O Manifesto do Partido Comunista, 150 anos depois
Passado um século e meio, o fantasma, desta vez, do próprio Manifesto Comunista, continua assombrando, não somente a Europa, mas há muito tempo já, o mundo inteiro. Afirmação jurássica, dirão os apologistas do "mundo globalizado". Contra-senso, poderão reverberar os arautos do "fim da história". Dogmatismo, certamente irão ressoar os teóricos pós-marxistas, procurando, com sua lupa criticista, indícios de "reducionismo classista". Afinal, em um mundo que aparentemente se unifica pelos processos de globalização, vistos como irresistíveis, e após a queda do socialismo, atrever-se a insistir na realidade do espectro do comunismo e ressaltar a atualidade do Manifesto que o lançou, não deixa de ser temerário. Mas, pode-se negar que o Manifesto Comunista por "sua audácia intelectual e sua ambição emancipacionista" seja "parte integrante de um movimento histórico de longo alcance"? (1).
Não, na opinião de centenas de intelectuais e ativistas políticos do mundo inteiro que se preparam para saudar a data do aniversário do Manifesto em reunião internacional de grande porte em Paris, com seminários, debates, apresentações de textos, etc. Exatamente porque o Manifesto Comunista representa um marco de nosso tempo é que se faz necessária uma discussão sobre seu caráter, papel e atualidade.
O empreendimento não é fácil. Pois, se como disse Lênin, "este pequeno livro vale por tomos inteiros" e "seu espírito vem dando vida e movimento a todo o proletariado" (2), é imperioso levar em conta as profundas e poderosas transformações ocorridas no mundo ao longo do processo histórico-social de desenvolvimento do capitalismo. Muito embora o processo destas mudanças em grande parte estivesse já delineado nas tendências gerais estruturais do modo de produção capitalista, apresentadas pela primeira vez ao mundo na nova concepção da história proposta por Marx e Engels no Manifesto, seria inimagináve1 conceber seu alcance, e a profundidade e aceleração atingidas nos dias de hoje. Mas como "nos grandes processos históricos, 20 anos não são mais que um dia, embora logo possam vir dias em que se condensem 20 anos" (3), é sob esta formulação – que encerra, de modo concentrado, a extraordinária formulação metodológica do marxismo e a aguda visão tática do movimento operário – que se deve colocar a perspectiva de o Manifesto do Partido Comunista e reapanhar sua atualidade.
Como obra teórica e instrumento revolucionário, o Manifesto deve ser tratado do ponto de vista do marxismo e sob a ótica da historiografia política. Isto significa que apenas descrever os novos conceitos da ciência social introduzidos pelo Manifesto e que constituem o arcabouço do materialismo histórico, sem fazer a leitura política da obra como um todo, pode levar a um entendimento meramente pedagógico, contrário à essência mesma da insuperável lição de método e concepção da história sintetizados no Manifesto. Pretender a aplicabilidade de todos os pontos programáticos nas novas condições históricas, à luz das grandes transformações econômicas e políticas e ao longo dos processos da história nestes 150 anos, é visão dogmática e anticientífica. Por outro lado, não preservar a inteireza do Manifesto enquanto programa político da classe operária e "melhor explicação sociológica da formação e o desenvolvimento dos proletários como classe em si" (4) é renunciar a seu eloquente apelo revolucionário e negar seu papel pioneiro na formulação das idéias e conceitos-chave que permitem examinar os fatores da transformação do mundo. O cenário político e social da gênese do Manifesto
O que primeiro salta aos olhos ao se fazer a leitura política do Manifesto é sua estreita ligação com o movimento operário em seu processo de constituição e desenvolvimento, em meio às batalhas de classe, lutando para organizar-se enquanto movimento independente e reivindicando papel político próprio. Instrumento vivo da tese marxista segundo a qual teoria e movimento não se separam, o Manifesto é ao mesmo tempo expressão teórica e concepção estratégica do movimento operário. Basta acompanhar sua gênese, buscar os antecedentes históricos e teóricos, visualizar o cenário político e sentir o clima para perceber este significado. "O Manifesto tem sua história própria" (…) "reflete, até certo ponto, a história do movimento operário moderno" (5). E é exatamente o que demonstra a investigação historiográfica sobre o Manifesto.
O Manifesto do Partido Comunista foi redigido por Marx e Engels, de dezembro de 1847 a janeiro de 1848, como tarefa resultante do segundo Congresso da Liga dos Comunistas, realizado em Londres entre 29 de novembro a 8 de dezembro de 1847. Mas não foi uma simples encomenda da Liga. Marx e Engels já àquela altura desempenhavam importante papel como intelectuais revolucionários e ativistas políticos no debate teórico e no processo de luta pela organização do proletariado enquanto classe independente.
O cenário era a segunda metade dos anos quarenta do século XIX quando se gestavam, em toda a Europa, as revoluções democrático-burguesas em que tomou parte o proletariado, pela primeira vez aspirando emancipação social e papel político.
O clima era pré-revolucionário, em meio à grande crise econômica que se abatia sobre a Europa, atingindo os principais países. França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, em diferentes graus e de acordo com o estágio de seu desenvolvimento industrial, enfrentavam profundas convulsões sociais. Já haviam ocorrido a revolta francesa dos tecelões de seda em Lyon em 1831, a rebelião dos tecelões na Silésia em 1844 e o terceiro cartismo ressurgia, na Inglaterra, no bojo da crise de 1847, ganhando novo alento sob o presságio dos ventos revolucionários que sopravam da França. Estava a caminho a revolução de 1848.
O espírito era borbulhante de idéias e atividades políticas. O debate teórico era intenso, fervilhava a ação conspirativa. Proliferavam as associações de operários, as "organizações secretas", os comitês de correspondência. Particularmente ativos eram os emigrados alemães em Paris e Londres, que haviam criado em 1834 em Paris a Liga dos Párias, da qual o setor operário mais radical se desprendeu, criando a Liga dos Justos em 1836, que, sob a influência de Marx e Engels, virá a se transformar na Liga dos Comunistas em 1847.
Este período da gênese do Manifesto é muito denso, entremeado de fatos históricos e de lutas sociais, políticas e ideológicas. Difícil é condensá-lo em poucas palavras, sem perder sua riqueza e precisão historiográfica. Mas o que se quer aqui é apenas estabelecer o elo indissolúvel entre a formação do pensamento marxista e, por conseguinte, a elaboração do Manifesto – sua expressão-síntese – com o movimento real da luta de classes em uma demonstração viva da substância teórica da categoria movimento operário como resultante do próprio processo do movimento do capitalismo (6).
Marx e Engels, que se conheceram na redação da Gazeta Renana, na ocasião de uma visita de Engels a Colônia em 1842, começam sua colaboração histórica direta em 1844, quando efetivamente colocam as bases da nova teoria. Engels já escrevera o Esboço de Uma Crítica da Economia Nacional, inúmeros artigos para a Gazeta Renana e para o principal jornal cartista The Northern Star, dois ensaios sobre as condições sociais da Inglaterra, publicados no periódico Vorwiirts em agosto e setembro de 1844 e trabalhava em seu eloquente livro A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra que vem à luz em 1845. Marx, por sua vez, publicara A Questão judaica e a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel em fevereiro de 1844 no Deutsch-Franzosische lahrbücher (Anais Franco-Alemães), revista editada por Marx e Arnold Ruge em Paris, para onde Marx se mudara após constatar a impossibilidade de continuar como redator chefe da Gazeta Renana, devido à censura e perseguição política na Alemanha) e trabalhava em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, obra inacabada, da qual se conhece apenas três manuscritos, onde fazia a crítica à economia política burguesa e à propriedade privada analisando a essência das categorias alienação e trabalho alienado. Em contacto com emigrados alemães em Paris, Marx colabora com o jornal Vorwärtts (Avante), que sob sua influência assume um caráter democrático. É neste jornal que escreve seus artigos sobre a revolta dos tecelões na Silésia, em 1844, destacando sua enorme importância enquanto expressão do aumento da consciência de classe dos operários alemães e desenvolve a idéia da revolução como tomada do poder político.
O conceito de internacionalismo proletário, desenvolvido pelo Manifesto, assume hoje particular importância
A primeira obra conjunta de Marx e Engels é A Sagrada Família (publicada em 1845 por I. Rütten, em Frankfurt) (7), ferina crítica à Crítica de Bruno Bauer e ao idealismo dos jovens hegelianos, seguida de A Ideologia Alemã, projeto iniciado quando Engels e Marx se encontram na primavera de 1845 em Bruxelas. Por caminhos distintos eles haviam chegado às mesmas conclusões sobre o papel dos "(…) fenômenos econômicos (…) força histórica decisiva, pelo menos no mundo moderno" e são "a base sobre que surgem os atuais antagonismos de classe e esses antagonismos de classe, nos países que graças à grande indústria se acham plenamente desenvolvidos (…) constituem, por sua vez, a base necessária para a formação dos partidos políticos, para a luta entre os partidos, e, em conseqüência, para toda a história política" (8).
Nesta ocasião "Marx, partindo dos princípios básicos acima assinalados, já havia elaborado, em linhas gerais, sua teoria materialista da história e pusemos-nos a desenvolver minuciosamente, nas mais diversas direções, a nova concepção descoberta" (…) descobrimento que vinha revolucionar a ciência histórica" (…) (9). Assim, em A 1deologia Alemã, obra inacabada e que não foi publicada enquanto viveram por não encontrarem editor, Marx e Engels expõem os fundamentos da concepção materialista da história e do comunismo científico. Já nas Teses Sobre Feuerbach, escritas por Marx em 1845 e publicadas pela primeira vez por Engels em 1888, estão postos os princípios básicos da nova concepção de mundo (10). Esta concepção precisava ser divulgada, penetrar no movimento real das idéias e das lutas políticas em curso, polemizar com outras visões de comunismo, atingir o cerne dos círculos operários, sacudir as organizações secretas.
O movimento comunista e seu caráter internacionalista
Marx e Engels lançam-se febrilmente à atividade política prática. Criam o Comitê de Correspondência Comunista de Bruxelas no início de 1846, no bojo de duas "controvérsias que levantaram questões centrais para o movimento comunista daquele tempo" (11) contra o "comunismo igualitarista" de Weitling, que se limitava a conclamar os operários em nome da justiça e fraternidade e contra o "socialismo conservador" de Proudhon, que tentava submeter as idéias socialistas à economia burguesa e se opunha à qualquer ação revolucionária do proletariado. Do Comitê de Bruxelas, Marx e Engels se dirigiam a comunistas e socialistas da Alemanha e de vários outros países, expondo suas idéias e propondo a organização de comitês semelhantes em outros lugares. Vários comitês foram surgindo, entre os quais o de Paris, criado na ocasião de uma visita de Engels, em contacto com dirigentes da Liga dos Justos. Militantes da Liga dos Justos em Londres criaram também um comitê de correspondência. Deste modo, Marx e Engels passaram a exercer maior influência sobre a Liga e o conjunto das organizações operárias, expondo suas idéias e os princípios da nova teoria aos operários e intelectuais comunistas e propondo medidas táticas para sua atividade política. Começava a tomar corpo o movimento comunista e seu caráter internacionalista.
A luta contra os socialistas "verdadeiros", que não compreendiam o estágio de desenvolvimento do capitalismo e apregoavam a passagem direta ao "paraíso comunista", na base do "amor" e da fraternidade, expressou-se na Circular Contra Kriege, jornalista alemão, membro da Liga dos Justos e que havia emigrado para os Estados Unidos. Na Circular, Marx combate a idéia de que as desigualdades sociais seriam abolidas a partir da distribuição de terra entre os trabalhadores, o que significaria apenas a extensão da propriedade privada a todos os homens e mulheres e submete à dura crítica a concepção mítica pregada em nome do comunismo. Esta Circular desempenhou grande papel na luta ideológica. Foi motivo de acirrados debates entre os círculos operários e comunistas da época, mas contribuiu para Marx e Engels firmarem as bases do comunismo científico. Considerável influência exerciam também as idéias reformistas do pensador e político francês. Proudhon, artesão de origem camponesa, que defendia a emancipação dos trabalhadores por meios econômicos e não políticos. Marx publica em 1847 o livro Miséria da Filosofia: resposta à filosofia da miséria do Sr. Proudhon, onde, em caráter polêmico, submete a uma profunda crítica a visão de Proudhon que reduz a economia política a um esquema de categorias abstratas estabelecendo falsas contradições econômicas, combate seu método antidialético e seu menosprezo pelo papel da ação revolucionária do proletariado. Miséria da Filosofia vem a ser a primeira exposição sistemática publicada da concepção materialista da história e será um importante instrumento de propaganda da nova teoria.
Em meio a esta intensa produção teórica e elétrica atividade política, funda-se, a partir da Liga dos Justos, a Liga dos Comunistas. Sobre a história da Liga, Engels fala das transformações ocorridas, principalmente entre os dirigentes da Liga dos Justos de Londres, que "cada vez mais compreendiam melhor quanto era inconsistente a concepção do comunismo que imperava até então" (…) e "foram cada vez mais dando-se conta de que Marx e eu tínhamos razão, com a nossa nova teoria" (12) . E quando Joseph Moll, um dos dirigentes da Liga convida Marx e Engels a ingressar, dando-lhes a "(…) oportunidade de desenvolver nosso comunismo crítico num manifesto" (13) e propondo sua participação no processo de reorganização da Liga, "(…) o que ela tivera até então de censurável para nós era agora abandonado por errôneo por seus próprios representantes (…) podíamos, então, recusar? Claro que não. Ingressamos, portanto, na Liga" (14).
O primeiro Congresso da Liga realizado entre 2 e 9 de junho de 1847 tem caráter principalmente organizativo. São propostos novos estatutos a serem aprovados em Congresso posterior, mas já há mudanças substanciais: a Liga passa a chamar-se Liga dos Comunistas e o slogan "Todos os homens são irmãos" é substituído por "Proletários de todos os países, uni-vos". Um Esboço de Confissão de Fé Comunista seria enviado às diversas filiais para ser submetido à discussão no segundo Congresso, que se realiza em novembro de 1847. Este Congresso consolida as novas posições da Liga, pondo de lado o que ainda poderia haver de utopismo, ao aprovar em seus estatutos como primeiro artigo os objetivos da Liga que são "a derrocada da burguesia, o domínio do proletariado, a abolição da velha sociedade burguesa baseada sobre antagonismos entre as classes, e a fundação de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada" (15).
A redação do Manifesto
Como resultado do Congresso, Marx e Engels recebem a tarefa de redigir um manifesto para dar publicidade à doutrina da Liga. A partir do Esboço de Confissão de Fé, Engels havia redigido um novo documento denominado Princípios do Comunismo, onde, sob a forma de perguntas e respostas (25 questões), explicava as principais categorias do materialismo histórico e desenvolvia seus princípios.
Esta será a principal fonte direta preparatória do Manifesto do Partido Comunista. A este respeito escrevia Engels a Marx, em novembro de 1847: "pense um pouco sobre a confissão de fé. Acho que seria melhor abandonar a forma de catecismo e chamá-lo de Manifesto Comunista. Uma certa quantidade de história deve ser introduzida e por isso mesmo a forma em que se apresenta é inadequada" (16). Marx e Engels trabalham juntos no Manifesto logo após o Congresso, em dezembro de 1847, mas a redação final, a expressão literária, são inteiramente de Marx.
O Manifesto do Partido Comunista é escrito em estilo apaixonado, ao calor de uma revolução, em vésperas de acontecer. É em fevereiro de 1848, que surgirá a primeira edição alemã do Manifesto, impressa em Londres por J. E. Burghard, sem os nomes de Marx e Engels. O impacto da revolução na França encobre a força propagandística do Manifesto que, "na época, logrou uma divulgação apenas diminuta e não teve inicialmente influência sobre o andamento dos acontecimentos" (17). Mesmo assim, duas outras edições anônimas são publicadas em alemão ainda em 1848. A primeira tradução inglesa é feita por Helen Macfarlane, e é publicada em 1850, na revista cartista Red Republican, conforme assinalam Marx e Engels no Prefácio à edição alemã de 1872, onde pela primeira vez assinam como autores. Seguem-se inúmeras outras traduções do Manifesto, conforme assinalam os distintos prefácios que, a partir de 1883, após a morte de Marx, são assinados apenas por Engels. Em 1888, outra edição inglesa é publicada por Samuel Moore, revisada e com notas acrescidas por Engels, que a ela se refere no Prefácio à edição alemã de 1890. Aliás, sobre a trajetória do Manifesto, suas correções, adequações históricas, explicações, cabe notar o papel dos Prefácios às suas diversas edições. Passados 150 anos, o Manifesto é uma das obras mais editadas (senão a mais) no mundo inteiro, tendo sido traduzido para todos os idiomas em todos os países.
Apesar de concisa e mal-apanhada, esta visão historiográfica posta até aqui permite determinar as vertentes principais que estão na gênese do Manifesto: as batalhas de classe e convulsões político-sociais da época histórica, a profícua produção teórica ao calor do debate teórico-ideológico e a intensa atividade política no seio do movimento operário em curso. São estas vertentes que irão dar ao Manifesto, no dizer de Pierre Vilar seu caráter peculiar de "primeira obra-prima da história-síntese, da história explicação" (18), e primeiro programa político fundado em bases históricas.
O papel histórico do proletariado como questão chave do Manifesto
Ao se analisar a trajetória historiográfica do Manifesto e situá-lo nos dias de hoje, impõe-se, sobretudo, refazer sua leitura política. É sob esta ótica que aqui se propõe destacar alguns temas centrais e retomar sua perspectiva. Não se pretende, pois, uma exposição sistemática das partes do Manifesto, nem uma discussão sobre o desenrolar do processo histórico e todos os pontos programáticos ali postos (obviamente envelhecidos em muitos aspectos). O que se quer é tão somente resgatar seu caráter político eminentemente atual: são os principais conceitos e categorias do materialismo histórico introduzidos pelo Manifesto e por ele postos em movimento que consubstanciam a relação teoria/política em uma perspectiva revolucionária e lhe confere a qualidade de programa político do proletariado.
É a descoberta do papel histórico do proletariado a questão chave do Manifesto. Não é uma idéia casual, surgida apenas no contexto das condições imediatas. É uma proposição científica, fundada na história real, que parte de dentro da análise do próprio processo de desenvolvimento do capitalismo.
Descrito de forma viva e sensível, o movimento de origem, evolução, ascensão e conquista do poder pela burguesia é mostrado como "um complexo processo de longa duração e de múltiplas ramificações" (19) que termina por simplificar os antagonismos de classe reduzindo-os a dois beligerantes: a burguesia e o proletariado. A época histórica progressista da burguesia que "só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais" (20) se esgota quando o gigantesco desenvolvimento das forças produtivas não encontra correspondência nas relações de produção. Marx e Engels ilustram este processo com a imagem do "feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais que desencadeou" (21). Das entranhas do próprio desenvolvimento do capitalismo surge uma nova época histórica, a do proletariado, já que "a burguesia não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que empunharão estas armas – os operários modernos, os proletários" (22).
O proletariado atravessa estágios diferentes até constituir-se como classe independente: de massa desorganizada, desenvolve-se, através de lutas locais contra os capitalistas/antagonistas imediatos, formando sindicatos e associações, até alcançar a condição de lutar como classe para derrubar o capital em escala nacional. O processo de constituição do proletariado como classe revela, assim, sua característica intrinsecamente revolucionária, pois, "o proletariado não pode erguer-se, por-se de pé. sem fazer saltar toda a superestrutura formada pelas camadas da sociedade oficial" (23). No Prefácio à edição alemã de 1883, Engels, que assina sozinho, prestando um tributo a Marx como pioneiro na elaboração das idéias fundamentais do materialismo histórico, assim sintetiza o papel do proletariado na história: a luta de classes "chegou a uma fase em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode emancipar-se da classe que a explora e oprime (a burguesia), sem emancipar, ao mesmo tempo e para sempre, a sociedade inteira da exploração, da opressão e da luta de classes" (24). Esta idéia central do Manifesto situa a época histórica da revolução proletária de largo alcance e de dentro do próprio processo de desenvolvimento do capitalismo. A ruptura – revolução – surge como elemento inerente ao desenrolar histórico da luta de classes, exigência objetiva do próprio papel da classe operária. A revolução, no entanto. não irrompe de forma espontânea: o fator consciente, na perspectiva comunista, é força propulsora.
Os conceitos e categorias do materialismo histórico introduzidos pelo Manifesto colocam a relação entre a teoria e a política em uma perspectiva revolucionária
Esta visão da história exposta no Manifesto tem caráter teórico e político. Engels diria, mais tarde, ao escrever sobre a história da Liga que: "agora o comunismo já não consistia em exprimir o mais perfeito ideal possível da sociedade, buscado na fantasia, mas sim em compreender o caráter, as condições e os objetivos gerais daí decorrentes, da luta empreendida pelo proletariado" (25). Aqui se condensam teoria e política: a compreensão da história e os objetivos da luta. O papel histórico do proletariado não se concretiza espontaneamente, e sim, na visão comunista, a partir do estabelecimento de seus objetivos: "constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado" (26). Marx e Engels situam estes objetivos no mesmo capítulo do Manifesto em que estabelecem a relação dos comunistas com os proletários e a necessidade de sua organização política, de seu partido, pois "os comunistas são a fração mais avançada e resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais" (27). Daqui emana a idéia de Partido como fator consciente e a teoria de Partido que Lênin, de acordo com as condições históricas e preservando o elemento ativo e dinâmico, irá desenvolver (28).
A perspectiva teórica e política do Manifesto nos tempos atuais
Retomar a perspectiva teórica e política do Manifesto coloca em evidência questões candentes atuais, ao mesmo tempo complexas e polêmicas: teriam as profundas mudanças, particularmente nos últimos 20 anos, ocorridas a nível mundial no sistema capitalista – os chamados processos de "globalização", impulsionados pela vertiginosa aceleração dos avanços tecnológicos – modificado (para alguns, acabado) a luta de classes, retirando de cena os beligerantes até então e colocando outros "atores" sociais? Estaria sendo eliminada a contradição capital X trabalho e substituída por ajustes estruturais X cidadania? Por fim, seriam as transformações tecnológicas, as novas formas do processo produtivo, os novos mecanismos introduzidos na organização social do trabalho responsáveis pela redefinição do papel histórico da classe operária? Por "reduzida" que se encontra teria a classe operária perdido o seu papel?
Até agora, nenhuma dessas questões colocadas obteve sustentação teórica que fosse capaz de deslocar o nexo luta de classes/capitalismo, mesmo sob a nova roupagem da globalização. Ao contrário, a marcha atual do capitalismo expõe mais a olho nu a contradição entre o caráter das forças produtivas e as relações de produção. É certo que em novas condições e com características particulares, nunca, no entanto, o conflito capital X trabalho foi tão agudo, nem o abismo entre as classes tão largo e profundo. As particularidades do alto grau de financeirização e as novas tecnologias desencadeiam um processo de expansão do capital carregado de novas e intrincadas contradições, sem resolver as velhas. Aparece um quadro complexo, onde a mercantilização e alienação do trabalho ganham novas características, ao tempo em que grande quantidade da força de trabalho é eliminada.
Resulta um índice de desemprego nunca antes visto no mundo, acompanhado de violenta perda de direitos dos trabalhadores. Surge um enorme contingente de desempregados e sub-proletários, marginalizados do processo produtivo, constituindo um verdadeiro exército de excluídos. Pobreza e exclusão, em proporções sem precedentes, produtos da atual escalada do capitalismo/imperialismo, contrastam com o elevado índice de lucro e a acentuada concentração do capital.
Este quadro, aqui apenas delineado, longe de "acabar" com a luta de classes, ao contrário, torna-a mais densa. Os atuais processos de "globalização", não conseguem retirar do cenário político o enfrentamento entre a burguesia e o proletariado, nem eliminar seu status teórico enquanto categorias da ciência social. As poderosas forças produtivas desencadeadas pela burguesia a nível internacional, mesmo com suas características novas e percorrendo rotas não previstas, agudizam a contradição com o invólucro que as contêm: as relações capitalistas de produção, que continuam mantendo a classe operária no centro do processo produtivo. As contradições capital/trabalho e burguesia/proletariado permanecem no eixo da explicação da formação econômico social capitalista em qualquer estágio em que se encontre e, como "toda a luta de classes é uma luta política" (29), mais do que nunca, está a exigir a ação política revolucionária do proletariado.
Quanto à argumentação de que a classe operária teria perdido o seu papel porque as inovações tecnológicas e as mudanças no mundo do trabalho estariam retirando sua força no processo produtivo, não se pode confundir a redução absoluta e relativa da classe, analisada por Marx em O Capital (retificando idéia inicial posta no Manifesto sobre o crescimento do proletariado), com o lugar que ocupa na produção, qualidade que lhe dá a condição estratégica capaz de romper as relações capitalistas de produção. Não é a quantidade que define o papel da classe, mas seu lugar ainda insubstituível no processo produtivo que, nas novas condições de alta tecnologia, aumenta a capacidade produtiva, gerando uma extração altamente concentrada de mais-valia e, por conseguinte, um alto grau de exploração do trabalho. Por outro lado, a internacionalização da produção e as novas formas de organização do trabalho imprimem um caráter social cada vez maior à produção, enquanto a grande concentração do capital torna cada vez mais privada a apropriação. A contradição produção social (coletiva) e a apropriação privada (individual), intrínseca ao capitalismo, é insolúvel dentro de seus próprios marcos. O socialismo é a saída histórica, o único regime capaz de resolver esta contradição, transformando a apropriação privada em coletiva.
Mas não teria sido demonstrado pela experiência de sua própria construção que o socialismo se esgotou? Não estaria o apelo político-revolucionário contido no Manifesto e expresso nos objetivos dos comunistas, fora da realidade, com a derrota do socialismo? Os erros cometidos, o dogmatismo na concepção de Partido, a estagnação teórica, a não compreensão das fases de construção do socialismo não teriam abalado de tal forma os alicerces históricos e teóricos do socialismo a ponto de torná-lo "um regime do passado", de um século que já se encontra no limiar de outro?
É verdade que a derrota do socialismo infligiu duro golpe no movimento comunista e nas forças revolucionárias mundiais. Causou pesado impacto sobre a luta dos povos. Provocou brusca mudança na correlação de forças em âmbito internacional. Mas não destruiu seus próprios alicerces teóricos e históricos, porque "não se baseiam em idéias e princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve diante de nossos olhos" (30). Hoje, impulsionado pelo projeto neoliberal, o capitalismo/imperialismo ganha novo alento, mas não arranca as raízes das contradições que lhes são inerentes. E "diante de nossos olhos" a perspectiva socialista se coloca real e realizável. Porque "os comunistas (…) representam e defendem também, dentro do movimento atual, o futuro do movimento" (31).
O que a história do século denominado por Hobsbawn de "breve século XX" (32) conta é o nascimento do socialismo, não sua morte. Projeta sua perspectiva futura, não seu confinamento no passado. O que a derrota do socialismo põe a nu é a incompreensão dos mecanismos de transição ao socialismo, é o dogmatismo na análise de novos fenômenos, é a estagnação teórica, é a cristalização política. Mas não apaga as marcas históricas feitas pela primeira experiência socialista no mundo. Traz, sim, entranhados, ensinamentos também históricos e de longo alcance. Indica que o caminho revolucionário para o socialismo é intrincado, repleto de particularidades, exigindo muita criatividade teórica e política. Revela, sobretudo, que não há modelo universal de socialismo, sua realização necessita partir do material histórico existente, de acordo com época e lugar, segundo as condições concretas e as peculiaridades de cada país.
Ao se fazer a leitura política do Manifesto não se pode deixar de chamar a atenção para uma das idéias chaves ali desenvolvidas: o internacionalismo proletário. Esta idéia relaciona-se com o processo de expansão da burguesia, descrito de forma brilhante por Marx e Engels, introduzindo conceitos que guardam extraordinária contemporaneidade: "mercado mundial"; "caráter cosmopolita da produção"; "interdependência universal das nações" (33). O antagonismo burguesia X proletariado é internacional, a luta do proletariado é internacionalista: visa a emancipação de toda a humanidade. Particular importância assume hoje o conceito de internacionalismo proletário diante dos novos e vorazes mecanismos de globalização capitalista, empurrados pela ofensiva neoliberal que busca atrelar o mundo ao seu projeto.
Novos e instigantes desafios se afiguram para o internacionalismo proletário, conceito de princípio, construção renovada, mantém a força e o vigor no brado emitido pela primeira vez há 150 anos, ao final do Manifesto: "Proletários de todos os países, uni-vos".
* Professora de Ciências Políticas da UFBA.
Notas
(1) Da carta de lançamento do projeto de comemoração dos 150 anos do Manifesto Comunista em reunião internacional a ser realizada entre 13 e 16 de maio de 1998, em Paris. A carta é assinada pelo Bureau de organização, coordenado por Francette Lazard.
(2) LÊNIN, V. I. Obras Escogidas, tomo I, Editorial Progresso, Moscou, 1979, p. 223.
(3) MARX, K. & ENGES, F. Selected Correspondence, Progress Publishers, Moscow, 1955, Carta de Marx a Engels, 9 de abril de 1863, p. 140.
(4) FERNANDES, Florestan. Em Busca do Socialismo, Últimos Escritos & Outros Textos, Xamã, São Paulo, 1995, p. 169.
(5) ENGELS, Friedrich. “Prefácio à Edição Alemã de 1890”, in Marx, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, Ediciones en Lenguas Extrangeras, Pekin, 1973, p.19 e p. 21.
(6) Ver MARX, Karl. O Capital, Abril Cultural, SP, 1984, vol. 1, tomo 2, p. 293, quando diz: "com a diminuição constante do número de magnatas do capital, os quais usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a extensão da miséria, da opressão (…) da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista" (grifo meu).
(7) Sobre a cronologia dos escritos de Marx e Engels ver Dicionário do Pensamento Marxista, editado por Tom Bottomore, Jorge Zahar, RJ, 1988, p. 410.
(8) ENGELS, Friedrich. “Contribuição à História da Liga dos Comunistas”, in MARX, K. & ENGELS, F. Obras Escolhidas, em três tomos, Alfa-Ômega, SP, s/d, vol. 3, p. 157.
(9) ENGELS, Friedrich, Idem.
(10) Observe-se que aqui não se pretende uma cronologia expositiva dos escritos de Marx e Engels neste período até 48, mas apenas levantar os principais antecedentes teóricos do Manifesto.
(11) MCLELLAN, David. Karl Marx, Vida e Pensamento, Vozes, RJ, 1990, p. 170.
(12) ENGELS, Friedrich. “Contribuição à História da Liga dos Comunistas”, in op. cit., p. 159.
(13) Idem, p. 160.
(14) Ibidem, p. 160.
(15) Citado por MCLELLAN, David, op. cit., p. 193. Ver, também, nota 116, p. 188, que se refere aos estatutos do primeiro Congresso.
(16) MARX, K. & ENGELS, F. Selected Correspondence, op. cit., Carta de Engels a Marx, 23-24 de novembro, 1847, p. 45.
(17) ABENDROTH, Wolfgang. A História Social do Movimento Trabalhista Europeu, Paz e Terra, RJ, 1977, p. 27.
(18) VILAR, Pierre. “Marx e a História”, in Hobsbawm, História do Marxismo, vol. I, Paz e Terra, RJ, 1987, p. 116.
(19) FERNANDES, Florestan, op. cit., p. 54.
(20) MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, op. cit., p. 36.
(21) Ibidem, p. 40.
(22) Ibidem, p 41.
(23) Ibidem, p 47.
(24) Ibidem, p. 8.
(25) ENGELS, Friedrich. “Contribuição à História da Liga”, op. cit., p. 158.
(26) MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto, op. cit., p.50.
(27) Ibidem, p. 50.
(28) Sobre a concepção de partido, sua historiografia, as principais polêmicas, ver nosso artigo “Qual Partido?”, in Princípios n. 23, Anita Garibaldi, SP, nov/dez/jan de 1992.
(29) MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto, op. cit., p. 45.
(30) Ibidem, p. 50.
(31) Ibidem, p. 75.
(32) Refere-se ao subtítulo do livro de Hobsbawn, Eric. Era dos Extremos, Companhia das Letras, SP, 1995.
(33) MARX, K. & ENGELS, F. “Manifesto do Partido Comunista”, in Obras Escolhidas, op. cit., p. 24.
EDIÇÃO 47, NOV/DEZ/JAN, 1997-1998, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65