação para os dez anos seguintes. Ora, o resultado do trabalho do Fórum, caso não haja espaço para ser incorporado em termos oficiais, se constituirá como proposta alternativa àquela do MEC, podendo ser eventualmente considerada pelo Congresso Nacional, permanecendo, de qualquer modo, como referência para a análise e avaliação da execução e possível alteração do plano que vier a ser aprovado.

Eis como se pode acionar a estratégia da resistência ativa. Resiste-se à tendência dominante mas formulando e apresentando proposta alternativa que, pelo conteúdo e pela forma de mobilização, permite conduzir o embate com alguma chance de reverter a situação, senão imediatamente, acumulando energia para o momento em que a correlação de forças se tornar mais favorável. Por outro lado, o Conselho Nacional de Educação não deve ser pensado como um espaço fora de cogitação. Ao contrário, deve ser considerado de forma atenta, buscando articular-se com ele tendo em vista os objetivos maiores da educação brasileira. Com efeito, pela forma como foram indicados os seus membros, pela sua composição atual e pelas suas atribuições, é da maior importância a interlocução com o CNE. Em seu interior se encontram elementos que aliam uma consistente qualificação intelectual ao enraizamento na experiência das batalhas travadas pela comunidade educacional organizada. Não podemos permitir o seu isolamento o que, além de enfraquecer as nossas lutas, implicaria o risco de sua neutralização ou cooptação.

A articulação entre as organizações do âmbito educacional com as organizações operárias em torno da redução da jornada de trabalho é um exemplo da estratégia da resistência ativa

A estratégia proposta parte da consideração de que a mudança da situação está exigindo alteração nos conceitos que até então orientavam as forças de esquerda, com a consequente alteração também nas formas de luta. O conceito de Estado está se "alargando", quando se constata o espaço que vem sendo ocupado pelas chamadas organizações não-governamentais, o mesmo acontecendo com o conceito de partido. Por isso talvez esteja na hora de retomarmos, de forma atenta às circunstâncias em que vivemos, a metodologia gramsciana de análise das situações, com os conceitos daí decorrentes como o de Estado ampliado, envolvendo a articulação entre sociedade política e sociedade civil, e o de partido, também ampliado, abarcando tanto o partido político que estava voltado mais diretamente para a sociedade política, como o partido ideológico que visa à hegemonia no seio da sociedade através dos organismos da sociedade civil.

Em suma, há transformações de caráter orgânico que respondem às necessidades de desenvolvimento da humanidade. Contra essas não cabe resistir o que, aliás, seria reacionário. Tais transformações se manifestam, via de regra, na forma de crises de conjuntura cuja raiz reside nas contradições da estrutura social vigente. Nesse quadro, eis como se configura a correlação de forças: uma vez que os interesses dominantes procuram conservar a estrutura de que são beneficiários, busca-se evitar que as contradições da estrutura vigente venham à tona, interpretando-se a crise conjuntural como um acidente de percurso, um desvio que não só pode como deve ser corrigido. Tais interesses caminham, pois, na direção de frear o processo histórico.

Inversamente, os interesses dominados caminham na direção da aceleração do processo histórico. E isto porque não interessa às camadas dominadas a manutenção da estrutura e sim a sua transformação, tendo em vista a construção de um novo tipo de sociedade livre da dominação. Nessa perspectiva a crise de conjuntura é vista efetivamente como manifestação das contradições da estrutura que devem ser explicitadas e superadas através da transformação da própria estrutura social.

É este o embate que se pôs no processo de tramitação da nova LDB e que será reposto no encaminhamento de sua implantação. Os que se identificam com a forma social atualmente existente procurarão responder às questões postas pela implantação da nova legislação educacional na direção da consolidação do status quo, evitando mudanças ou incorporando aquelas inovações que concorrem para esse objetivo. De outro lado, os que visam à transformação da ordem existente se empenharão no encaminhamento das questões educacionais em sintonia com as necessidade de transformação.

A Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que "estabelece as diretrizes e bases da educação nacional" , em vigor a partir de sua publicação no Diário Oficial da União de 23 de dezembro de 1996, embora não tenha incorporado dispositivos que claramente apontassem na direção da necessária transformação da deficiente estrutura educacional brasileira, ela, de si não impede que isso venha a ocorrer.

A abertura de perspectivas para a efetivação dessa possibilidade depende da nossa capacidade de forjar uma coesa vontade política capaz de transpor os limites que marcam a conjuntura presente. Enquanto prevalecer na política educacional a orientação de caráter neoliberal, a estratégia da resistência ativa será a nossa arma de luta. Com ela nos empenharemos em construir uma nova relação hegemônica que viabilize as transformações indispensáveis para adequar a educação às necessidades e aspirações da população brasileira.

Demerval Saviani é Professor da Faculdade de Educação da Unicamp.

EDIÇÃO 47, NOV/DEZ/JAN, 1997-1998, PÁGINAS 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72