Estamos reverenciando o primeiro centenário da Guerra de Canudos. As datas registram episódios diferentes. Há três anos, aqui mesmo em Princípios, novembro de 1993, homenageamos o centenário da fundação do arraial do Belo Monte, o povoado fundado por Antônio Conselheiro na antiga Fazenda Canudos, onde hoje se encontra o açude de Cocorobó. Aos 22 de setembro passado, fez 100 anos da morte de Antônio Conselheiro. E aos 5 de outubro último registrou-se o primeiro século da destruição completa do arraial do Belo Monte, do fim da Guerra de Canudos.

Está sendo muito significativa a passagem desse primeiro século de Canudos. A consciência cívica nacional colocou na ordem do dia o reexame crítico da guerra sertaneja e, sobretudo nos últimos três anos, multiplicaram-se sensivelmente os atos, estudos e realizações relacionados com Canudos.
Centenas de publicações foram feitas nesse período, dezenas de seminários, obras de arte, excursões e palestras sobre Canudos. Especialmente na Bahia e em São Paulo os eventos foram numerosos, com iniciativas de instituições diversas, onde se destacaram as Universidades de Feira de Santana, a Estadual da Bahia, com seu Centro de Estudos Euclides da Cunha, a Federal da Bahia, a Católica de Salvador e a Universidade de Santa Cruz, que mobilizaram professores e estudantes em pesquisas valiosas, debates e palestras. Os jornais A Tarde, da Bahia, e o Estado de S. Paulo, do qual foi correspondente Euclides da Cunha, apresentaram encartes e matérias analíticas, com extensos e penetrantes estudos sobre Canudos. Um professor, notabilizado pelos estudos minuciosos feitos sobre o tema, José Calasans, publicou importante obra, a Geografia de Canudos. O livro A Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa, espalhou-se pelo exterior através de 15 idiomas e, em português, chegou à sua 17ª edição. Em 1993 foi traduzido para o francês Os Sertões, diga-se de passagem, somente agora. E em 1994 foi ele traduzido para o alemão. Também, somente agora.

A produção artística também esteve presente nesse registro histórico. Músicas, poemas, pinturas, documentários, vídeos e até um longa metragem foram feitos. Na Bahia compositores de sensibilidade, como Fábio Paes, e vozes belas, como as de Rose e Jurema Paes, evocaram Canudos em cantos lancinantes, sendo diversos os grupos musicais típicos que cantam e dançam Canudos lá nas beiradas do Vaza-Barris, na nova Canudos, em Uauá e em Euclides da Cunha, cenário da "guerra do fim do mundo". Canudos ganhou hoje no Brasil sua produção artística mais grandiosa, exuberante, expressiva e valorosa nos 400 quadros e gravuras do "Projeto Canudos", dos quais 100 quadros compõem a extraordinária coleção "Canudos Rediviva", tudo do grande artista plástico baiano Tripoli Gaudenzi.

Toda essa produção e movimentação teve um sentido geral. É que não foi feita apenas uma reprodução dos fatos e datas de Canudos, não se trabalhou para resgatar apenas os sítios canudenses e os vestígios arqueológicos da guerra, mas procurou-se fazer uma reavaliação histórica da Guerra de Canudos. Na verdade, este centenário marca essa reavaliação, no fundamental já feita. Canudos foi um acontecimento trágico da História do Brasil. Camponeses, desempregados, recém libertos da escravidão, homens simples e rudes, golpeados pela seca, banidos pelo latifúndio, perseguidos pela intolerância e brutalizados pelo abandono governamental se aglomeraram, à cata da esperança perdida, em busca da sobrevivência ameaçada e em torno de uma líder carismático e forte, de grande arrojo e capacidade de organização, que era Antônio Conselheiro. Para esses homens a República apareceu sob a forma de aumento de impostos e atuou como se estivesse desmerecendo da religião, ao valorizar o casamento civil e afastar a Igreja do Estado. Contra isto revoltaram-se os conselheiristas. Foram tidos como inimigos da Pátria, ameaçadores do Estado.

A Nação foi posta em armas para enfrentar o reduto conselheirista. Tropas foram mobilizadas de norte a sul do país. Um clima de ódio a Canudos foi preparado junto à população pelo governo e pela mídia da época. A opinião pública ficou aguerridamente hostil aos canudenses. As notas oficiais não tinham o menor escrúpulo na veiculação das notícias mais absurdas, como a de que Canudos estava articulada com o exterior recebendo armas e dinheiro para restaurar a Monarquia no Brasil. Quando chegaram ao Rio de Janeiro as notícias da derrota da terceira campanha, comandada pelo coronel Moreira César, foi uma comoção. A massa depredou e empastelou as redações e as tipografias dos jornais monarquistas Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo. Gentil de Castro, um monarquista, foi assassinado, em meio a um clima frenético de artificial patriotada. Escreveu Euclides: "(…) um ditado único, monótono (…) persistiu, como aspiração exclusiva – o esmagamento dos inimigos da República". A manipulação da opinião pública pelos meios de comunicação sempre foi um problema grande no Brasil.

O plano urdido visava à destruição, ao assassinato, à torpeza. O general Zenildo de Lucena, atual ministro do Exército do Brasil, apresentando recente publicação sobre Canudos escreveu: "Coube ao Exército o encargo de neutralizá-la (a "ameaça" de Canudos) antes que como um incêndio de proporções imprevisíveis se alastrasse pelo interior do país" (1). Efetivamente a dita "ameaça" de "um incêndio de proporções imprevisíveis", que poderia "se alastrar pelo interior do país", diz respeito à visão antiga e invertida sobre Canudos que, pelo visto, ainda perdura em meios castrenses inatingidos pela reavaliação em curso sobre o episódio. Entretanto, o "encargo de neutralizá-la", não foi o "encargo" dado pelo presidente civil de então ao exército. A orientação que o presidente da República Prudente de Moraes deu quando se despedia no Rio de Janeiro de um corpo expedicionário que embarcava para a Bahia foi a seguinte: "(…) que não fique pedra sobre pedra"! E foi essa a orientação cumprida. Como diria Euclides da Cunha, não foi uma guerra, foi "uma charqueada". Mataram 15 mil sertanejos, morreram 5 mil soldados.

A resistência dos canudenses foi firme, decidida, extraordinária, heróica. Improvisaram táticas de guerra, desenvolveram a guerra sertaneja, versão catingueira da guerra de guerrilhas. Naquele sertão bravio, exposto ao sol escaldante, naquelas terras calcinadas, de macambiras e faxeiros, naquela paragem agressiva que vez por outra torna-se terna na sombra de um umbuzeiro, forjaram-se comandantes militares intrépidos, temidos e respeitados, cuja expressão maior foi Pajeú. Em uma singela homenagem aos centenários guerrilheiros de Canudos abramos aqui um parágrafo a Pajeú.
Pajeú foi um homem acima dos prognósticos. Negro, da estirpe de Zumbi dos Palmares, revelou-se pessoa afeita às façanhas que requeriam inteligência fulminante, audácia acima da coragem, liderança incontestada e golpe de vista tático instantâneo. Aprendera a guerrear guerreando e a confrontar-se com o rival vencendo-o. Venceu, com seu povo, as três primeiras campanhas.

Quando a quarta expedição aproximava-se de Canudos num cerco mortal, Pajeú procurou emboscar as forças do governo. Teria que atraí-las a um lugar mais favorável ao ataque guerrilheiro, ao cenário da armadilha. Tinha que dar a entender que estava fugindo, sendo perseguido, e fazer com que o Exército fosse atrás dele até onde ele queria. Deixemos Euclides descrever esse episódio em suas cores brilhantes:

"O inimigo (os homens de Canudos) aparece outra vez. Mas célere, fugitivo (…) Dirigia-o Pajeú. O guerrilheiro famoso visava, à primeira vista, um reconhecimento. Mas, de fato (…) tinha objetivo mais inteligente: provoca um delírio de descargas e um marche-marche doido (…) Desapareceu. Surgiu logo depois, adiante (…) Passou, num relance, acompanhado de poucos atiradores, por diante, na estrada.

Não foi possível distingui-los bem. Trocadas algumas balas, desapareceram (…) Duas horas depois, ao transpor o general o teso de uma colina, o ataque recrudesceu de súbito (…) O tiroteio frouxo (…) transmudou-se numa fuzilaria furiosa (…) Não se via o inimigo (…) metido dentro das trincheiras-abrigos (…) e encoberto nas primeiras sombras da noite que descia. A situação era desesperadora. Triunfara o ardil. Os expedicionários (…) haviam imprudentemente enveredado pela paragem desconhecida, acompanhando, sem o saberem, um guia ardiloso e terrível, com que não contavam – Pajeú".

Pajeú foi, inquestionavelmente, o grande vulto militar da guerra de Canudos. Morreu como morrem os heróis, em meio a uma empreitada intrépida. A última expedição fechava o cerco sobre Canudos. Pajeú, que sempre emboscara o adversário bem antes de Canudos, agora estava ali, vendo seu reduto ser emboscado. De pronto localizou o ponto mais fraco do seu inimigo e lançou sobre ele fulminante ataque. A surpresa e impetuosidade foram tais que o cerco ficou em perigo e, em decorrência, a própria quarta expedição. Os três generais, atônitos, tiveram que fazer grande concentração de forças para repelir o golpe de Pajeú. Conseguiram. Era 24 de julho de 1897. Pajeú morreu. Um herói. Foram precisos três generais para abatê-lo…

Canudos permaneceu cerca de 80 anos como uma guerra que ocorreu no sertão da Bahia, no início da República, contra fanáticos e insubmissos. A versão oficial prevalecia, "uma ameaça". E ficara o registro épico de Euclides da Cunha, contando a saga dos sertanejos em Os Sertões, naquilo que parece ter sido a maior aventura literária brasileira.

Talvez seja a partir da década de 1980 que a consciência nacional começou a despertar-se para uma reavaliação de Canudos. Em 1986, o então Secretário de Educação da Bahia, Edivaldo Boaventura, para preservar os sítios históricos, criou o Parque Estadual de Canudos, hoje dirigido pelo Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, que realiza notável trabalho. A intelectualidade, notadamente da Bahia e de São Paulo, debruçou-se sobre o episódio, investigando-o de um ponto de vista crítico. E a literatura, e as Universidades, e as conferências, e as poesias, e as pinturas, e as peças e as músicas e foram delineando um novo perfil de Canudos.

O que merece destaque é que, até então, ao se falar de Canudos exaltava-se a bravura dos que lá sucumbiram, mas não se caracterizava nitidamente aquela como uma luta social. Hoje, a reavaliação feita, sobretudo nesses últimos 20 anos, salienta ter sido Canudos expressão da luta social sertaneja brasileira da época, tratada cruelmente, brutalmente, a ferro e fogo, num erro clamoroso das elites de então. Antes, via-se Canudos como um movimento de rebelados que resistiram com bravura. Hoje vê-se Canudos como "um crime da nacionalidade", na expressão dita há tempos por Euclides da Cunha. Antes, era a exaltação dos vencidos. Hoje é a denúncia do genocídio. Essa mudança da forma de se abordar Canudos é a marca mais importante desse centenário. Mudança que começou, mas que precisa avançar.

Em Salvador, por exemplo, não há um monumento ao Conselheiro, nem uma rua com seu nome. No Pelô – o Pelourinho, reduto da negritude baiana – não se exalta Pajeú. Entretanto, em Niterói, há uma rua homenageando o coronel conhecido como o "Corta Cabeça" de Canudos, o coronel Moreira Cesar. Quando, pouco após o golpe de 1964, o escultor Mário Cravo Jr. fez uma escultura belíssima do Conselheiro, em tamanho maior que o natural, e a colocou em frente ao Teatro Castro Alves, em Salvador, a reação levou à retirada da peça do local em que estava, e provocou, numa espécie de desagravo, a construção e inauguração pelo exército de um monumento intitulado "aos heróis de Canudos", ao lado do Forte de São Pedro. A historiografia brasileira oficial precisa reescrever o capítulo de Canudos.

Nessa revisão histórica parece que definitivamente iniciada diferentes setores da sociedade participam. Quando dirigi-me a Canudos, logo depois de ter deixado o Presídio Político em 1979, para um ato à beira do açude Cocorobó, em registro ali feito do acontecimento, impressionou-me a fala de bispos da Igreja Católica, à frente dos quais D. José Rodrigues, de Juazeiro, pedindo perdão aos conselheiristas pela incompreensão de autoridades eclesiásticas da época!

A intelectualidade tem contribuído, e muito, para a revisão em curso, e precisa fazê-lo bastante, pois foi lamentável seu posicionamento sobre Canudos há cem anos atrás. Grosso modo, durante a guerra, ficou quase toda ela contra os conselheiristas, com poucas exceções, como Machado de Assis, que fez dos sertanejos uma defesa, moderada contudo. Vargas Llosa, a propósito, faz um comentário cáustico. Diz ele, "os intelectuais tiveram uma grande responsabilidade, pois os jagunços eram gente muito primitiva (…) e, ao menos explica que confundissem a República com o diabo. Mas, que os republicanos, gente que representava o Brasil mais ocidentalizado, confundissem um movimento campesino de tipo religioso com uma conspiração anti-republicana dos monárquicos, dos latifundiários, ou da Inglaterra, foi muito mais grave".

Houve um setor que não precisou fazer revisão, porque nunca aceitaram a visão distorcida e elitista criada e imposta sobre Canudos. São os poetas populares, os artistas anônimos, a tradição do povo para quem Canudos nunca deixou de ser uma esperança destroçada de redenção dos pobres. A resistência ideológica da literatura de cordel, dos repentistas semianalfabetos e dos compositores populares contribuiu, e muito, para ensinar aos esclarecidos a verdade de Canudos. Alguns são mais antigos. Outros aparecem até hoje, não se sabe bem pela mão de que autor. Como esse:

O soldado morria,
porque queria matar.
O sertanejo matava,
por que queria viver.
… coisa bem diferente,
que se precisa entender.
Venceu o acampamento,
acabou-se o povoado.
O tempo veio depois,
o fogo acabou as casas,
a água escondeu o chão.
Mas o nome de Canudos
ninguém esquece, patrão.
Canudos é protesto
ecoando no sertão.
(A Tarde, 26-06-1993).

Haroldo Lima é Deputado federal pelo PCdoB da Bahia e exerce seu quarto mandato na Câmara dos Deputados. É membro do Comitê Central e da Executiva do Partido Comunista do Brasil.

Nota

(1) Canudos, campanha militar, Ministério do Exército, 1997.

EDIÇÃO 47, NOV/DEZ/JAN, 1997-1998, PÁGINAS 73, 74, 75, 76, 77