O debate sobre a exploração ilegal dos nossos recursos na Amazônia está na ordem do dia. Tem envolvido vários setores da sociedade e motivado especialmente os habitantes da Região para lutar contra o que vem se chamando de biopirataria. As Assembléias Legislativas de estados como o Acre e o Amazonas têm debatido a questão. E a discussão já está sendo travada no Congresso Nacional.
A Comissão de Biopirataria na Amazônia (Comissão Externa para Apurar Denúncias de Exploração e Comercialização Ilegal de Plantas e Material Genético na Amazônia), criada pela Câmara dos Deputados em agosto de 1997, encerrou seus trabalhos três meses depois em novembro. Presidida pela deputada comunista Socorro Gomes (PCdoB/Pará), investigou denúncias de exploração e comercialização ilegal de plantas e material na Amazônia por multinacionais farmacêuticas norte-americanas.

A partir de depoimentos de pesquisadores e autoridades públicas, a comissão tomou contato com várias modalidades do que se tem denominado como "biopirataria ": coleta de sangue de membros de comunidades indígenas, de besouros e borboletas, o patenteamento da aplicação de produtos resultantes do conhecimento tradicional de comunidades indígenas e muitas outras.
O texto a seguir é a íntegra das considerações gerais do relatório final da referida Comissão. Relatório final da comissão de biopitataria da Câmara dos Deputados

A consciência sobre a importância da biodiversidade é crescente nos últimos anos. A Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada durante Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992, no Rio de Janeiro, e ratificada por cerca de 170 Países, ampliou este debate para as nações do mundo, em especial no Brasil. Não simplesmente por ter sido da Conferência Mundial, mas sobretudo pela importância do País, como megadiverso.

O Brasil abriga altíssima diversidade biológica, principalmente nas florestas amazônica, atlântica e cerrado, dentre outros biomas. Segundo o Professor Paulo Kageyama, pesquisador da ESALQ-SP (Escola de Agronomia da USP), em palestra proferida durante o Seminário Binacional de Pesquisa da Amazônia, promovida na Universidade Federal do Acre, em julho de 97, "em um só hectare (10.000 metros quadrados) da floresta amazônica, existem cerca de 500 espécies vegetais diferentes e cerca de 50.000 espécies de animais e microorganismos. No mundo existem cerca de 50 milhões de espécies e somente 1,5 milhão são conhecidas".

A florestas tropicais ocupam apenas 6% da superfície terrestre, mas possuem provavelmente a metade das espécies do planeta. 54% das florestas tropicais úmidas estão na América Latina e Caribe.
Os doze países megadiversos são: Brasil, México, Colômbia, Equador, Peru, Zaire, Madagascar, China, Índia, Indonésia e Austrália. Juntos estes países possuem 70% das espécies de vertebrados, borboletas e plantas superiores.

A produção de medicamentos a partir de substâncias sintéticas já esbarra em sérios limites, fazendo com que a indústria farmacêutica dependa cada vez mais da biodiversidade. Hoje estão no mercado cerca de 40 drogas produzidas por biotecnologia, e estão em testes 270 outras drogas. Neste caso as florestas tropicais, e em especial a floresta amazônica, possuem uma riqueza imensurável. Pouco conhecida. E é nesse quadro que se dá o saque, o assalto à nossa biodiversidade.

Em países como o Brasil, que possuem grande diversidade biológica, um outro aspecto se soma, potencializa ainda mais o valor dessa riqueza. Trata-se da existência de populações nativas – ribeirinhas, caboclas e especialmente as comunidades indígenas com acumulado conhecimento dessas espécies desenvolvendo práticas tradicionais da utilização com fins medicinais, partindo de experimentos primários. Compreende-se portanto que essa imensa biodiversidade, somada ao conhecimento milenar da populações nativas na utilização dessas espécies, representa na ótica da indústria química e farmacêutica bilhões de dólares. O conhecimento tradicional pode representar, segundo especialistas, uma economia de cerca de 80% dos investimentos necessários para a fabricação de um remédio. Uma droga para ser produzida e levada ao mercado custa cerca de 350 milhões de dólares em um período que leva de 5 a 13 anos e gera cerca de 1 bilhão em lucros anuais. Portanto, a economia que o conhecimento tradicional possibilita é da ordem de 300 milhões de dólares.

Diante dessa realidade, é perfeitamente compreensível o interesse das grandes potências na nossa biodiversidade, especialmente os Estados Unidos que detêm maior desenvolvimento biotecnológico do mundo – hoje existem nos Estados Unidos 1.308 empresas de biotecnologia, com lucro estimado em 13 bilhões ao ano. O que é inexplicável e inaceitável porém, é a cumplicidade do governo brasileiro com o criminoso saque dessa riqueza, que nem mesmo conhecemos.

A apropriação de nossas riquezas biológicas e o envio para laboratórios estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos e Europa, onde são submetidas a testes e análises para posterior utilização em remédios e cosméticos, configura-se num verdadeiro saque e não data de agora. O professor Frederico Arruda, do Instituto de Ciência Biológica da Universidade do Amazonas afirma que já denuncia o problema há mais de uma década. Estima-se que saem da Amazônia cerca de 20 mil extratos por ano para laboratórios estrangeiros. Não se tem idéia sobre regiões, também ricas em diversidade genéticas como a Mata Atlântica e Cerrado.

O acesso livre às amostras da biodiversidade amazônica (flora e fauna) a supostos pesquisadores e missionários, financiados por grandes laboratórios internacionais, tem promovido o assalto às nossas riquezas.

A comissão de Sindicância da Assembléia Legislativa do Acre que apurou a biopirataria naquele Estado, constatou que no ano de 1996 mais de 500 quilos de sementes, de várias espécies amazônicas, foram contrabandeadas para outros países, seguramente, para países do G-7 onde o desenvolvimento da biotecnologia é maior. Levam a matéria prima e o conhecimento dos nativos e depois nos vendem, na forma de produto acabado, por preços exorbitantes, sem pagar absolutamente nada de royalties para o Brasil.

Os investimentos em pesquisa na região amazônica são ínfimos. Em 1995, primeiro ano do governo Fernando Henrique, segundo dados fornecidos pela Assessoria de Orçamento da Câmara, o governo investi u apenas R$ 15,8 milhões em pesquisa fundamental e aplicada, nos estados do Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia e Roraima, todos da Amazônia. No ano seguinte, quando a proposta orçamentária já foi elaborada pelo governo FHC, estes investimentos caíram para R$ 5,8 milhões.

Essa política de sucatear nossos centros de pesquisa, colocando-os dependentes de recursos externos, torna vulnerável nossa inteligência científica. Expõe nossos pesquisadores, colocando-os em muitos casos, como meros coletores de materiais biológicos.
Existe em estágio avançado, uma proposta para implantação em Manaus, de um programa denominado Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (PROBEM).

A iniciativa apresenta aspectos interessantes, particularmente quando pretende realiza um trabalho amplo, de pesquisa e desenvolvimento voltado para a biodiversidade amazônica, passando pelas seguintes fases: coleta de amostras; preparo de extratos; e determinação de propriedades. Estas atividades devem levar à obtenção de produtos de interesse farmacêutico ou agro-industrial.
Registra-se, entretanto, que este programa apresenta alguns defeitos de origem, como o fato de não ter passado por ampla discussão envolvendo a comunidade científica nacional (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e Ministério da Ciência e Tecnologia, dentre outros).

Sua elaboração contou com a participação de mais de uma dezena de organismos estrangeiros (Universidade e centros de pesquisa), quantidade superior à dos organismos brasileiros envolvidos.
As principais objeções que se fazem ao PROBEM entretanto, são de ordem estrutural, e se bem recebidas, poderia servir para ajustar a iniciativa aos interesses nacionais. Cuida-se de um Programa de enorme amplitude, onde se prevê a criação de uma fundação destinada especialmente para gerir suas finanças. Aparentemente, resulta desta estrutura a necessidade de recursos financeiros de origem internacional. Como conseqüência, apresenta-se o organograma do programa encabeçado por um conselho consultivo formado por representantes nacionais e internacionais.

É nosso entendimento que a idéia do PROBEM, poderia ser de grande valia se viesse a ser o resultado de um consenso amplo da comunidade científica brasileira, onde viessem a ser analisados os seguintes aspectos: eventual redução de sua amplitude a um esforço circunscrito à possibilidades do sistema de pesquisa e desenvolvimento brasileiro; posicionamento do conselho consultivo como órgão de assessoramento, sem qualquer superioridade sobre o Conselho Diretor; redução de sua previsão de gastos a valores que se possam obter do orçamento nacional, das áreas de pesquisa e desenvolvimento.

É fundamental que o controle de um grande programa de pesquisa e desenvolvimento visando a biodiversidade amazônica seja inteiramente nacional. Não se trata da rejeição da colaboração internacional, mas, ao contrário, de se buscar melhores conhecimentos sobre nossas riquezas para que possamos estar melhor aparelhados à mesa de negociação. A colaboração de técnicos estrangeiros é bem vinda, mas a direção e o controle do programa, como ocorre nos demais países do mundo, deve estar exclusivamente nas mãos do Governo Brasileiro.

De acordo com dados divulgados pela Organização da Indústrias de Biotecnologia (BIO), há 21 anos foi
fundada a primeira empresa de biotecnologia nos Estados Unidos, Genentech. Hoje existem nos Estados Unidos 1.308 empresas de biotecnologia, com lucros estimados em 13 bilhões ao ano. Algumas poucas empresas no ramo da biotecnologia estão na Europa e no Japão. No ano de 1996 os Estados Unidos despenderam 7 bilhões e 7 milhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento de produtos biotecnológicos, uma média de 71 mil dólares por cada pessoa na indústria de ponta em biotecnologia. Em comparação com outras indústrias, nos Estados Unidos se gasta 7.651 dólares por empregado, especialmente na indústria farmacêutica, esses números chegam a 56 mil dólares por empregado. A indústria biotecnológica é informação-intensiva, e portanto cada empresa tem em média apenas 50 a 100 empregados. Uma nova droga custa cerca de 350 milhões de dólares para ser produzida e lançada no mercado, em período que leva entre cinco a treze anos, e pode dar lucros da ordem de I bilhão de dólares anuais. Hoje estão no mercado cerca de 40 drogas produzidas por biotecnologia, e estão em teste cerca de 270 outras drogas. Estima-se que os países desenvolvidos recebem cerca de 5 milhões e 400 mil dólares anualmente em royalties de produtos das florestas tropicais. Já estão operando nos Estados Unidos cerca de 200 empresas com o objetivo principal de realizar bioprospecção em florestas tropicais, e seu faturamento anual é de cerca de 60 milhões de dólares. Anualmente são retirados da Amazônia cerca de 200 mil exemplares de recursos genéticos. O quanto valem as florestas tropicais como reservatórios de matéria-prima para produtos farmacêuticos? O menor valor estimado é de 43 bilhões de dólares.

SOCORRO GOMES é graduada em História, professora e deputada federal pelo Partido Comunista do Brasil/Pará.

EDIÇÃO 48, FEV/MAR/ABR, 1998, PÁGINAS 24, 25, 26, 27