O livro e o artigo que comentaremos se inserem no debate em curso sobre o significado da ciência. Como se sabe, nas últimas décadas, passou a ser fortemente questionada a atribuição às ciências da natureza de características como objetividade, universalidade e realismo. Pode se ouvir hoje em certos círculos universitários a afirmação de que não há distinção essencial entre a física, a química ou a biologia, de um lado, e a astrologia, a religião ou o senso comum, de outro; todos seriam igualmente construções sociais.

Existem, naturalmente os que se contrapõem a isto, denunciando o irracionalismo e o relativismo extremado que passaram a ocupar um espaço destacado na cultura contemporânea. O problema é que muitas destas denúncias são anacrônicas; não se pode perceber se elas foram escritas recentemente ou no século passado, pois os argumentos são essencialmente os mesmos. Dito de outro modo, muitos dos contemporâneos críticos do irracionalismo e defensores da objetividade do conhecimento científico não levam em conta aquisições duradouras da filosofia, da história e da sociologia da ciência do século XX. Como exemplo destas aquisições, podemos afirmar que a contraposição histórica na filosofia entre o racionalismo e o empirismo como fundamentos para o conhecimento verdadeiro, logo científico, foi posta em um novo patamar, com a conclusão de que não se pode demonstrar a verdade das teorias científicas; de modo que a ciência deve necessariamente conviver com a provisoriedade de seus fundamentos. O mérito dos trabalhos de Paty e de Chalmers é precisamente o de fazer a crítica da ciência, tendo em conta, assimilando, aquelas aquisições. É notável também que argumentação convergente apareça em tradições distintas (francesa e anglo-saxônica), aparentemente sem um diálogo entre estes autores.

O texto de Paty é dedicado ao "exame da questão da relatividade ou da universalidade na construção e apropriação dos conhecimentos científicos". Ao invés de tomar a universalidade da ciência como um dado não questionado o autor argumenta que aquela universalidade aparece como tendência que vem se constituindo historicamente. "A realidade da ciência e das relações de dominação no mundo atual colocou em evidência a ambigüidade essencial da 'universalidade da ciência"', e, continua Paty, "a crítica atual da 'universalidade da ciência' é, antes de tudo, uma crítica da ciência enquanto serva da economia, que regula as relações de força no mundo", concluindo, no entanto, que "se nos atermos unicamente a esta consideração, perdemos o fio de Ariadne que nos ligava à intuição de que não deve ser totalmente desprovida de sentido a idéia de uma universalidade da ciência". Paty recorre à filosofia e à história para argumentar que "a idéia de universalidade nasce com a idéia de razão, com a invenção dessa forma nova e específica do pensamento que é a filosofia, que faz sua aparição, entre o sexto e o quarto século a.C., como uma transformação do pensamento mítico e ritual".

O autor francês argumenta também a favor da relação histórica entre as idéias de universalidade, de razão e de humanidade, embora esta última só tenha aparecido bem mais tardiamente. Se a universalidade não está dada de antemão, sendo mais uma busca que um fim, sua construção exige, então, "a aceitação da diferença". Para examinar as diferentes tradições científicas, suas transmissões, suas assimilações, o autor parte da premissa de que "a idéia de universalidade, assim como as de razão e de ciência (…) às quais ela está constitutivamente ligadas, traz consigo a exigência de sua própria crítica", o que se revelou particularmente adequado para se superar as limitações de uma cultura local ou para possibilitar a comunicação entre as culturas.

Paty conclui com a idéia de que a busca da universalidade é constitutiva da atividade científica tanto a contemporânea, quanto aquelas mais antigas; concluindo que: "nenhuma dessas ciências era ou é universal mesmo a nossa, isto é, explicita o autor, aquela na qual nos situamos, que é a 'ciência contemporânea' –, mas todas visavam, na medida em que exprimiam a dimensão de conhecimento do homem – conhecimento da natureza e de si próprio –, alguma coisa não diferente do que chamamos universalidade".

O livro de Chalmers pode ser considerado o desenvolvimento do último capítulo de uma outra obra sua (O que é a ciência afinal?, Brasiliense, 1993), que tem feito sucesso pelo seu didatismo na exposição das principais correntes da filosofia da ciência do mundo anglo-saxão. Em A fabricação da ciência, ele continua o exame das posições de autores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend, mas aqui o autor pretende principalmente expor seu próprio ponto de vista.

Chalmers, considera uma aquisição da filosofia da ciência o reconhecimento da inutilidade da busca de um método científico universal e a-histórico, o qual permitiria distinguir ciência de outras formas de conhecimento, mas evita a conclusão, sugerida por Feyerabend, de que esta inutilidade deveria nos levar a abandonar a busca de qualquer método e a considerar o conhecimento científico equivalente a quaisquer outras formas de conhecimento. Chalmers define o objetivo da Física – enquanto disciplina científica – como a busca permanente de "teorias e leis extremamente gerais e aplicáveis ao mundo físico". Aqui já encontramos um traço importante de seu pensamento, pois ele evita deliberadamente generalizar para todo e qualquer campo disciplinar características extraídas da reflexão sobre uma destas disciplinas. Chalmers argumenta que suas formulações, ainda que propositalmente genéricas, "bastam para ajudar a combater as formas mais radicais do relativismo e do ceticismo".

Chalmers recorre ao arsenal da história da ciência, com ênfase no caso da ciência galileana, para uma crítica com dois alvos distintos.

De um lado Lakatos e Popper, que embora antipositivistas em aspectos fundamentais, compartilharam a busca de uma metodologia científica universal e a-histórica. De outro lado o anarquismo de Feyerabend e o relativismo de alguns sociólogos contemporâneos do conhecimento. O argumento desta última crítica está centrado na tese de que a "ciência pode e frequentem ente tem sido praticada de uma forma que atende predominantemente aos interesses da produção do conhecimento, mais do que é subserviente a outros interesses de classe, ideológicos ou pessoais". Chalmers não defende, contudo, uma assepsia da ciência; sua tese é que é possível distinguir o objetivo da ciência de outros objetivos, mas não que seja possível separá-los. Por esta razão dedica todo um capítulo à "dimensão social e política da ciência", onde defende a "necessidade de controle dos limites e finalidades do conhecimento científico".

As irônicas palavras finais de Chalmers são reveladoras da eficácia política destas análises epistemológicas: "os problemas sociais e políticos [o golfo entre ricos e pobres e entre os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos se amplia, o ambiente está sendo destruído e paira a ameaça da eliminação da vida] que estão a nossa frente são urgentes e vitais. Não penso que esta causa seja auxiliada por concepções da ciência como conspiração capitalista masculina ou como algo impossível de distinguir da magia negra ou do vudu".

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 80