Depois de três anos de aplicação do Plano Real, o Brasil está muito mais dependente do exterior. Neste ano de 1997, o país precisará de mais de 50 bilhões de dólares de dinheiro de fora para fechar suas contas internacionais. O desequilíbrio é generalizado. Na balança comercial – o saldo entre o que o país exporta e que importa – havia um saldo médio de 10 a 15 bilhões de dólares entre 1984 e 1994; com o real, o saldo transformou-se num déficit; de 3,0 bilhões, em 1995; de 5,5 bilhões em 1996; e, tudo indica, mais de 10 bilhões este ano. Em turismo, o buraco aberto é também espetacular: foi de 3,6 bilhões, em 1996, e prevê-se para 1997, 5 bilhões. Na conta de fretes, em virtude de os governos recentes terem praticamente desmontado a marinha mercante nacional, o déficit, que era de menos de 1,5 bilhão de dólares em 1992, foi de 3,5 bilhões em 1996 e pode passar de 4 bilhões de dólares este ano. As remessas de lucros por parte das empresas estrangeiras instaladas no país nunca foram tão altas: de menos de meio bilhão de dólares em 1992. E dispararam em 1997: só no primeiro semestre já foram de 3 bilhões. E, a conta mais pesada, por conta dos pagamentos de juros e amortizações da dívida externa, simplesmente dobrou: pulou da média de 10 bilhões entre 1987 e 1993, para mais de 20 bilhões entre 1994 e 1996.

De onde virão os dólares para tapar esse estrago? Cerca de 30 bilhões virão de novos empréstimos: uns 20 para pagar as prestações – do principal e juros –, da dívida que vence este ano; e mais uns 10 de dívida novíssima (A dívida do país cresceu muito com a abertura de Collor e muito mais com o Real. Em números redondos, a dívida total, que contabiliza a dívida estatal e a das empresas aqui instaladas, tanto de curto quanto de longo prazo, foi de 120 bilhões para 150 bilhões, de 1990 para 1994; chegou a 180 bilhões no final de 96; e é estimada para 190 bilhões de dólares ao final deste ano.)

Ficam faltando, portanto, 20 bilhões para cobrir o buraco. Como isso será feito? Parte poderia vir das reservas, que estão perto de 60 bilhões de dólares. O governo, no entanto, só fará isso em último caso.
Na estratégia oficial, o nível atual de reservas é sinônimo de tranquilidade. O governo acha que, se esse nível começa a baixar, os investidores externos podem entrar em pânico e fugir em massa. Há poucos meses, quando começou a crise monetária na Ásia, as reservas diminuíram. A preocupação do governo foi tanta que fez o Conselho Monetário Nacional aprovar uma medida incrível: autorizou os bancos a tomarem dinheiro emprestado lá fora, mesmo sem terem a quem emprestar aqui dentro – o dinheiro pode ser aplicado em títulos do Tesouro Nacional, aos quais se garante juros reais dos mais altos do mundo e, ainda, correção cambial. Ou seja, se o Real tiver de ser desvalorizado, o governo cobre a diferença na hora de pagar os dólares.

Sem poder apelar para as reservas e remendar com ela os estragos que causou nas finanças do país, o Plano Real acabou tendo de comemorar os seus três anos adotando um novo lema: o vende-pátria. A ordem agora é vender ou alugar patrimônio nacional – concessões telefônicas ou de exploração de rios, lagos e florestas, empresas estatais, cooperativas ou empresas privadas locais – aos capitais de fora. De novo, o Real apenas deu força nova e acelerou a tendência inaugurada por Collor. Desde 1992 se observa um movimento de venda do controle de empresas privadas nacionais aos capitais de fora.

De acordo com levantamento de notícias de jornal feito pela KPMG Peat Marwick, uma empresa de consultoria sediada no Brasil, de 1993 a meados deste ano, 301 empresas brasileiras foram compradas por estrangeiros: 3 em 1993; 36 em 1994; 62 em 1995; 119 em 1996; e 74, neste primeiro semestre de 1997. O movimento começou pelo setor de alimentação – com a venda de empresas como a Pilar, de Recife, fundada em 1875 e entregue à Nabisco e à Bunge Bom, e da Lacta, paulista, vendida à Phillip Morris. O setor nacional de eletrodomésticos praticamente desapareceu: a francesa SEB comprou a Arno, a sueca Electrolux comprou a Prosdócimo, a Continental foi adquirida pelo consórcio alemão Bosch-Siemens. No setor de autopeças, de acordo com o levantamento da KPMG, 23 empresas nacionais foram compradas no período 1993-meados de 1997. A Cofap e a Metal Leve, as duas maiores empresas brasileiras do setor, que tinham até presença internacional, foram compradas pela alemã Mahle. De acordo com o Sindipeças, o sindicato dos patrões do setor, das 1300 indústrias que atuavam na área em 1995 e que eram praticamente todas brasileiras, até o ano 2000 cerca de 1000 terão sido fechadas ou adquiridas pelas 300 sobreviventes – e todas terão ou controle ou participação de capital estrangeiro.

Outro setor cujo controle pode sair do país é o de bancos e seguradoras. O grande negócio do capital estrangeiro nesse campo foi a tomada do Bamerindus. O senador Andrade Vieira, dono do banco, dirigente do PTB, tentava se articular a um grupo com participação de capitais privados nacionais para enfrentar crise antiga no Bamerindus. Mas o Banco Central trouxe clandestinamente para o Brasil uma equipe do Hong Kong and Shangai Banking Corporation e forçou a venda do banco a esse grupo inglês (a revista Veja diz que o HSBC não pagou nada – e ainda levou um troco). O Multiplic, de um banqueiro carioca, foi vendido ao Lloyds, também britânico. O Santander, espanhol, comprou o Banco Noroeste e o Banco Geral do Comércio. O setor de seguros nacional sumiu em poucos meses. A Allianz, alemã, elevou de 20 para 50% sua parte na seguradora do Bradesco, a segunda do setor. A Aetna americana passou a controlar a Sul América, a primeira seguradora do ranking, por 425 milhões de dólares. A espanhola Mapfre, a alemã Hannover e a americana Liberty Mutual adquiriram o controle acionário da Vera Cruz, Hannover Paulista e Paulista Seguros. O Itaú associou-se à suiça Winterhur. A Cygna americana anunciou agora a compra de 50% da corretora do Unibanco.

A corrida estrangeira ao setor deve-se a um conjunto de medidas recentes do governo: o fim da proibição de firmas estrangeiras terem o controle de empresas de seguros, a quebra dos monopólio estatal do resseguro e a abertura da previdência privada e dos seguros de acidentes de trabalho.

A venda de patrimônio privado nacional a estrangeiros vem sendo um processo contínuo e amplo envolvendo centenas de negócios. Em geral – com meia dúzia de exceções – eles, no entanto, não muito altos. O total teria atingido uns 20 bilhões de dólares nos últimos quatro anos e meio. É pouco para cobrir os rombos que o Real já provocou e continuará provocando, a curto prazo. O governo quer mais dinheiro e rapidamente. Seu negócio, então, é acelerar a venda do gigantesco patrimônio acumulado pelo povo brasileiro na forma de empresas estatais. O governo já vendeu a Vale do Rio Doce, está vendendo a Rede Ferrroviária Federal. Quer vender a Telebrás e suas 27 operadoras nos Estados, além de 10 concessões de telefonia celular, muito valiosas. Só isso daria uns 45 bilhões. Quer vender também 34 estatais de energia elétrica, o que daria mais 50 bilhões para jogar no buraco do desequilíbrio externo dos próximos anos. Quando o governo anunciou o Real, o plano era outro: a equipe de Fernando Henrique Cardoso achava que a questão do endividamento externo e da dependência do país eram problemas superados; que o mundo do dinheiro havia entrado numa nova era, de internacionalização, na qual as diferenças entre externo e interno eram problemas da época dos dinossauros – só existiriam na cabeça de intelectuais do movimento popular e patriótico que não teriam percebido que o mundo mudou. Resumidamente, nas contas do governo, a equação do Real era a seguinte. Com a mudança da conjuntura internacional e o grande afluxo de capitais externos nos anos 1990, estava encerrada a fase da política cambial armada por Delfim Netto no início dos anos 1980, de continuada desvalorização da moeda nacional para favorecer os exportadores e garantir um saldo comercial elevado para pagar a dívida externa. Essa política, diziam os realistas, implicava numa forte contenção das importações – essenciais para a modernização tecnológica do país. E tinha grandes reflexos inflacionários: como o governo era o grande devedor, era ele quem tinha de comprar dólares a taxas cada vez mais altas, tendo que emitir muito para fazer isso, seja em dinheiro ou títulos públicos.

Até aí seus argumentos não tinham nada de novo: a oposição democrática e popular à política de Delfim Netto durante o Regime Militar também dizia a mesma coisa. A diferença estava no passo seguinte: a política cambial. Para a equipe de FHC, e em particular para o atual presidente do Banco Central, Gustavo Franco, que desde 1993 comanda a política externa da moeda brasileira, o Real deveria se caracterizar pela implantação de um mercado de moedas no Brasil livre da interferência abusiva do Estado, na qual o BC atuasse apenas como um controlador

A ditadura que comanda dois presidentes

O Brasil de hoje está muito distante de um regime de democracia popular, no qual os governantes seriam escolhidos por suas ligações mais profundas e diretas com os verdadeiros sentimentos e necessidades do povo trabalhador, que forma a esmagadora maioria da população. Fernando Henrique Cardoso, no entanto, vem exagerando no sentido de piorar ainda mais a democracia elitista que substituiu a ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Para tocar seu projeto de globalização ancorada no dólar, foi aos poucos mudando as características do sistema político estabelecido no país após a redemocratização: passou a governar quase que por decreto, acelerando o uso de medidas provisórias; reformou a toque de caixa a Constituição de 1988, tocando o Congresso tal como um rebanho; desprezou a federação, asfixiando economicamente os Estados; agora trabalha para desfigurar a representatividade política e cassar os pequenos partidos; e para restringir a propaganda política, com uma reforma eleitoral desenhada para reelegê-lo presidente da República.

O atual regime político brasileiro engana muito, diz um conhecido democrata da época da luta contra a ditadura, o jurista Modesto Carvalhosa. Ele é "sacramental", diz ele: reveste-se dos rituais democráticos. Fernando Henrique Cardoso costuma responder aos que o acusam de estar seguindo uma orientação danosa aos interesses da maioria do povo apelando
para essa "cobertura democrática": diz que foi eleito pela maioria e que os seus projetos são aprovados pelo Congresso, também escolhido pela vontade popular. Ele comete um engano comum aos democratas elitistas. Se eleição pela maioria garantisse a qualidade do processo democrático, Hitler, que foi eleito com apoio da maioria dos votos do povo alemão, seria um democrata como FHC. Os generais que governaram o Brasil de 1964 a 1984 e foram todos eleitos no Congresso Nacional, também.

As eleições e as votações por uma assembléia de representantes do povo são parte indispensável do processo democrático; mas sempre se dão sob condições e limitações determinadas que influem decisivamente nos resultados que proporcionam. Um dos aspectos centrais do atual processo político brasileiro, diz Modesto Carvalhosa, é a forma pela qual se transferem recursos do povo para os grandes grupos. "Um verdadeiro exército de especialistas governamentais" elabora intrincados instrumentos de repasse desses benefícios, diz ele. Carvalhosa e outros críticos concentram seus ataques, no atual processo de gestão da economia através de medidas provisórias do presidente e de resoluções, circulares, normas e portarias do outro presidente, o do Banco Central. E têm razão: em última instância, o regime político que tenta se consolidar no Brasil poderia ser representado por uma imagem tirada da revista inglesa The Economist – o operador de uma mesa do open market global fica observando o mercado e ditando ao governante de plantão o que deve ser feito. A imagem poderia ser completada com as observações feitas por Carvalhosa: o governante, então, vai fazer com que a decisão que veio de cima seja revestida com roupagens democráticas, como as aprovações pela imprensa, pelo Congresso etc.

O sistema financeiro brasileiro serve diretamente hoje a cerca de 30% da população. Setenta por cento do povo sequer têm conta em banco, mesmo a mais simples, na forma das cadernetas de poupança. No entanto, o regime autoritário de Fernando Henrique Cardoso trata os interesses do sistema financeiro, a estabilidade da moeda na qual ele se apóia, como a questão número um da segurança do país. Os plutocratas estão inquietos e ameaçam levar seus capitais de novo para fora do país, porque o México quebrou e as contas externas do Brasil parecem seguir o mesmo caminho? Então, muito bem: aumentem-se as taxas de juros a níveis estratosféricos, para agradá-los; editem-se a seguir todas as medidas provisórias que sejam necessárias para que os grandes bancos não quebrem e possam ser incorporados por outros, maiores, de preferência estrangeiros. "Mas isso eleva os juros a serem pagos pelo Estado, desmantela o projeto de gastos sociais que o próprio governo acabou de enviar ao Congresso!", objetam alguns. Não importa!, diz FHC; o importante é a estabilidade e a integração. Os partidos que apóiam o governo chamam a esse processo de democracia, sem adjetivos. É compreensível que o façam. Na verdade, trata-se de um tipo de ditadura do grande capital. e não como um definidor da cotação que a moeda brasileira teria em relação à de seus principais parceiros internacionais, ao dólar, em particular.

Apoiado em reservas internacionais de mais de 40 bilhões de dólares, acumuladas em função de uma política de juros altos garantida desde a gestão de Marcílio Marques Moreira, ministro da Fazenda de Collor desde maio de 1991, o Real foi criado tendo como sua âncora básica, uma política de liberdade de compra e venda de dólares jamais vista na história brasileira. E, de início, pareceu funcionar maravilhosamente. A economia brasileira, que vinha crescendo desde o segundo semestre de 1992, após a dramática recessão de início do governo Collor, disparou: no primeiro semestre do real, o segundo de 1994, a taxa de crescimento econômico disparou para 15% em termos anuais, como no apogeu do Regime Militar; os salários reais, a massa salarial subiram; o desemprego continuou caindo; e a moeda nacional, milagre dos milagres, sem que o Banco Central comprasse um dólar sequer, começou a subir – em fevereiro de 1995 um real valia 25% mais que um dólar. Era a festa para se comprar lá fora, para os turistas brasileiros, para todos os importadores. E mesmo para a massa popular compradora de bens no país, que não só deixara de ter seus salários corroídos pela inflação galopante de 40% ao mês, como também continuava a comprar a crédito, graças a financiamentos externos – como já vinha acontecendo desde 1992 – e internos obtidos pelo comércio e pela indústria.

O mercado livre de moedas do real logo desabou, no entanto. Em dezembro de 1994 o México quebrou em função de uma política semelhante à do real: apoiada na maciça entrada de capitais externos e num grande déficit na balança comercial. Em março de 1995 o governo foi forçado a mudar a política de câmbio livre e passou a intervir continuadamente no mercado de moedas, no sentido de empurrar o dólar para cima, mais ou menos como Delfim fazia. De lá para cá, todos os números básicos das previsões que o governo fazia para um futuro risonho do Plano Real foram jogados no lixo. O governo mandou para o Congresso no início de 95 o seu Plano Plurianual de governo para 1996-99 prevendo um saldo na balança comercial positivo, de 1,5 bilhão por ano. Previa um déficit de 11 bilhões de dólares por ano nas chamadas transações correntes – que contam os saldos de comércio e de serviços – lucros, turismo, fretes, juros – mais as transferências unilaterais, basicamente as remessas de dinheiro para o Brasil por parte de nossos emigrantes nos EUA e Japão. Previa que a dívida interna do país iria diminuir, basicamente porque iria parar de comprar dólares através do Banco Central para honrar os pagamentos externos. Todas essas previsões foram furadas escandalosamente. Restou mexer num aspecto que o Real tinha desde o início: a venda de 21 bilhões de dólares de patrimônio federal, ao longo de vários anos, basicamente para ter uma margem de segurança nas contas nacionais e para investir no setor social.

Outra opção seria mudar a política cambial mais uma vez e voltar a comprar dólares exatamente como Delfim fez no início dos anos 1980, quando começaram os grandes saldos da balança comercial brasileira: com uma desvalorização brusca e forte da moeda nacional. Mas isso seria contra os interesses dos que armaram o Real: favoreceria todos os exportadores; por outro lado, prejudicaria todos os que hoje ganham tomando dólares a juros baixos lá fora para trocar com títulos do governo aqui dentro a juros muito altos. A saída, para eles, foi então esquecer as promessas sociais e acelerar a venda do país aos estrangeiros.

Um dos mais persistentes mitos do Real é o de que ele vem sendo um dos mais fantásticos planos de distribuição de renda da história brasileira, uma ação que teria eliminado grande parte da pobreza existente no país. Como toda boa mentira, essa se apóia em meias-verdades:
1) É verdade que de julho de 1994 até o começo de 1995 a estabilização monetária e o crescimento de alguns setores industriais, especialmente a indústria de bens duráveis, acelerou o crescimento econômico do país, que atingiu, em alguns poucos setores, níveis extraordinários; 2) é verdade que, nesse período, os salários médios se elevaram, a massa global de salários cresceu e o desemprego diminuiu.

A verdade por inteiro, no entanto, é outra. Entre meados de 1995 e agora, em meados de 97, a economia brasileira entrou num processo que os economistas chamam de stop-and-go, anda e pára, ditado pelas limitações da dependência externa. O elevado crescimento promovido pelo consumo com base no endividamento do segundo semestre de 1994 agravou todos os desequilíbrios da economia nacional. E, para corrigi-los, sem mexer no essencial, o governo pisou violentamente nos freios. Do segundo trimestre de 1995 ao segundo de 1996, o crescimento econômico foi praticamente zero. A seguir, num movimento ditado pela aproximação das eleições, o governo começou a soltar os breques e o crescimento novamente se acelerou. No início de 1997, o crescimento baseado na expansão do crédito e no consumo de bens duráveis passou a dar sinais de fraqueza, com a elevada inadimplência e a formação de estoques no comércio e na indústria. A essa altura, o governo já se preparava para pisar nos freios, novamente, em virtude dos enormes desequilíbrios no balanço de pagamentos verificados no final de 1996. Todas essas brecadas tiveram efeito violento sobre o emprego – tanto a quantidade quanto a qualidade dos postos de trabalho – e sobre a renda, tanto o salário médio, quanto a massa salarial e os outros tipos de rendimentos da população ocupada de forma precária.

Quem paga a conta e quem lucra com o Real

No Brasil, do total da riqueza produzida, menos de 25% vão para os salários, mais de 75% são do capital. Essa proporção vem crescendo desde meados dos anos 1960. Quando faz propaganda dos feitos do Plano Real, além de omitir que as melhorias na renda familiar foram provisórias e limitadas, o governo deixa de lado também esse fato essencial: a renda das famílias é parte pequena da riqueza produzida no país. A parte do leão é dos rendimentos do capital – dinheiro das empresas e do Estado, para investimento e reposição do capital gasto. Nos rendimentos do trabalho está o dinheiro para gastos pessoais das famílias tanto dos capitalistas e latifundiários, como dos trabalhadores e pequenos proprietários em regime de produção camponesa. Nas estatísticas da distribuição de renda no Brasil, diz um grupo de estudiosos do IPEA, se nota com nitidez que o problema maior da concentração está no alto. Quando se comparam os números de vários países, vê-se que a camada de renda mais alta no Brasil é a que mais se distancia da camada imediatamente anterior.

O governo utilizou também outras meias verdades para vender a propaganda do real. Uma das principais se baseou no uso das pesquisas mercadológicas que separam as "classes sociais" em cinco – A, a mais rica, B, C, D e E, a mais pobre. Essas pesquisas definem o que são essas "classes" basicamente em função dos bens duráveis que possuem. Com o crescimento muito grande do consumo desses bens de 1991 para 1997, muitas famílias saíram da classe E, deixando – no entendimento do governo – a pobreza. A compra desses bens, no entanto, foi feita a custos muito elevados, tanto mais altos quanto mais pobres os compradores, em função da taxa de juros e da inadimplência. E isso tem reflexos sobre o consumo de outros bens, mesmo alimentos, cujos preços foram os que menos cresceram nesses três anos. O consumo de frango, estável a cerca de um real por quilo, por exemplo, cujo crescimento foi o grande mote publicitário do governo em 1995, caiu em 1996. Muitos trabalhadores que antes levavam quatro a cinco frangos congelados do supermercado para a casa na semana, reduziram essa compra para dois ou três. Outros, além das economias forçadas no consumo de bens essenciais, passaram a vender, a se desfazer, de parte dos bens duráveis comprados, para ter com que pagar o cimento e as telhas necessárias para completar a construção da casa.

* Editado pela liderança do Partido Comunista do Brasil na Câmara dos Deputados. Deputados: Agnelo Queiroz (DF), Aldo Arantes (GO), Aldo Rebelo (SP), Haroldo Lima (BA), Inácio Arruda (CE), Jandira Feghali (RJ), Ricardo Gomyde (PR), Sérgio Santana (MG) e Socorro Comes (PA). Edição de Raimundo Rodrigues Pereira.

EDIÇÃO 47, NOV/DEZ/JAN, 1997-1998, PÁGINAS 14, 15, 16, 17, 18