Ciência e tecnologia: a serviço de um projeto nacional
Como qualquer outra atividade humana, a ciência e a tecnologia não podem ser discutidas fora da realidade social em que se realizam, ou seja, das relações sociais de produção.
Ninguém desconhece que a ciência e a técnica, no seu sentido mais amplo, são a energia que move o desenvolvimento das forças produtivas e o motor do progresso e do domínio crescente do homem sobre a natureza. Visto assim, é algo intrinsecamente positivo, associado à própria natureza do homem, ser superior, matéria que tem consciência de si própria, com capacidade de modificar seu próprio meio.
Não é possível desconhecer, entretanto, que para produzir os bens e serviços permitidos por essas tecnologias os homens estabelecem relações sociais entre si e que essas relações sociais geram dinâmicas de acumulação que podem excluir pessoas, classes sociais e mesmo nações inteiras dos frutos do progresso alcançado pelas novas técnicas. Aliás, foi exatamente nisso que Marx vislumbrou a contradição maior do capitalismo e a semente de sua própria destruição enquanto regime social.
Discutir, portanto, ciência e tecnologia no abstrato, como se fosse algo que estivesse acima das relações sociais que descortinam as atividades humanas inovadoras, é uma forma de alienação que as pessoas verdadeiramente preocupadas com o progresso humano não podem se permitir.
Desde que o progresso tecnológico tornou-se uma das principais armas da concorrência capitalista, as atividades de pesquisa e inovação tecnológica, como não poderia deixar de ser, tiveram grande impulso. Não se pode, porém, daí derivar a idéia, incorreta, de que o progresso tecnológico ou as revoluções científicas e tecnológicas são atributos exclusivos do capitalismo.
É bem verdade que tendo se tornado importante instrumento da concorrência capitalista, a tecnologia passou a ocupar, no capitalismo, um lugar de grande destaque. Contudo, antes da primeira e da segunda revolução industrial, marcos importantes da constituição e consolidação do regime capitalista, a humanidade conheceu outras revoluções tecnológicas tão importantes e tão significativas, anteriores à existência do capitalismo. Será que o uso do fogo não propiciou também à humanidade alterações importantes na sua forma de viver? E o polimento da pedra e sua utilização como instrumento produtivo e de caça, ou a fusão dos metais também não foram descobertas importantes que mudaram radicalmente a relação do homem com natureza no seu afã diário de produzir e reproduzir-se? Então, ciência e tecnologia não são um problema exclusivamente do capitalismo, embora com ele tenham adquirido um novo status.
O desenvolvimento da ciência e da técnica é um problema da humanidade. Deste modo, deve ser visto, antes de tudo, como um desafio de todo o gênero humano e não necessariamente associado às exigências da acumulação do capital.
Infelizmente, muitas vezes confunde-se desenvolvimento com desenvolvimento material e desenvolvimento material com desenvolvimento capitalista. Ou seja, atribui-se aos termos ciência e tecnologia um conteúdo ideológico, tornando-os apanágio de uma classe social, a burguesia, e instrumento de sua luta política e não da humanidade como um todo, como deveria realmente ser. Ocorre, assim, uma apropriação dessas palavras, dessas atividades humanas, pelos interesses e objetivos do capital.
Não se pode estabelecer um sinal de igualdade entre ciência e tecnologia e capitalismo ou, mesmo, mero interesse na produção. No Brasil, infelizmente, nesse estágio da chamada globalização, que às vezes é confundida com a terceira revolução tecnológica, se mistura tudo: terceira revolução tecnológica, globalização, neoliberalismo. Há, entretanto, uma esfera de autonomia entre as três coisas. A revolução tecnológica é uma conquista, é um avanço da humanidade; a globalização é fruto desse desenvolvimento capitalista, e o neoliberalismo é pôr esse desenvolvimento capitalista a serviço das nações ricas e a serviço das parcelas mais ricas da população dentro do capitalismo, como temos testemunhado no Brasil e no mundo inteiro.
A ciência deve ter um conteúdo e um compromisso com a elevação do bem-estar material e espiritual da humanidade, dos povos, das pessoas. Quando um professor faz doutorado em História ou em Sociologia, reside nesse fato também um esforço no sentido de remover a ignorância, remover obstáculos para que a humanidade compreenda o seu próprio desenvolvimento e a sua própria evolução. Fazer ciência não significa ter como resultado um produto que vai ser levado para o mercado.
O fundamental e decisivo é que a produção científica passe pelo crivo da sociedade e não apenas ou exclusivamente do mercado, que é somente uma dentre as muitas instituições da sociedade. Desde que a sociedade promove, patrocina e sustenta a atividade científica, também é democrático que ela exerça o controle, não no sentido da censura, mas no sentido de que aquilo também tenha um objetivo, uma função coletiva e uma função cooperativa.
Devemos discutir a tecnologia também como uma coisa muito prática. Numa sociedade dualista como a nossa, onde coexistem setores atrasados com setores avançados, de ponta, corre-se o risco de tratar esses diferentes setores de maneira muito desequilibrada, muito desigual. Como bem lembrou em artigo recente o jornalista Washington Novaes, se a mandioca fosse americana o mundo estaria comendo manioc flakes e milhões de dólares estariam sendo investidos para desenvolver variedades mais produtivas, resistentes a pragas etc. Como é brasileira e a principal alimentação da população pobre, nada se faz, e os engenhos de produção de farinha vão fechando às centenas pelo país afora.
Registre-se, aliás, o esforço do governador de Pernambuco, Miguel Arraes, que ainda no segundo governo andou à cata de sementes, de matrizes de sementes de mandioca, a maniva, que haviam se perdido nos cultivos de Pernambuco. E é a segunda maior produção agrícola do Brasil, embora não conste das estatísticas e nem receba nenhum tipo de apoio nem financiamento para o plantio. Aliás, por se falar em sentido prático, registre-se também a observação do mesmo governador Miguel Arraes que, quando perguntado sobre modernidade no Nordeste, afirmou que esta seria cada casa dispor de uma torneira com água potável.
O fundamental e decisivo é que a produção científica passe pelo crivo da sociedade e não apenas ou exclusivamente do mercado
Outro aspecto importante é que o desenvolvimento científico e tecnológico geralmente está associado a um projeto nacional. Não superamos historicamente a fase da existência dos estados nacionais nem da organização das sociedades em estados nacionais. Há os pregoeiros de que isso está superado, mas os pregoeiros propõem sua superação em detrimento das nações mais frágeis e em benefício das nações hegemônicas, das nações mais fortes.
Na chamada economia globalizada as grandes empresas multinacionais não dispensam a força política de seus países de origem para continuarem a dominar os mercados globais. Como afirmou Jeffey E. Garten, subsecretário do Comércio Exterior dos Estados Unidos entre 1993 e 1996, em artigo recentemente publicado na Foreign Affairs (1),
"(…) apesar das mudanças no panorama internacional, o governo e a comunidade empresarial precisam um do outro para atingir seus objetivos. A marca registrada no envolvimento com grandes mercados emergentes é que as empresas americanas dependem de Washington para ajudar na liberalização do comércio, na proteção da propriedade intelectual, na remoção das barreiras regulatórias, no encorajamento permanente das reformas econômicas. Precisam da ajuda do governo para conseguir contratos de peso nos muitos países cujos governos fazem concessões de negócios e em que empresas francesas, alemães ou japonesas contam com o apoio de seus governos".
Discutir ciência e tecnologia no Brasil é colocar a ciência e a tecnologia a serviço do desenvolvimento do País, da elevação da qualidade de vida da população e da soberania e afirmação nacionais. O contrário, ou seja, discutir ciência e tecnologia abstraindo os conceitos de nação e povo é mistificação a serviço das corporações multinacionais.
Parece que para o governo brasileiro não pensa assim. Para ele, ciência e tecnologia não são problemas de governo. Sucessivamente, os governos que têm sido responsáveis pela condução do Estado no Brasil têm adotado uma atitude omissa e, por que não, criminosa, em relação à ciência e à tecnologia em nosso País.
Durante o regime militar, o professor Tales Azevedo escreveu um livro, Evasão de talentos, para denunciar a fuga de cérebros das universidades brasileiras em razão de perseguição política e ideológica.
Hoje, a perseguição ideológica prossegue em novas formas, através da campanha que se move contra o setor público, principalmente contra os funcionários públicos e que torna insuportável, em certa medida, a convivência de pesquisadores, não apenas com os salários, mas também com o desestímulo e a desmoralização promovida pelo próprio governo.
Um pesquisador titular, último nível da carreira, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, com pós-doutorado nos Estados Unidos, é obrigado a conviver com um salário líquido mensal de R$ 1.328,00. É menos, até, do que a bolsa que se paga a alguns pesquisadores que ainda estão em fase de formação. Situação semelhante enfrentam os pesquisador do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (CPqD) da Telebrás. Muitos deles, não recebendo sequer para pagar o aluguel de casa e manter os filhos na escola estão indo trabalhar no exterior, na Espanha, no Canadá e outros países interessados nessa mão-de-obra brasileira ultra qualificada.
Convivemos com o abandono, o sucateamento dos institutos, dos centros de pesquisa, das próprias universidades e o Brasil vai perdendo, vai se distanciando cada vez mais daquilo que pode sustentar e produzir no futuro a qualidade de vida da população.
Não temos hoje uma indústria de microeletrônica. Entre janeiro e setembro de 1997, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Elétrica e Eletrônica (ABINEE), as importações de componentes e produtos elétricos e eletrônicos feitas pelo Brasil alcançaram a cifra de US$ 9,6 bilhões. Como as exportações foram de US$ 2,3 bilhões, o déficit na balança comercial do setor alcançou US$ 7,3 bilhões no período considerado. As previsões para 1997 eram de um déficit superior aos US$ 8 bilhões registrados em 1996, podendo alcançar US$ 9 bilhões.
No setor de biotecnologia, o que fizemos no Brasil foi aprovar uma nova lei de patentes que permitiu a inundação do país com produtos importados. Segundo dados do Ministério da Indústria e Comércio, a balança comercial dos produtos farmacêuticos vêm se deteriorando cada vez mais. Em 1992, era deficitária em US$ 119 milhões. Em 1996, depois de aprovada a nova lei de patentes, que instituiu a figura da patente de importação, isto é, as empresas não precisam mais fabricar o produto no Brasil para ter direito ao monopólio, o déficit foi para US$ 701 milhões, ou seja, um salto de 500%. E ainda há quem diga que a aprovação da nova lei de patentes contribuiu para aumentar os investimentos no Brasil.
No setor de informática também o que fizemos foi dar passos para trás. O que restou no país da incipiente indústria de informática que havia começado a estabelecer-se no país na década de 1980 foram algumas empresas nacionais que se limitam a montar componentes importados do exterior e filiais de multinacionais que têm se instalado no país para montar os seus produtos finais, importando praticamente tudo que tem valor agregado e algum conteúdo tecnológico das suas matrizes.
Nessas áreas, onde há um imbricamento maior entre ciência e tecnologia para formar a indústria do futuro, o Brasil praticamente vai perdendo a capacidade de competir. Enquanto isso o governo acha que vai resolver o problema dando subsídios de centenas de milhões de dólares para implantar fábricas e montadoras que vão se espalhando pelo País afora, como se isso fosse solução.
Discutir ciência e tecnologia no Brasil é colocá-las a serviço do desenvolvimento do país
O Brasil vai perdendo capacidade de competir, e no governo de um cientista social renomado, que se converte justamente na negação das preocupações que manteve no passado. É com melancolia que se vê o país se perder. Pelo menos nesse aspecto, o governo do presidente Fernando Henrique poderia ser exceção. Infelizmente não é, apesar do esforço daqueles que, nos escalões inferiores do governo, tentam fazer a sua parte, de maneira bem intencionada e com seu esforço pessoal. Mas sem uma política central. sem uma orientação de governo, sem uma política de governo não vão a lugar nenhum.
Não podemos alimentar ilusões falsas nem esperanças. O presidente declarou, recentemente, que vai acabar com os Ministérios e entregar a direção dos negócios a agências relativamente autônomas, com forte presença do setor privado, que estão sendo criadas para esse fim. Vai acabar com o Ministério das Comunicações e entregar a política nacional de telecomunicações à agência que foi criada para esse fim, a Anatel; o de Minas e Energia e também atribuir a política do setor as outras duas agência: a Aneel e a ANP. Isso significa o quê? Que não é só a privatização do Estado, é a privatização do governo, ou seja, é a privatização da esfera mesmo da administração, da esfera gerencial, ou seja. a política vai sendo privatizada. Daqui a pouco haverá partidos e parlamentares patrocinados por empresas, como os times de futebol. O povo brasileiro também vai sendo afastado da possibilidade de alcançar perspectivas melhores. em função das posições adotadas pelos governantes.
É isso que, infelizmente, vem prevalecendo, e para que não continue é necessário que a resistência brote da sociedade brasileira. Só o nosso povo é capaz de encontrar as energias renovadas que podem alterar o curso da vida social, da vida ideológica, da vida psicológica do País, e da vida também, no campo da ciência e da tecnologia.
* Deputado federal pelo Partido Comunista do Brasil de São Paulo. O presente texto foi elaborado a partir dos apontamentos para sua exposição no Seminário sobre Política Nacional de Ciência e Tecnologia promovido pela Frente Parlamentar em Defesa do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, ocorrido nos dias 18 e 19 de junho de 1997, na Câmara dos Deputados.
Notas
(1) GARTEN, E. J. “As Empresas e a Política Externa”. Foreign Affairs, edição brasileira. Publicação da Gazeta Mercantil, 09 de maio de 1997, p. 23.
EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 60, 61, 62, 63