Em especial destaque nesta entrevista aparecem questões abordadas em seu livro A Matéria Roubada. que teve grande repercussão nos meios científicos. Foi publicado em francês com o título La matiere dérobée, l'appropriation critique dell' objet de la physique contemporaine, e traduzido e publicado no Brasil pela Edusp em 1995. Destacamos também seu artigo “A idéia da universalidade da ciência e sua crítica filosófica e histórica”, publicado na revista Discurso, n. 28 (1997).

Os problemas do conceito de matéria, da medição na física quântica e generalizações da teoria do caos são abordados pelo entrevistado. A presente entrevista foi realizada em setembro de 1997 em São Paulo. Princípios: Em seu livro A Matéria Roubada o senhor comenta sobre o desenvolvimento do conceito de matéria dos antigos gregos até os dias atuais. Com o avanço da física contemporânea, particularmente da mecânica quântica, vários autores questionam a necessidade de tal conceito. Há ainda razão em conceituar a matéria e, caso afirmativo, como é que podemos dar uma definição filosófica desse conceito?

Michel Paty: Primeiro, gostaria de dizer que a visão de Leucipo e Demócrito não foi sempre a visão de todos os cientistas e filósofos no decorrer da história das idéias. Digamos que a concepção atômica foi retomada sobretudo no final do século passado quando se falou dos átomos e se descobriu que eles tinham realidade física. Mas na verdade não eram mais os átomos de Demócrito, Epicuro e outros. Eram átomos da classificação periódica dos elementos, que são muito diferentes. Não eram mais um conceito de filosofia, mas um conceito físico com características precisas. Depois os átomos foram identificados (no final do século XIX), e suas propriedades físicas revelaram, a partir do século XX, caracteres específicos, como seus níveis de energia quantificada, que mostraram quanto são ainda muito mais diferentes de propriedades clássicas.
O que ficou desse passado longínquo foi a noção, a categoria de pensamento átomos. A idéia geral de que existem partículas indestrutíveis que se conservam e estão na base da constituição material do mundo ainda está de pé. A física de hoje diz, de uma certa maneira, que toda a matéria do mundo é constituída de quarks e de léptons e que existem entre eles interações através de campos. Então, de uma certa maneira, os quarks de hoje são os átomos de Epicuro de ontem.
Agora o fato é de nós sabermos que os conceitos que descrevem, hoje, as partículas elementares como os quarks, os léptons, os bósons de interação dos campos, não correspondem em nada a um objeto que nós podemos imaginar como objetos de nossa experiência quotidiana – uma poeira, por exemplo, uma poeira que está no raio do Sol. Esta foi, na verdade, a fonte intuitiva da idéia de átomos de Epicuro e outros. E nós sabemos que isso não funciona mais, porque essas partículas são quânticas, isto é, descritas por outro tipo de representação do que simples posição e velocidade. Além do mais, sabemos hoje que os quarks e os léptons são puntuais, quer dizer que não tem extensão no espaço. O que pareceria pouco físico se eles, no mesmo tempo não tinham extensão por ser circundados por seus campos de interação, espécies de entidades virtuais responsáveis pelas interações.
Tais partículas têm uma definição espacial de uma precisão extraordinária de 10 centímetros – o que é muito abaixo do átomo cuja dimensão é 10-8: são menores em volume espacial que o átomo por 10-10. Que significa isso? Agente não pode representar tais partículas pela intuição comum, e a ferramenta conceptual que pode nos ajudar na representação de tais entidades é a matemática. Para dizer melhor, são os conceitos matemáticos, em verdade os conceitos físicos com expressão matemática, que nós inventamos. Nesse caso não podemos mais falar desse átomo intuitivo, da noção intuitiva de matéria básica dos antigos, e nós devemos ver que nossa representação da matéria é diferente, ela passa através das teorias físicas que nós temos e que nós continuamos refinando.
O conceito de matéria fica como nosso pedido filosófico para postular que o mundo real, a realidade, objeto do estudo da física, é constituído de matéria. Que, por exemplo, a Lua é constituída de matéria e essa matéria é o que nossas teorias físicas, nossos conceitos, tentam alcançar. Então, matéria é uma categoria filosófica que nós colocamos e a ciência tenta esclarecer suas determinações com precisão. Quando se fala de quarks se fala de matéria implicitamente, quando se fala de campo de interação se fala de matéria, só que essa matéria não é uma coisa que você vai tocar, que você pode ver intuitivamente. Você tem que inventar uma nova intuição para ver isso, e é essa intuição que a física nos dá.

Princípios: Na relação entre a filosofia e os avanços da física, uma questão vem instigando os pesquisadores da área desde o início do século: como medimos o mundo microscópico. Essa questão diz respeito à relação entre o observador e a realidade. Qual a sua opinião sobre essa polêmica, que é célebre desde o debate Einstein-Bohr acerca dos problemas de medida na mecânica quântica?

Michel Paty: A filosofia tem sempre que acompanhar os novos conhecimentos científicos e isso é e será sua tarefa permanente a propósito de qualquer conhecimento.
Este problema – que foi pensado como o problema fundamental da mecânica quântica, e que nós chamamos "problema da medição", isto é, a interação entre o observado com o observador – foi levado a propósito do caráter não-clássico dos objetos quânticos. Se a trajetória não é definida, assim se pensou, é que alguma coisa aconteceu: esta interação no momento da medição ou observação instrumental. Bohr, Heisenberg e outros interpretaram a especificidade quântica como a manifestação do caráter irredutível desta interação, isto é da modificação da realidade pelo observador, sem a qual a realidade não seria conhecida. Daí não teria sentido falar de realidade independentemente da observação, isto é da interferência do observador.
Claramente, se trata de uma aproximação filosófica, mais do que física: Einstein fazia essa crítica contra esta interpretação dominante. O problema levado, filosófico e físico, é o de saber se uma representação do mundo microscópico é possível sem se referir ao mundo macroscópico dos instrumentos de medição. E na verdade, parece que é, através dos conceitos próprios da física quântica e de suas teorias (os chamados números quânticos). Qual é, então, o estatuto exato do problema da medição? Esta é a questão.
Esse problema, colocado como problema da medida ou mensuração na mecânica quântica, é este da conexão entre as descrições dos fenômenos de uma área, digamos da física clássica – a física de nosso alcance mais direto, e de nossos instrumentos de observação –, com as descrições ou representações dos fenômenos do mundo quântico (“microscópico” em geral). Pode ser que esse problema hoje em dia tenha uma solução mais clara que antes. Hoje se fala em termos de coerência dos sistemas quânticos, no limite clássico, que chega a levar a determinação do tipo clássico, a partir de um comportamento especificamente quântico. Se vê que geralmente os problemas fundamentais da física são no final mais problemas de física do que de filosofia, ou seja, quando a física avança no conhecimento novo de fenômenos inéditos, não precisa mais pedir a solução à filosofia do conhecimento. Por outro lado, este conhecimento físico acaba adentrando com novos problemas ao mundo da filosofia: não tanto sobre medição, por exemplo, mas sobre simetrias, determinação, significação da matematização etc.

Princípios: Em seu livro A matéria roubada o senhor se coloca como um realista de um novo tipo, um realista crítico, queria que o senhor falasse um pouco mais sobre o que seria esse "realismo crítico"?

Michel Paty: Novo em uma certa medida, não fui eu que inventei esta atitude. Apenas tento caracterizá-lo de maneira filosófica um tanto precisa. Eu caracterizo essa concepção minha pela palavra crítica a respeito dessa minha concepção, mas, na verdade, esta já foi utilizada antes. Por exemplo, Popper utiliza "racionalismo crítico" para descrever sua própria filosofia e era também realista, mas eu não sou popperiano. Popper foi um dos filósofos importantes do conhecimento de nosso tempo. Mas não é o único, e ele formulou de maneira interessante certos problemas (indução, probabilidade como propensão etc), ele fechou, a meu ver, outros (cientificidade, historicidade etc).
A posição que me parece mais adequada, que eu chamo de realismo crítico está mais perto da concepção epistemológica de Einstein. Para falar de ciência e fazer ciência nós precisamos de uma idéia forte de verdade referida a uma idéia de realidade, seja implicitamente ou explicitamente. Para pensar cientificamente ou sobre a ciência, nós precisamos colocar o objeto deste pensamento como alguma coisa que nós chamamos realidade – qualquer que seja, mesmo que não saibamos nada sobre ela, ou mesmo se nosso conhecimento dela é sempre indireto. Sabemos que falaremos de alguma coisa, as partículas, o mundo, o universo, o fenômeno, o ser, então nós chamamos isso de realidade. Mas nós sabemos que para entendermos e conhecermos essa realidade nós temos que passar por processos indiretos, que são processos mentais, simbólicos. Esses processos, como são indiretos, são sempre inventados por nós, por nossa mente. Se são inventados, isso significa que não são necessariamente, imediatamente e definitivamente adequados. Sobretudo, não vão ter sempre que, imediatamente, ser refinados para chegar a uma adequação melhor com o real.
É essa postura a que chamo de realismo crítico, é uma postura bem geral. Não é uma doutrina, é um pedido geral para assegurar que a descrição que a ciência faz é compreensão de algo que não é ilusório, que existe e resiste, a realidade, e que o nosso pensamento pode ter a pretensão de descrever e explicar essa realidade até um certo ponto. E sempre sabendo que ela vai ter que recolocar em questão (criticar) permanentemente suas contribuições, suas elaborações. É apenas isso o realismo crítico, não digo que seja uma coisa tão nova, porque na verdade acompanha sempre, de fato, o pensamento científico. Mas não é (e não foi) considerado assim, particularmente hoje nos debates dos filósofos ou nos debates epistemológicos dos cientistas. Existem outras posições: realismo ingênuo ou imediatista que desconhece o aspecto das representações do conhecimento humano, idealismo, dualismo, e sobretudo empirismo pragmático ou observacionismo, que nega a pertinência da idéia de realidade independente, substituindo ela por aquela do conjunto indissociável observador-observado. Na medida em que eu sou interessado em tentar esclarecer as primeiras condições do conhecimento, essa noção me é necessária como primeira condição de possibilidade. De que falaríamos, se não fosse ela? Não pretendo inventar uma nova filosofia, eu apenas pretendo nomear e esclarecer o mais diretamente possível aquilo que fica opaco.

Princípios: Uma temática que vem despertando interesse na comunidade científica é, ultimamente, a teoria do caos. O senhor acha essa expectativa salutar? E, de forma geral, que lições do ponto de vista filosófico a teoria do caos traz para o conhecimento em geral?

Michel Paty: Um problema é as veres encontrado na apresentação comum de uma
teoria como a teoria chamada do caos, por causa da imagem que a palavra caos cria. Esta palavra, por descrever uma teoria científica é um pouco perigosa porque não designa algo bem nítido, é ambígua, tem jeito de fantástico, e de remeter ao mítico. "O caos" é aquele mundo, nas mitologias e na Bíblia, "antes da criação", ou depois da catástrofe final. Será que, com a teoria do caos, a física nos traz de volta a um universo sem leis e sem inteligibilidade? Esta seria uma interpretação falsa, que poderia seduzir aqueles que buscam as fraquezas da ciência e da razão. A impotência ou o perigo do ciência é um tema ideológico recorrente do nosso. Apesar disso eu acho que se pode usar essa palavra, pois não é a palavra que vai nos dizer do que realmente se trata.
Trata-se de fenômenos que, do ponto de vista teórico-formal, foram apontados por Poincaré já no século passado e estudados por outros recentemente.
É mais exato falar em teoria dos sistemas dinâmicos. Os sistemas dinâmicos (sistemas de corpos ligados em movimento), na sua grande maioria, têm essa propriedade: mesmo que você conheça exatamente a equação da mecânica clássica que determina os movimentos de rodas as partes do sistema, muito do seu comportamento vai depender das condições iniciais. Se tem uma pequena variação nas condições iniciais a respeito dos valores colocados na equação, essa variação, em geral, isto é, na maioria dos casos dos sistemas físico,dinâmicos, vai gerar uma ampliação através do sistema que repercute e pode chegar a uma diferença significativamente grande, até sem limite. Quer dizer, apesar de se conhecer exatamente as equações dinâmicas (pois são sistemas deterministas no sentido de Laplace), se obtém no final uma imprevisão que pode ser total, isto é, um "caos". Na teoria dos sistemas dinâmicos, não se pode em geral prever a trajetória dos componentes do sistema. O que a teoria diz, como saber estável, é o tipo de estrutura dinâmica do sistema, os tipos de equilíbrios ou de desequilíbrios a que podem chegar.
O que nos ensina? Nos ensina alguma coisa, é verdade. Nos ensina primeiro, que o que se pensava no século XIX sobre as equação deterministas total dos sistemas físicos, isto é, que podíamos saber tudo desses sistemas, obter uma apreensão totalmente exata de todas as quantidades possíveis, como Laplace exprimiu muito bem, não é mais exato.
Agora o que nós sabemos é que, mesmo se nós temos uma teoria determinista, com as equações exatas, não são todas as grandezas ligadas às partes do sistema que tem realmente um sentido para a descrição do sistema. Nós, na verdade, devemos considerar vários níveis de predição: predições estruturais ou predições de trajetórias. Para resumir, a situação não significa que não podemos saber nada, predizer nada a respeito do sistema. Não podemos em geral predizer as variáveis do sistema como a posição do tempo, que são muito dependentes das condições iniciais e que podem ter variações enormes. Mas nós podemos predizer a estrutura do sistema, seu comportamento estrutural. Poincaré foi um pioneiro nestas considerações, estudando qualitativamente os sistemas dinâmicos e suas figuras de equilíbrio.
É esta, mais ou menos, a lição que essas teorias nos dão. Pelo menos é isso que vejo como importante: que há vários tipos de predição e que, para as teorias físicas desses sistemas não se pode pensar em uma teoria mais precisa e adequada, porque não existe, devido à propriedade fundamental desses sistemas. Toda teoria de tais sistemas deve tomar em conta esta propriedade básica.
Isso não significa que nosso conhecimento seja limitado, mas sim que nós devemos ver um pouco melhor o que é conhecimento. Conhecimento para mim, no caso desses sistemas, é realmente o entendimento da estrutura do sistema, o seu tipo de evolução, eventualmente as probabilidades correspondentes. Acho isso muito interessante, particularmente porque isso contradiz a idéia – que foi levada a partir do século XIX, precisamente a partir do determinismo laplaciano – de que o conhecimento é medida, que o conhecimento é determinação por uma medida precisa de uma grandeza. Então acho que com esses sistemas se vê bem que o conhecimento é muito mais amplo e interessante do que isso. As grandezas físicas têm um aspecto qualitativo que não se deixa reduzir numa mera determinação numérica. Grandeza, sobretudo, é relação. Descartes o tinha dito, mas tinha sido bastante esquecido.

Princípios: Subjacente à teoria do caos, aos sistemas dinâmicos, estaria então a idéia de um novo determinismo, de um determinismo diferenciado do determinismo laplaciano?

Michel Paty: Sim, se quiser interpretar por esse lado. A palavra determinismo é que ela foi inventada depois de Laplace fazer sua colocação, na pretensão de traduzir o ensino do Laplace e ser uma norma para toda ciência. Ora, essa palavra é ambígua. Muitas vezes é tomada como equivalente a “causal”, mas a causal idade, precisamente está nas equações. Por que se fala em determinismo? De modo geral, exprime a idéia de que se nós temos conhecimento de alguma coisa, essa coisa não vai ter um comportamento que escapa à possibilidade de raciocinar sobre ele, e considerando condições idênticas, de esta ser reprodutível. Tudo isso quer dizer que não vai ao acaso. O determinismo é o contrário do acaso. E muita gente hoje em dia faz uma filosofia do acaso, quer dizer que não há mais lei, não há mais regras nos fenômenos e assim por diante.
Acho que a crítica do determinismo dessas predições clássicas não leva a colocar no palco o acaso. O acaso é o contrário de ciência. Se tudo estava ao acaso não teríamos ciência. O acaso, como tal, é um efeito da nossa ignorância, já dizia Laplace. Se vê no jogo de dados. As leis são da gravidade e do movimento, mas não sabemos as condições iniciais. Observamos que quando a ciência se preocupa do acaso é para impor a ele leis, que limitam seu aspecto de desconhecimento: são as leis do acaso. Já no acaso, sabemos que há regularidades, então o submeteremos à ciência. Neste sentido, acho melhor dizer que o determinismo é uma postura de princípio que todo cientista tem – isso é o que dizia Poincaré. Isso pode ser formulado da maneira seguinte: quando se conhecem as leis se conhecem as propriedades do sistema.
Mas determinismo é sempre a respeito de alguma coisa, a respeito de grandezas, de comportamento. O problema é que não temos sempre as boas variáveis para falar de determinismo. Então o determinismo é uma postura de princípios, mas não nos dá os meios de tratar dos problemas. Por isso, acho mais adequado falar de realismo, porque nós visamos a isso. O determinismo seria (como Laplace assegurava) o ponto de vista do saber completo, o ponto de vista de deus (como ele sabia o saber incompleto, Laplace propôs utilizar probabilidades). O realismo é o ponto de vista do homem, que sabe o que quer alcançar, mas sabe que ainda não o alcançou.
O determinismo de princípio muitas vezes não está ao nosso alcance, porque nosso conhecimento é limitado, porque nossas teorias vão variar, porque os conceitos não são necessariamente os conceitos definitivos mais finos. Então não se pode dogmatizar o determinismo, não se pode dizer "vamos exigir o determinismo", pois os sistemas reais mais deterministas – que têm equações fundamentais e condições iniciais dadas – levam à imprevisibilidade de certas grandezas. Quer dizer que o determinismo, de uma certa maneira, não se aplica a essas grandezas, mas apesar disso há uma descrição dos sistemas. Então isso nos conduz a pensar um pouco melhor um pouco sobre essas noções e categorias, porque não são uma espécie de chave universal que nos permite tratar de tudo, há que realmente se pensar na especificidade dos problemas. São categorias, não são conceitos. Tem que trabalhar para encontrar os bons conceitos. Acho que isso é uma boa lição de inteligência e modéstia.

* Entrevista realizada por Cristiano Capovilla, graduado em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão, com revisão de Ângelo Cirino.

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 74, 75, 76, 77