Ciência, contradições e pensamento não-clássico
Nascido em Curitiba é, atualmente, com 68 anos, professor titular da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, responsável pela área de lógica, coordenando um grupo de pesquisadores. No exterior, da Costa foi professor visitante e pesquisador de diversas instituições.
É autor de O conhecimento científico (1997), Sistemas formais inconsistentes (1993). Ensaios sobre os fundamentos da lógica (1980) dentre outras obras, e possui mais de duzentos artigos publicados em revistas, especialmente internacionais.
As lógicas criadas pelo professor da Costa foram batizadas de lógicas paraconsistentes pelo filósofo peruano Miró Quesada. Para Patrick Suppes. "os trabalhos de Da Costa se desenvolvem em mais de um campo. Seu trabalho nos fundamentos da matemática e lógica paraconsistente são muito conhecidos. Ele escreveu também artigos originais e significativos sobre os fundamentos da mecânica clássica e os tópicos referentes à física. Em diversos países já existem um bom número de excelentes alunos, agora cientistas com atividade própria, que ele incentivou".
As pesquisas lógicas de da Costa modificam alguns dos princípios clássicos do pensamento que têm governado a razão humana desde Aristóteles.
Em sentido amplo, uma lógica é paraconsistente se pode ser utilizada em teorias inconsistentes mas não triviais. Para isso o famoso princípio clássico da não-contradição deve ser restringido para que apareçam contradições. Mas, ao mesmo tempo, deve-se procurar evitar que, de duas premissas contraditórias, se tire nenhuma ou qualquer conclusão.
A revista Princípios, em sua edição número 23, publicou um artigo de Newton da Costa denominado “Lógicas não clássicas ou heterodoxas”, onde o leitor pode encontrar mais informações sobre os temas da presente entrevista, que apresenta, em uma de suas passagens, uma crítica às idéias de Popper sobre a dialética Princípios: Antes de entrarmos especificamente na lógica paraconsistente, o senhor poderia falar um pouco também de seus outros trabalhos ou linhas de investigação?
Newton da Costa: Sempre trabalhei, principalmente, em lógicas não-clássicas, isto é, lógicas que, de uma ou de outra maneira, diferem da lógica clássica. Dentre elas, cito as lógicas paraconsistentes, as paracompletas e as não-aléticas; dediquei especial atenção, por exemplo, à lógica deôntica. Também me ocupo dos seguintes tópicos: teoria dos modelos, teoria dos reticulados, indução e probabilidade, fundamentos da física e filosofia da ciência.
Em teoria dos modelos, desenvolvi uma teoria estrutural da quase-verdade (ou verdade pragmática), que apliquei à indução e à probabilidade. Grande parte do que tenho feito nos últimos anos, por outro lado, refere-se sobretudo aos fundamentos da física (particularmente em colaboração com o físico brasileiro F. A. Doria).
Hoje em dia minha atenção centra-se quase que exclusivamente em fundamentos da física e em filosofia da ciência. Minhas eventuais publicações em lógica são em geral feitas em colaboração e redigidas por meus colaboradores, que são excelentes.
Princípios: O senhor poderia nos dizer, em resumo, em que consiste a lógica paraconsistente?
Newton da Costa: Duas proposições, uma das quais é a negação da outra, chamam-se contraditórias. Se um sistema de premissas ou uma teoria dedutiva têm como lógica subjacente a lógica clássica, e encerram proposições contraditórias, eles são triviais, isto é, pode-se deduzir tudo (tudo é provável). A lógica paraconsistente destina-se à manipulação de teorias ou de sistemas proposicionais inconsistentes (encerram contradições), embora não sejam triviais.
Dois exemplos: 1) Sistemas de informação que encerram contradições são tratados diretamente por meio de lógicas paraconsistentes. Isto ocorre, por exemplo, em sistemas especialistas, os quais, sendo suficientemente ricos, normalmente envolvem informações contraditórias. 2) Há teorias matemáticas (ou físicas) que, na sua origem, eram contraditórias, continham contradições, e tiveram que ser modificadas, completamente transfiguradas, para poderem subsistir tendo por base a lógica clássica. No entanto, as versões originais e contraditórias podem ser sistematizadas tendo por base a lógica paraconsistente, o que dá nascimento a indagações e a resultados deveras significativos. Tal é o caso, para exemplificar, do cálculo infinitesimal.
Princípios: A lógica paraconsistente se contrapõe a alguns princípios da lógica clássica?
Newton da Costa: Diria, para ser mais preciso, que, na minha formulação, a lógica paraconsistente generaliza a lógica clássica, o que implica na limitação de diversos princípios clássicos, particularmente, o da contradição (ou da não-contradição).
Existem certas proposições como "Esta chovendo aqui, agora", que se comportam bem, satisfazendo os princípios básicos da lógica tradicional, inclusive o da contradição (de acordo com o qual, de duas proposições contraditórias, uma delas é falsa). Não pode ser verdade que aqui e agora esteja e não esteja chovendo. Isto seria absurdo. Para proposições semelhantes à acima referida, vale a lógica clássica.
Mas vejamos exemplos onde se constata que pode haver derrogação do princípio da contradição:
1) Um dos conceitos relevantes da biologia é o conceito de vida (e o de morte). Para se saber se um homem, por exemplo, está vivo ou morto, o problema não é simples. Torna-se necessário o uso de critérios que vão sendo cada vez mais finos e precisos, com o envolver das ciências biológicas. Suponhamos que haja um critério k para que o organismo esteja vivo e um critério I para que o organismo esteja morto (tanto para a vida quanto para a morte desejamos critérios positivos e empíricos). Muitas vezes esses critérios podem se superpor (há contradição); outras, eles não decidem todos os casos (há incompletude). A lógica clássica supõe que sempre é possível se melhorar os critérios desse tipo, de modo a se evitar contradições; a lógica paraconsistente, por seu turno, não faz tal suposição e aceita que as contradições, em determinadas circunstâncias, parecem não poder ser evitadas.
2) Em matemática, há conceitos, como o célebre conjunto de Russel, que representaremos por R, os quais nos conduzem quase que diretamente a contradição (R é o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a eles mesmos). A solução tradicional consiste em se eliminar a contradição mediante a negação da existência de R. A lógica paraconsistente admite a existência abstrata de R e trata de estudar suas propriedades, mesmo as mais estranhas e exóticas. A presença de R na teoria dos conjuntos, juntamente com os conjuntos usuais, não a torna trivial nem causa problemas técnicos insuperáveis. Unicamente se chega a uma nova matemática, mais geral e ampla do que a comum. Além disso, a lógica paraconsistente, concebida apenas como técnica lógico-formal, qual uma pura álgebra, encontra aplicações as mais diversas, como, por exemplo, em informática, inteligência artificial, robótica e física (há formulações paraconsistentes da lógica quântica).
Princípios: No caso das ciências humanas e sociais, a lógica paraconsistente já está sendo utilizada; por exemplo, no direito. Ela não fica restrita às áreas das ciências exatas e suas aplicações. O senhor poderia dar alguns esclarecimentos, tecendo alguns comentários sobre essa questão?
Newton da Costa: Qualquer código jurídico é passível de conter contradições. Não existe código jurídico (forte), até hoje, que não tivesse contradições. Veja-se, para fixar idéias, a Constituição brasileira. É fácil de se verificar que há partes da mesma que contradizem outras. Aliás, uma jovem advogada escreveu um trabalho sobre as contradições da Constituição Brasileira. Então, como é que se trata semelhante problema?
Na realidade, procede-se de maneira "empírica", via regras ad hoc. Evidentemente, a lógica clássica, como já se observou, não se aplicaria, sem restrições, à derivação das conseqüências lógicas da Constituição em apreço. Ao pé da letra, do prisma lógico tradicional, banalizar-se-ia a Constituição: qualquer proposição seria dela dedutível. Mas, com a lógica paraconsistente, tal resultado não ocorre. Assim, poder-se-ia supor que a lógica subjacente a um código jurídico seria uma lógica paraconsistente apropriada. Como os códigos jurídicos possuem também a característica da incompletude, contém lacunas, talvez a lógica a eles subjacente devesse ser, além de paraconsistente, paracompleta (na lógica paracompleta, derroga-se o chamado princípio do terceiro excluído: de duas proposições contraditórias, uma delas é falsa).
Convém lembrar que o Direito Constitucional aparentemente envolve uma contradição intrínseca, o conhecido paradoxo da revogação de uma constituição. Quiçá a lógica paraconsistente pudesse ser de valia na análise formal dessa dificuldade.
A lógica paraconsistente também pode ser empregada na sistematização rigorosa de certas teorias jurídicas, como a teoria tridimensional do direito de Miguel Reale.
Tenho investigado os temas que acabei de descrever, em diversos trabalhos, especialmente com o professor Roberto Vernengo, catedrático de Teoria Geral do Direito da Universidade de Buenos Aires, e que é internacionalmente conhecido nos meios jurídicos.
Aspectos da lógica atual
Princípios: Como o senhor trabalha em lógica?
Newton da Costa: A lógica hoje está tão desenvolvida, que se pode dedicar toda a vida a ela e conhecer tão somente uma pequena fração de seu conteúdo presente.
Atualmente, a lógica não se reduz à investigação das leis válidas do pensamento; este tema apenas constitui uma das lógica. Há outras, na inteligência artificial, na física, na programação, nos fundamentos da matemática, na própria matemática e nas ciências humanas. Comumente se acredita, também, que a lógica se resume no cálculo proposicional e no cálculo de predicados de primeira ordem, com ou sem igualdade. Isto é enganoso. A lógica é muito mais do que esses cálculos, os quais constituem, no entanto, dois dos pilares da lógica viva.
Quando se identifica a lógica ao estudo das leis do pensamento válido ou aos elementos dos cálculos referidos, ela é transformada em assunto matematicamente trivial. Porém, como já insisti, não é isso que acontece, e em seu domínio se fizeram algumas das mais relevantes descobertas de nosso século, tanto do ponto de vista matemático (sublinho que a lógica faz parte da matemática), como dos prismas tecnológico e filosófico. Basta que se arrole alguns exemplos: os teoremas da incompletude de Gödel, a elaboração da teoria abstrata da computação por Turing e outros, a programação lógica, a teoria das descrições de Russel, a teoria da verdade de Tarski e a edificação das matemáticas não-cantorianas, como a de Solovay.
Assim, respondendo à sua pergunta, trabalho em lógica exatamente como o matemático trabalha em matemática.
Princípios: É possível afirmar que a lógica é básica para se entender o mundo?
Newton da Costa: A lógica enquadra-se entre as disciplinas matemáticas, como a álgebra e o cálculo diferencial e integral. Sob tal aspecto, ela nos ajuda a entender o mundo como qualquer outro ramo da matemática.
Porém, um sistema lógico pode ser utilizado como alicerce de concepções do mundo. Eles estão intimamente relacionados, por exemplo, com a ontologia. Logo, são básicos para a compreensão racional do mundo, do universo.
Lógica e dialética
Princípios: Além da lógica paraconsistente, há também a lógica fuzzy que está relacionada com a noção de processo…
Newton da Costa: Falando por alto, a lógica fuzzy é uma lógica que trata exatamente de conceitos vagos, aproximados.
No entanto, com algumas modificações, ela se aplica a determinadas categorias de processos. Um processo é algo que se desenvolve no tempo e no espaço, muitas vezes não está sujeito a contornos bem definidos. No mundo real, tudo é processo, de conformidade com a ciência atual. Nós, por exemplo, somos efetivamente processos: começamos, desenvolvemo-nos e desaparecemos.
A lógica fuzzy, interpretada como teoria formal dos processos, é a lógica da vida comum e do mundo real, que subjaz as aparências. Assim, um organismo vivo não tem contorno fixo, está permanentemente expelindo e incorporando partículas elementares, modificando-se, perdendo matéria, cambiando de forma etc. O fato de parecermos bem definidos é uma ilusão. Tudo é confirmado pela mecânica quântica; segundo esta, uma partícula elementar, como o elétron, sob certos aspectos, preenche o universo: não se pode assegurar, com rigor, que ele está aqui e não lá.
Não posso discorrer mais sobre a lógica fuzzy assim concebida, pois teria de ser demasiadamente técnico. Apenas noto que há relações entre ela e algumas concepções dialéticas (as quais, via de regra, são formuladas de forma pouco rigorosa).
Em síntese, do prisma fuzzy, a lógica clássica – entendida como espécie de física do objeto qualquer, do objeto definido e determinado centra-se numa ilusão.
Princípios: Quais são as possíveis conexões entre a lógica paraconsistente e a dialética? O que está sendo pesquisado atualmente em dialética e suas relações com tal lógica?
Newton da Costa: Como não sou especialista em dialética, algumas das coisas que realizei nessa área foram sempre com auxílio de pessoas que conhecem o tema, como o professor Robert G. Wolf, dos Estados Unidos.
Enquanto lógico puro, não me comprometo com nenhuma doutrina filosófica. Com o professor Wolf tentei aplicar certos tipos de lógica paraconsistente na formalização de determinados aspectos da dialética. Simplesmente tomei alguns princípios de uma dada concepção dialética e procurei verificar se não seria possível transformá-los em algo logicamente sensato. Popper sustentava que a dialética carece de fundamento, pois envolve contradições e, por isso, não pode ser alicerçada na lógica clássica; todavia, por outro lado, ele achava que tinha provado que não existia sistema lógico que não fosse demasiadamente fraco para suportar contradições. Assim, a dialética seria logicamente impossível.
Mostrei que existem sistemas lógicos paraconsistentes extremamente fortes, o que contraria Popper, e que esses sistemas talvez sejam aplicáveis à dialética, pelo menos em algumas de suas interpretações (evidências a favor desse fato encontram-se em meus trabalhos com Wolf). Então, a crítica de Popper, segundo a qual a presença de contradições “verdadeiras” inviabiliza logicamente a dialética, torna-se inviável – não está correta. Tenho a impressão de que, após a derrocada da União Soviética, pouco se está fazendo no campo da dialética e de sua lógica.
Princípios: O senhor poderia falar um pouco desse seu amigo norte-americano que trabalhou em dialética e discorrer sobre a recepção de suas pesquisas na então União Soviética?
Newton da Costa: Robert G. Wolf, quando escrevemos juntos alguns artigos, era um filósofo bem jovem, dotado de vasta erudição. No campo da lógica, dedicava-se, além da lógica paraconsistente, à lógica relevante.
Sobre a recepção de meus trabalhos na União Soviética, há um ponto digno de menção, que foi relatado pelo meu amigo Sara Petrov, filósofo marxista búlgaro, que morreu prematuramente.
Quando Petrov completava seu doutorado em filosofia em Moscou, nos anos 1960, havia uma disputa acirrada entre lógicos e matemáticos, de um lado, e os filósofos marxistas, de outro, sobre a dialética e sua lógica. Os primeiros achavam a dialética obscura e vaga, não admitindo a existência de uma lógica dialética. Havia críticas que os partidários da dialética (praticamente a totalidade dos filósofos soviéticos) não conseguiam contestar: não se dispunha, na época, de maneira razoável para se manipular contradições “verdadeiras” e tornar rigorosa a dialética.
Foi então que meus trabalhos sobre lógica paraconsistente, publicados nos Comptes Rendus (da Academia de Ciências de Paris) começaram a ser lidos na União Soviética. Os filósofos soviéticos, em conseqüência, passaram a argumentar que havia uma nova lógica capaz de tornar precisa a dialética, fundamentando-a tão bem como a lógica clássica alicerça a matemática usual. Daí originou uma certa dose de má vontade de matemáticos e lógicos matemáticos soviéticos para com a lógica paraconsistente. Mas isso já foi superado.
Presentemente, na China Popular há um grande desenvolvimento da lógica paraconsistente e da dialética. Há meses prefaciei o primeiro livro chinês de lógica paraconsistente, tratando sobretudo de sua aplicações à informática. Além disso, diversos artigos meus foram traduzidos para o chinês.
Princípios: A lógica paraconsistente é, então, um modelo lógico para dar conta de problemas que são deste mundo, da realidade, ondem existem ou se encerram uma série de contradições que são muito mais profundas do que as do plano formal. Logo, essa lógica paraconsistente seria uma radicalização desse ponto de vista formal para se tentar entender esses fenômenos do mundo contingente?
Newton da Costa: A lógica paraconsistente (existem infinitos sistemas lógicos para consistentes) é disciplina matemática. Ela foi desenvolvida acima de tudo sob este prisma, pelo menos em meu trabalho.
No entanto, o que acabei de afirmar não implica que não pensasse em algumas aplicações futuras, como na dialética, na solução de determinados paradoxos, como os de Zenão de Eléia, e na psicanálise. Porém, não havia investigado a fundo essas questões, ao contrário do que ocorreu com a motivação matemática, pura. Se aceitarmos motivações vagas, intuitivas, heurísticas, então, evidentemente, houve motivações amplas e multifacéticas.
Assim, saber se determinado sistema lógico capta as contradições do mundo real, se elas de fato existem, cabe ao cientista, por exemplo ao físico, e ao filósofo decidirem.
Sou, no momento, agnóstico com relação à existência de contradições reais, incapazes de serem eliminadas de nosso conhecimento empírico mediante análise apropriada, supondo-se que tal problema tem sentido. Além dessa contradições “metafísicas”, reais, há as gnoseológicas, provenientes das sistematizações de nosso conhecimento – estas, sim, existem e podem ser tratadas paraconsistentemente.
Aplicações da lógica paraconsistente
Princípios: O que o senhor pode nos dizer das aplicações da lógica paraconsistente?
Newton da Costa: Em geral, classifico as aplicações da lógica paraconsistente em cinco grupos: filosóficas, matemáticas, relativas às ciências naturais, referentes às ciências humanas e as aplicações tecnológicas.
Na filosofia, a lógica paraconsistente contribuiu para o esclarecimento do conceito de negação, para a formalização da dialética, para a análise da teoria dos objetos de Meinong, para a teoria da ciência e a melhor compreensão da racionalidade, entre outras. No tocante à matemática, mostra-se, por exemplo, que há matemáticas paraconsistentes alternativas à usual e que a versão original do cálculo infinitesimal, que era inconsistente (l'Hospital) pode ser reconstruída paraconsistentemente. Mas somente o futuro decidirá qual o papel que a paraconsistência finalmente terá na matemática.
No domínio das ciências empíricas, lembro que a paraconsistência está relacionada com a mecânica quântica, como Dalla Chiara e Giuntini patentearam, bem como o problema da compatibilização de teorias prima facíe irreconciliáveis, como a mecânica referida e a relatividade geral.
As ciências humanas, por seu turno, compõem um campo fértil para possíveis aplicações da paraconsistência. Já se procurou utiliza-la em economia e antropologia.
Na tecnologia, particularmente nas áreas ligadas à informática, encontram-se as aplicações mais óbvias. Tem-se, por exemplo, programação paraconsistente, lógica do default paraconsistente, e sistemas especialistas paraconsistentes. Como a lógica fuzzy e a paraconsistente estão intimamente correlacionadas e dada a vasta gama de usos da primeira, percebe-se a relevância tecnológica, potencial, da segunda.
Princípios: Acompanhando o desenvolvimento do final do século XIX e, agora, do século XX, parece que a ciência está a procura de novos caminhos. A exemplo das novas geometrias que aparecem no século passado, em nosso tempo, surgiram a mecânica quântica, a teoria do caos e as novas lógicas. Como o senhor vê esse desenvolvimento da ciência?
Newton da Costa: Sustento que a criação das lógicas não-clássicas é algo mais ou menos situado ao nível da construção das geometrias não-euclidianas. Antes de 1820, quando um físico ou qualquer pessoa falava de espaço, queria significar o espaço da geometria euclidiana, da geometria comum – nascida como disciplina racional na Grécia Antiga. Quando Lobatchewski, Bolyai, Riemann e outros tantos começaram a desenvolver novos tipos de geometria, mas acima de tudo após a relatividade geral- que pressupõe uma geometria não-euclidiana – isso provocou uma revolução na ciência: foi quebrado um paradigma duas vezes milenar. Com a lógica sucedeu transformação similar.
As lógicas não-clássicas principiaram a ser edificadas sobretudo a partir do início deste século. Elas representaram um rompimento com o paradigma lógico tradicional. Porém os novos paradigmas em geometria foram assimilados bem mais facilmente do que em lógica, o que talvez seja compreensível, posto que a lógica é extraordinariamente mais fundamental que a geometria. Muitos cientistas e filósofos não conseguem ver bem a razão de mudanças tão profundas e recusam a aceitá-las. Todavia, contra fatos não há argumentos.
Naturalmente, quando se raciocina, quando se formula dada teoria, recorre-se implícita ou explicitamente a uma lógica. E ao se recorrer a certa lógica, precisamos previamente tê-la escolhido. Antes do surgimento das lógicas não-clássicas não havia a etapa da escolha, pois somente se conhecia a lógica tradicional. Assim, ao se tratar da física ou da semiótica, pode-se pensar em se empregar lógicas diversas da clássica. A situação é complexa, embora interessante. E o mesmo se passa hoje com temas como a dialética de Hegel ou a marxista. Desde que há várias lógicas, ao se investigar um assunto, é ao investigador que comete descobrir qual a melhor lógica que a ele se adapta.
Na relatividade geral, a forma do espaço-tempo não está determinada a priori. Einsten descobriu as equações basilares, sendo que as diversas categorias de soluções prescrevem as 'formas' possíveis do universo. Gödel descobriu soluções em que o tempo é recorrente, e as viagens no tempo se mostram logicamente exeqüíveis. Embora as soluções de Gödel não sejam, ao que tudo indica, fisicamente aceitáveis, talvez no futuro o sejam, devido a alguma transformação profunda de paradigma.
A física tem passado, neste século, por mudanças de paradigmas efetivos, análogos ao hipotético que descrevi, para sublinhar a magnitude dos câmbios. Em síntese, defendo a tese de que o que ocorreu e está ocorrendo em física é análogo ao que aconteceu e está acontecendo em lógica. A elaboração das lógicas não-clássicas constitui uma das maiores realizações do ambiente cultural de nossa época.
Acredito que na marcha permanente das ciências, visando ao progresso, tanto no domínio das ciências formais (lógica e matemática), como no das reais (naturais e humanas), a característica constante consiste na quebra sistemática de paradigmas. Porém, não se trata de destruição total e completa. Assim, a mecânica newtoniana foi, é e será eternamente verdadeira dentro de limites estritos; e a lógica tradicional valerá para sempre no âmbito de contextos de tipo bem definido.
* Entrevista feita por Edvar Bonotto, mestre em filosofia do direito pela PUC-SP, com a participação de Geordy Pereira, Fábio Palácio, Cristiano Capovilla e Marize Conti, e foi realizada em setembro de 1997 na USP.
EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72, 73