Regionalização, etapa e limite do processo de globalização
Entre o processo de globalização e o de regionalização existe uma relação dialética. De um lado, o processo de regionalização pode ser entendido como uma etapa no processo de globalização, na medida em que a unificação de políticas e regulações em nível mundial pode ser mais facilmente alcançada por etapas, onde cada bloco submete sua área de influência a determinados padrões,facilitando assim as etapas seguintes de integração; por outro lado, a regionalização é também um limite.
É um limite porque esses mesmos pólos disputam entre si o domínio de áreas de influência e tendem, portanto, a delimitar seus campos de influência através de uma série de mecanismos políticos e econômicos, que vão desde tarifas externas comuns, regras de origem, até formas mais profundas de integração, como moeda única, podendo até mesmo chegar à unificação política.
O fato dos fluxos de comércio se concentrarem em primeiro lugar intrablocos, em segundo interblocos e por último entre eles e os não-participantes dos blocos dá uma dimensão clara do seu poder de aglutinação. Hoje, aproximadamente 59% do comércio mundial é realizado intrablocos, 23% entre os três grandes blocos: UE-Nafta Japão/Sudeste Asiático e apenas 13% do comércio mundial ocorre entre os países fora desses blocos.
A experiência mais bem sucedida, e também a mais antiga, de formação de um bloco econômico é a União Européia. A mais recente é o Nafta. Há diferenças significativas entre ambas. No caso da UE, em que pese uma aparente predominância da Alemanha, graças à força de sua economia, não há diferenças de grande monta entre os quinze países que hoje formam a União Européia, talvez com exceção dos países mediterrâneos. O Nafta, ao contrário, é apenas uma área de livre comércio imperfeita, aglutinando países de desenvolvimento extremamente desigual. O acordo de livre comércio dos Estados Unidos com o México significou, até certo ponto, uma anexação econômica do México pelos Estados Unidos. E ainda com o inconveniente de não se permitir o livre trânsito de mão-de-obra do México para os Estados Unidos. É bem elucidativo desse fato o incidente provocado pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Albert Gore, durante a campanha eleitoral. Ao defender a aprovação do Nafta afirmou que o mesmo traria para a economia americana os mesmos efeitos estimulantes que a compra da Lousiania aos franceses no século passado. A recente crise mexicana reflete a forma desequilibrada como se deu a integração das duas economias.
É possível afirmar, ainda, que esse processo de "globalização com regionalização" está associado ao esgotamento de um determinado modelo de funcionamento do capitalismo mundial. Tal modelo, com sua base tecnológica apoiada na II Revolução Industrial, sua base produtiva no modelo "fordista" de produção e sua base socioeconômica no "Estado de bem estar social" e nas políticas keynesianas de estabilização, esgotou seu ciclo. E como não há crise sem saída, o que vemos à nossa frente é uma nova configuração do capitalismo mundial, da qual a globalização com regionalização é uma característica destacada. Ao mesmo tempo em que a produção, o comércio e as finanças, sob o comando dos grupos financeiros internacionais, tornam-se cada vez mais integrados em nível mundial, os trabalhadores, vítimas do ressurgimento de formas agressivas e brutais de intensificação da produtividade do trabalho, vêem ser contestada, cada vez mais, o seu direito de organização. A busca obsessiva do aumento da produtividade tem levado tanto à adoção de formas inovadoras de organização do trabalho – o "toyotismo" –, cujo objetivo é obter a máxima intensidade do trabalho e o máximo rendimento de uma mão-de-obra totalmente flexível, como ao retorno a formas de exploração características do início do capitalismo, a exemplo do trabalho doméstico, envolvendo todos os membros da família, inclusive crianças, resultado do processo predatório de terceirização de atividades rotineiras. O que essas novas e antigas formas de exploração do trabalho têm em comum é a necessidade da mais completa desregulação do mercado de trabalho e a contestação aberta do direito de organização sindical.
Do ponto de vista dos interesses nacionais, é importante destacar que a globalização neoliberal – e o caso do México é exemplar – está longe de ser a panacéia universal.
Quando se fala em globalização, abertura de mercados, maior integração mundial no comércio e na produção, normalmente se dá a esse discurso uma conotação positiva, de algo de interesse universal, como a liberdade, a democracia. Bem vistas as coisas, entretanto, esse processo tem um centro de controle – alguns poucos Estados nacionais e as tais 200 a 300 grandes empresas que hoje dominam o cenário econômico mundial – que elege os problemas que serão considerados realmente importantes. Sempre haverá, portanto, tomando outras perspectivas, problemas não contemplados e soluções não satisfatórias. O Nafta, por exemplo, pode ter trazido benefícios para uma parcela da sociedade mexicana integrada a esse circuito produtivo mundial e que, pela dimensão do descontentamento social que se espraia pelo país, é bem pequena. Os eventos de Chiapas, no entanto, fazem parte desse mesmo quadro. Os problemas dos agricultores daquela província mexicana certamente não encontram resposta nos marcos da nova situação. O mesmo se pode dizer em relação aos milhões de desempregados que existem hoje no mundo capitalista, não importa o grau de desenvolvimento de cada país.
Vale ainda destacar que a esse processo, ao qual, correta ou incorretamente, deu-se o nome de globalização, está associada uma ideologia. E muito embora não seja correto dizer que a globalização é simplesmente uma ideologia, não há como negar que existe uma "ideologia da globalização", o neoliberalismo, que articula os interesses do capital financeiro internacional e, com um grau relativo de contradições, das nações ou blocos imperialistas, em plano mundial. Não é de estranhar que sejam esses os beneficiários maiores da globalização seus mais destacados arautos e propagandistas.
Como recentemente observou o economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr. "globalização vem servindo de biombo para políticas indefensáveis, ou difíceis de defender, nos campos cambial, monetário, comercial e tributário. Os males provocados pelas decisões ou omissões da política econômica nacional são descarregados sumariamente em cima da "globalização".
Dizer, enfim, que a globalização é um processo irreversível do qual ninguém, em canto algum do planeta, pode escapar, e que nada pode ser feito a não ser deixar-se levar pela enxurrada, é a forma mais cômoda de justificar a submissão passiva do país ao sistema econômico internacional – e esta tem sido a escolha das classes dominantes no Brasil e de seu governo.
O aprofundamento a que assistimos, neste final de século, da internacionalização do capitalismo, se, de um lado, é um desdobramento necessário do seu próprio processo de acumulação, de outro, é facilitado pela ação consciente das nações imperialistas e de suas empresas, que são os seus beneficiários diretos. Jamais teríamos chegado a tal ponto não houvesse a mão visível de Estados nacionais poderosos, moldando toda a máquina institucional que facilita e impulsiona esse processo. Não há nele, portanto, nada de inexorável e irreversível.
EDIÇÃO 47, NOV/DEZ/JAN, 1997-1998, PÁGINAS 12, 13