A doutrina preponderante no mundo, desde os princípios da década de oitenta, é o neoliberalismo. Suas concepções sobre economia, política, sociedade, democracia, direitos humanos, cultura e meio-ambiente estão tão enraizadas e ampliadas que exercem influência inclusive no debate acerca da luta pela construção da alternativa popular (1). As elites governantes reforçam a institucionalidade destinada a garantir a concentração da riqueza c legitimar a generalização da pobreza, enquanto crescentes setores sociais excluídos e marginalizados aspiram encontrar uma forma de utilizar a democracia para sua proteção e benefício. Um dos assuntos de maior atualidade é como elaborar um projeto popular que reúna, entre outros pontos, os requisitos de viabilidade econômica e participação democrática.

O debate em torno de uma alternativa ao liberalismo é muito complexo, especialmente no momento que o mundo está ainda sob impacto de uma vitória transcendente do capitalismo sobre o socialismo: o desaparecimento da União Soviética. Independentemente das diversas considerações existentes acerca das causas e origens deste fenômeno, a derrota do chamado socialismo real deu liberdade às correntes de pensamento que afirmam o suposto triunfo histórico do capitalismo. A falência do paradigma construído na União Soviética é utilizada para negar a viabilidade do socialismo como sistema social. Sintetizemos, pois, as principais noções predominantes no debate político e ideológico contemporâneo: o socialismo é inviável e antidemocrático; o capitalismo é invencível e democrático (ou, ao menos, “democratizável”). A tese da democratização do capitalismo pareceria confirmada pela abertura eleitoral dos últimos anos, que permite aos partidos de esquerda ocuparem espaços institucionais, com a possibilidade, inclusive, de criar governos próprios ou em coligação com as correntes de centro.

A imagem do "Estado de Bem-Estar"

A tese da vitória ou superioridade do capitalismo sobre o socialismo está baseada em uma premissa falsa: confundir o sistema capitalista com o “Estado de Bem-Estar” que preponderou na América do Norte e na Europa Ocidental, a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Esta noção é duplamente fraudulenta. Em primeiro lugar, porque sugere que as condições econômicas e políticas características desse período sejam mantidas eternamente, ainda que somente para um grupo reduzido de nações privilegiadas. Em segundo lugar, porque pressupõe que o mundo inteiro poderá avançar em direção à construção de opulentas sociedades de consumo.

Durante a pós-guerra, ocorreram fatores específicos que levaram as principais potências capitalistas a uma prolongada “bonança conjuntural”. Por um lado, o conflito bélico destruiu as forças produtivas que o capital já não era capaz de assimilar e abriu a possibilidade de uma longa expansão de suas economias. Por outro, a extensão do socialismo a um considerável grupo de países da Europa Central fortaleceu sua credibilidade como sistema alternativo e fez crescer a influência de suas idéias mundialmente. Desta maneira, a economia e a política impulsionaram os países capitalistas desenvolvidos a generalizar o esquema keynesiano, no qual a reprodução do capital era compatível com os elevados níveis de emprego e salário, a extensão de políticas de distribuição e assimilação das demandas sociais através da democracia burguesa. O “Estado de Bem-Estar” baseou-se na dominação, na subordinação, na exploração e na desigualdade entre os seres humanos e as nações, mas serviu para propagar a idéia de que o crescimento, o equilíbrio e a estabilidade alcançados pelo chamado Primeiro Mundo seriam irreversíveis e que o capitalismo desenvolvido poderia se estender a toda humanidade. A expansão contínua garantia a acumulação e a concentração da riqueza e, além disso, geravam excedentes que eram utilizados para “comprar” e tranquilidade e a estabilidade social.

O sistema precisava que os partidos políticos “terceiristas” (sociais democratas e democratas cristãos) desempenhassem a função de assimilar as demandas sociais, além de sintetizá-las e convertê-las em políticas governamentais. Vilas (1995) argumenta que parecia coerente que o Estado proporcionasse um conjunto de serviços sociais necessários para a reprodução da força de trabalho (capacitação, saúde, entre outros), já que seria uma forma de custeá-la com os impostos arrecadados de toda a sociedade (2). Este fenômeno se estendeu a certos setores, principalmente urbanos, de uma parte da periferia, ainda que de maneira viciada pelas práticas políticas clientelistas e prebendatárias.
Amín e Gonzalez Casanova (1995) afirmam que as transformações ocorridas no mundo a partir da década de oitenta são os resultados da crise paralela dos três esquemas produtivos vigentes durante o pós-guerra: o modelo keynesiano-fordista nos países capitalistas desenvolvidos, a versão de construção do socialismo aplicada na União Soviética e em outros países europeus e o desenvolvimento populista – variante do keynesianismo nas nações subdesenvolvidas (3).

Por um lado, concluiu uma etapa em que a reprodução do capital era compatível com os níveis relativamente altos de emprego, salário e distribuição social da riqueza nas grandes potências capitalistas. Por outro, a queda da União Soviética, precedida por uma grande perda de credibilidade, eliminou a necessidade de manter o modelo do capitalismo bondoso. Desta maneira, os fatores econômicos e políticos que possibilitaram a criação dos “Estados de Bem-Estar, desapareceram com a mesma simultaneidade com que haviam surgido.

A drástica e crescente redução do emprego, dos salários e da redistribuição social da riqueza que tem lugar sob o neoliberalismo não é um fenômeno transitório e adequável no sistema, mas uma conseqüência estrutural da reprodução do capital nas atuais condições. O capitalismo mostra novamente, de maneira descarada, sua natureza destrutiva e autodestrutiva. O recurso da guerra utilizado em épocas anteriores para criar novas condições de expansão provocaria a extinção repentina da vida no planeta. Em síntese, o capitalismo não se encontra na posição de triunfo e poder, que muitos lhe atribuem, mas em grave crise, da qual só poderá sair, como declarou o Manifesto Comunista há cento e cinqüenta anos atrás, "preparando crises mais extensas e violentas e diminuindo os meios de preveni-las" (4).

A defesa do capitalismo através de recursos que mostram somente seu “lado bom” não é novidade. O paradoxo é que essa falácia continua a ser utilizada ainda hoje tão eficientemente, apesar de que seu “lado bom” corresponde ao modo de funcionamento deste sistema essencialmente nas potências industrializadas e durante uma etapa já ultrapassada. Nos últimos anos foram acumuladas evidências suficientes do aumento do abismo existente entre o mundo desenvolvido e o subdesenvolvido.

Também há de se ressaltar o crescimento da polarização social em todas as nações. Os governos e as forças políticas dominantes nos países da América do Norte e Europa Ocidental proclamam abertamente a morte do “Estado de Bem-Estar”. Sem dúvida, sua imagem continua sendo utilizada como paradigma da sociedade capitalista.

Democracia e poder real na era do neoliberalismo

A democracia é um dos temas mais frequentes nas discussões sobre uma alternativa ao neoliberalismo. A única forma objetiva de abordá-lo é no contexto da competência e da luta pelo poder, que não é sinônimo do exercício do governo, ainda que estejam relacionados.

A política é a forma que o modo de produção dominante em uma sociedade penetra e determina todas as faces da atividade social e toda as suas instituições. Nas sociedades antagônicas, a política estrutura, organiza, articula, viabiliza e garante as relações de dominação e subordinação, que tornam possível o modelo de produção social a que ela responde. A democracia é um instrumento de dominação e subordinação de classe, com base no uso da violência. O poder é a capacidade de exercer o domínio em uma sociedade: é a violência que assegura a dominação da classe proprietária e a subordinação das demais (5).

A fonte do poder é a propriedade sobre os meios de produção. O Estado, com suas instituições repressivas, é somente um instrumento do poder, subordinado à classe dominante. Isto implica que, na democracia, quando um partido político chega ao governo, não significa necessariamente que exercerá o poder, mas apenas que estará encarregado de utilizar seu instrumento fundamental. Ainda que possa parecer muito similar, a diferença reside no fato de que o detentor do poder é quem dita as normas e os limites para a gestão de qualquer governo.

O governo não é o único instrumento de poder. O domínio da economia também sofre, por exemplo, o controle dos meios de comunicação de massa. Não é por acaso que a democracia liberal está baseada no “livre jogo político”, que assegura o “reconhecimento imparcial” do triunfo de um dos candidatos e dos partidos que contam com a capacidade de patrocinar campanhas eleitorais proselitistas e publicitárias cada vez mais onerosas. Os meios de comunicação de massa são também um poderoso instrumento contra os governos, os partidos e os grupos sociais que pretendem desafiar as regras do sistema predominante. Outro recurso do poder é a utilização das Forças Armadas. Ainda que as instituições militares devam estar subordinadas ao governo civil, na história da América Latina sobram exemplos em que elas serviram para resolver disputas entre grupos dominantes ou derrubar governos progressistas.

Não é novidade a defesa do capitalismo mostrando seu lado bom e escondendo as mazelas que ele provoca

Independentemente das particularidades de cada nação e do grau em que os capitais locais foram fortalecidos durante a etapa do desenvolvimento, a América Latina faz parte do mundo subdesenvolvido. Isto significa que os grupos locais dominantes são, ao mesmo tempo, dominados por seus sócios maiores das grandes potências imperialistas. Na mesma proporção em que o mundo caminha em direção à internacionalização e concentração econômica a economia, o poder político e militar também se internacionalizam e se concentram. Este processo repercute no aumento da dependência da Região. A crescente internacionalização do poder é o resultado do desenvolvimento das forças produtivas e constitui um escalão superior ao movimento ocorrido no período histórico em que se deslocou do feudo à nação, processo que foi acompanhado da cristalização da unidade política da nação e da formação do mercado nacional. Em contraposição, hoje observamos o fortalecimento da capacidade da dominação estrangeira e a proeminência do mercado mundial. As cláusulas de condicionalidade nos acordos comerciais com as principais potências industrializadas – e os blocos em que estas se agrupam – as renegociações periódicas da dívida externa, o estabelecimento de códigos de conduta nacional obrigatórios e dos processos de “certificação”, entre outros, são somente exemplos dos mecanismos utilizados para a transferência crescente do poder e da capacidade de decisão sobre assuntos fundamentais de âmbito nacional e internacional.

Chega-se à conclusão de que, quando se fala de democracia e do funcionamento dos partidos dentro do sistema político dominante na América Latina, exceto em Cuba, referimos-nos à competência em assumir a função de governo, que agrega uma cota maior ou menor de exercício do poder, com pressões, limites e restrições, não só crescentes, mas também cada vez mais determinadas pela dominação exercida pelo capital financeiro internacional.

A crise política na América Latina

Afirmamos que na etapa posterior à Segunda Guerra, os países centrais atravessaram uma fase prolongada na qual a reprodução do capital era compatível às margens relativamente altas de emprego, salário e redistribuição da riqueza. Esta particularidade repercutiu em um funcionamento mais estável do sistema da democracia liberal. Os partidos políticos e outras entidades de mediação social contavam com condições mais favoráveis para assimilar, sintetizar e converter em política um conjunto de demandas sociais. Este processo, em certa medida, se estendeu às nações periféricas, ainda que menos predominantemente em certos países, a produção e acumulação de riqueza, demandam uma maior exploração e permitem uma menor redistribuição. Em condições de produtividade e competitividade muito baixas, necessita-se de maior violência institucional para a produção e apropriação da riqueza. Quanto mais subdesenvolvido e dependente for um país capitalista maior será sua tendência a ser repressivo e antidemocrático.

Em geral, este fenômeno é ignorado pelas ideologias mais reacionárias do mundo desenvolvido, que criticam os países pobres e atrasados por não terem cultura, idiossincrasia ou, mesmo, a “pureza racial” necessárias para poder “copiar” seu sistema democrático. Durante este período, a versão latino-americana de democracia se corrompeu com as mais variadas formas de “clientelismo político”. A função dos partidos e do Estado não era converter em políticas as demandas sociais mais legítimas, mas praticar uma operação de compra e venda: privilégios e redistribuição seletiva para certos setores, em troca de lealdade política ao sistema e, no seu âmago, a um determinado partido político.
Na década de 1970, o capitalismo criou as condições necessárias para a transição do modelo de desenvolvimento populista para o neoliberal na América Latina. Por meio da ditadura em alguns casos e do autoritarismo em outros, as sociedades latino americanas foram “disciplinadas” a aceitarem uma redução substancial em seu nível de vida. Já nos anos 1980, com a crise da Dívida Externa e sua renegociação periódica, foram avaliados os mecanismos para a imposição de programas de ajuste estrutural, simultaneamente à generalização do dogma de que o neoliberalismo é o único modelo possível.

Uma vez desarticulado o movimento popular capaz de fazer resistência ao novo modelo e após a colocação do neoliberalismo como paradigma supremo – “acima” da política – mostrou-se conveniente apresentar formas de governo menos repressivas, capazes de oferecer a ilusão de criação de condições políticas mais estáveis para a reprodução do sistema. O capitalismo deu-se ao luxo de renegar as ditaduras que lhe haviam feito o “serviço sujo”, de se apropriar da bandeira em defesa dos direitos humanos e fazer disso uma arma contra a esquerda. Para o sistema capitalista fez-se necessário reformular o conceito em dois pontos básicos: os assassinos e torturadores de mais de cento e cinqüenta mil latino-americano foram anistiados e inocentados de suas culpas, através de leis aleatórias, uma vez que era necessário consolidar a “paz social” e, a rigor, eles haviam trabalhado como uma reação à “insurreição”. Da mesma forma, retomou-se a idéia menor de direitos humanos como sinônimo de liberdades individuais, mediante a exclusão da dimensão de direitos econômicos e sociais.

Sustentado pela premissa da legitimidade da apropriação da riqueza, o liberalismo tradicional considera a economia como um âmbito no qual o “jogo livre” das 'forças de mercado' devem se desenvolver, sem a “interferência” do Estado (KANOUSSI: 1996) (6). O Estado é, supostamente, uma entidade neutra que trata de conciliar, dirimir e resolver os conflitos existentes entre os diversos “grupos de interesse”. Sua jurisdição deve se limitar à regulamentação das reações sociais alheias ao mercado. À medida que o mercado é o único distribuidor “legítimo” da riqueza, têm-se que a política deve ficar reduzida à administração de assuntos nacionais “desconectados” da economia, de assegurar os chamados direitos e liberdades individuais, entre os quais, o mais sagrado é o direito do capitalista comprar a força de trabalho e, consequentemente, a liberdade de apropriação do valor produzido pelo trabalhador. A versão neoliberal de democracia é, inclusive, mais retrógrada do que aquela do liberalismo burguês na qual está inspirada (7). A democracia liberal considerava o mercado como um âmbito no qual o Estado não devia intrometer-se, mas defendia – ao menos formalmente – uma série de valores éticos. O neoliberalismo, por sua vez, renega as noções burguesas tradicionais sobre o teor da democracia e a reduz ao exercício do voto eleitoral carente de influência nas políticas nacionais (8).

Década de 1970: o capitalismo muda na América Latina do modelo populista para o neoliberal

Sob o ponto de vista do neoliberalismo, o conceito de direitos humanos – como o de democracia – é completamente vazio e distorcido. É utilizado tão somente como um instrumento de propaganda contra a esquerda em geral, enquanto que – de maneira coerente com o modelo de acumulação – permanece despojado de toda a conotação de distribuição de riqueza. Usa-se o argumento de que o Estado já pode garantir a demanda de direitos sociais, porque tem que transferir todo o excedente do capital, de modo a alcançar e manter o nível internacional de competitividade.

Devido a sua natureza profundamente antipopular e antidemocrática, o modelo neoliberal substitui o papel legitimador que representaram as políticas públicas na era do keynesianismo, por recursos ideológicos e culturais – baseados no domínio dos meios de comunicação de massa modernos – assim como pelos mecanismos de fragmentação e dispersão de seus opositores em potencial – trabalhadores, camponeses, desempregados, excluídos, classe média empobrecida, mulheres, jovens, minorias étnicas, ambientalistas, entre outros. Originalmente, o neoliberalismo propagou a falácia do “efeito cascata”: prometendo que, com uma maior concentração de riqueza haveria maior investimento e, por conseguinte, mais empregos e melhor poder aquisitivo para todos. Sem dúvida, este prognóstico já foi descartado, porque o ciclo se fecha cada vez mais. Só o que resta é convencer a todos, de que se não há trabalho, moradia, saúde ou educação, devem se dar por satisfeitos de pelo menos viver em democracia. Os neoliberais afirmam que o apego ao conjunto de normas e procedimentos políticos resolverá, por si só, a crise estrutural por que passa a América Latina.

Ao passo que a democracia direta (aquela em que todos os cidadãos discutem e adotam as decisões) resulta impraticável no contexto do antagonismo social, o exercício da democracia requer uma combinação harmônica entre participação e representação. Para assegurar e legitimar a apropriação da riqueza, o capitalista baseia-se em uma desvinculação destes conceitos: atribui aos mecanismos e procedimentos eleitorais um valor absoluto e reduz a participação ao mero exercício do voto, para seleção de quais serão os candidatos do sistema a aplicar o mesmo modelo neoliberal (9). Trata-se de urna cisão dupla: a política e a economia são separadas de maneira artificial (o mercado é dependente do Estado e é regido por seus próprios valores) e, na esfera política, se desvincula a participação da representação. A democracia fica definida pela forma e sem conteúdo (10).

O principal problema da democracia na fase do capitalismo neoliberal está centrado no fato de o verdadeiro poder atuar cada vez de maneira mais direta, em detrimento das instituições do Estado e dos partidos políticos que competem para exercer as funções executivas, legislativas ou judiciárias.

Esta é a essência das chamadas crises “de governabilidade” e “dos partidos”. O Estado se afasta ainda mais da sociedade e se transforma em um instrumento exclusivo das elites subordinadas ao capital externo, cujos interesses se distanciam daqueles do conjunto da nação. Por um lado, o governo perde a capacidade de tomar suas próprias decisões – devido a estar sujeito aos condicionamentos externos – por outro, os grupos governantes atuam como cúmplices das políticas de desnacionalização. Como conseqüência deste processo, a dissociação entre a política real, os processos eleitorais e os mecanismos supostamente democráticos de participação coletiva é acentuada. A escolha eleitoral, à qual se pretende aliar um valor absoluto, torna-se ainda mais estéril, porque as políticas governamentais são prescritas pelo dogma neoliberal.

A atual crise política na América Latina é conseqüência da negociação dos próprios valores e instituições em que se apóia o funcionamento do sistema capitalista. A reestruturação em curso introduz novas regras, que favorecem o capital externo e os setores locais mais diretamente a ele subordinados, em detrimento dos grupos ligados a um mercado interno que vai se reduzindo. Tais transformações acentuam o desmantelamento do sistema porque provocam a decomposição das instituições executivas, legislativas e judiciárias, cujo efetivo poder de decisão se reduz cada vez mais.

Seu reflexo pode ser notado na fragmentação dos partidos políticos, na desarticulação das alianças anteriormente existentes entre setores da burguesia local e a ruptura dos consensos que funcionaram durante o período de pós-guerra. Setores políticos e sociais que eram antes aliados ou, pelo menos, haviam estabelecido regras funcionais de alternância no governo e distribuição da riqueza, hoje se encontram em lados opostos.

Ao mesmo tempo, as tendências altamente concentradoras dificultam o funcionamento dos mecanismos de assimilação e cooptação das classes médias e dos setores populares. Os privilégios reservados às classes médias para que atuem como amortecedor do sistema está em vias de extinção. As privatizações eliminaram a disponibilidade de recursos que o Estado utilizava para o clientelismo: já não há fundos para uma atenção diferenciada aos sindicatos e demais organizações não-governamentais que serviam para dividir os setores populares.

A democracia em Cuba

Em contraposição ao capitalismo, a democracia em Cuba se define tanto pelo conteúdo quanto pela forma: o poder está nas mãos do povo. Este princípio permite que os resultados do trabalho sejam distribuídos de acordo com parâmetros de eqüidade, assim como propicia que a nação conserve o poder de decisão com respeito à sua postura no atual processo de reestruturação da economia mundial. Quanto à forma, o sistema político cubano é baseado em eleições periódicas para os órgãos nacionais, das províncias e dos municípios do Poder Popular. São os cidadãos que postulam e elegem diretamente seus representantes, com base nos méritos e no reconhecimento social de sua integridade. O Partido Comunista de Cuba (PCC) não apresenta candidatos, nem intervém no processo eleitoral. A filiação partidária não é requisito, nem sequer parâmetro para lançamento de candidaturas na eleição dos deputados e delegados dos órgãos do Poder Popular. Como partido único, o PCC cumpre a missão que assegura a unidade da nação no processo de construção da sociedade socialista, enfrentando a concentração do poder mundial e o aumento do intervencionismo dos Estados Unidos. Com a queda da União Soviética e o fim do Conselho de Ajuda Mútua Econômica, Cuba perdeu, de maneira abrupta, 85% das suas relações econômicas, financeiras e de cooperação internacionais. O nível de vida da população caiu mais de 30%. O governo dos Estados Unidos aproveitou esta circunstância para endurecer ainda mais o bloqueio imposto há mais de três décadas, através da aprovação das leis Torricelli e Helms-Burton. Mesmo hoje o congresso e o executivo norte-americano continuam idealizando novos mecanismos para obrigar outros países a aderir a sua política de estrangulamento econômico e isolamento cubano.

A situação enfrentada por Cuba bastaria para provocar o colapso e o caos em qualquer outro país. Mas, apesar disso, a sociedade e a economia cubanas continuaram funcionando. As eleições do Poder Popular para os deputados em nível nacional, assim como delegados das províncias e dos municípios acontecem normalmente e a economia começou a dar mostras de estar se recuperando aos poucos, com um crescimento de 7,8% em 1996. Operários, camponeses, profissionais, intelectuais e demais integrantes da nossa sociedade são participantes diários e ativos da discussão e aprovação das leis.

A razão fundamental da capacidade de resistência do povo cubano é que, apesar das graves dificuldades econômicas em que o país se encontra, o bem-estar da população, a justiça, a eqüidade e a solidariedade continuam sendo as primeiras prioridades da economia e da sociedade. O sentimento de participação democrática real e de responsabilidade social do Estado são os fundamentos que explicam a decisão do povo cubano de continuar sua luta frente à adversidade transitória. O poder em Cuba está nas mãos do povo, que o exerce através do partido e do governo revolucionário.

A experiência cubana contribui para destruir o mito de que a globalização neoliberal incondicionalmente impõe uma camisa de força; o mito de que é impossível adotar políticas independentes em benefício popular, porque levam à autarquia, à perda do mercado e das fontes de investimentos. A Revolução Cubana constitui a demonstração de que é possível articular um projeto de desenvolvimento nacional, mesmo nas condições difíceis enfrentadas por nosso pequeno País, submetido ao bloqueio dos Estados Unidos e imerso na hostilidade imposta pela globalização neoliberal; mais para isto é necessário um poder popular, que não se esgota no controle do Estado, mas que representa a somatória de capacidade, vontade e inteligência de todo um povo, decidido a construir sua própria alternativa, baseada no fortalecimento constante da unidade nacional. Os componentes fundamentais deste projeto são: a defesa da soberania e da independência; a busca da eficiência econômica; a geração de capacitação científica e técnica; o asseguramento de um sistema político participativo e representativo, assim como o estímulo à solidariedade e cooperação humanas. Estes elementos são indispensáveis para o êxito de qualquer programa antineoliberal.

O poder em Cuba está nas mãos do povo que o exerce através do governo revolucionário

O capital não é monolítico. Evidentemente sua tendência principal é se unir em defesa de seus interesses estratégicos, mas quando enfrenta uma situação consolidada, como a de Cuba, manifestam-se suas contradições internas. Vale a pena notar que, da mesma forma que nos países subdesenvolvidos há setores produtivos que não agüentam a competição multinacional, também no chamado Primeiro Mundo há capitais que se sentem asfixiados e que têm urgência em encontrar oportunidades de se reproduzirem no exterior. Destes capitais provém uma parte dos investimentos estrangeiros em Cuba e, seguramente, estariam dispostos a tomar parte de projetos de desenvolvimento nacional de outros países da América Latina, que desafiem as regras da globalização neoliberal, que também os afetam.

Torna-se evidente que, mesmo pensando que a Revolução Cubana enfrenta uma situação econômica extremamente complexa, de outro ponto de vista, tem condições excepcionalmente favoráveis, porque conta com o poder político, econômico e militar, cuja base de sustentação é a capacidade e vontade de resistir e vencer de seu povo. Logicamente, custa pensar que, sem estas premissas, se possa aspirar à união das sociedades heterogêneas latino americanas, acerca da defesa de valores e interesses sociais que ainda é preciso alicerçar. Sem dúvida, o neoliberalismo coloca centenas de milhões de pessoas em uma situação muito mais grave do que aquela que nós, os cubanos, definimos como período especial, sem que se leve em conta a segurança, a estabilidade e os benefícios sociais que desfrutamos e sem a confiança em que ninguém ficará desprotegido ou desvalido. Como se isso fosse pouco, o que é para os cubanos uma fase excepcional e temporária em direção ao desenvolvimento sustentável e o incremento paulatino do nível de vida da população, para o restante da América Latina constitui-se num problema insolúvel na ordem econômica, política e social vigente.

A Revolução Cubana necessita se aperfeiçoar e o está fazendo; trata-se de um projeto que suportou a prova do tempo e das adversidades; um projeto que é preciso preservar e defender, justamente para que se possa aperfeiçoá-lo. Não pretendemos que Cuba seja um modelo a ser copiado. A cópia provou ser uma das práticas mais negativas da esquerda. Cada país tem suas condições e características próprias e, portanto, deverá escolher seu próprio caminho e os ingredientes de seu projeto nacional de construção do poder popular; o tipo de governo, os mecanismos de participação democrática, o sistema partidário, a orientação da política econômica, a combinação das diversas formas de propriedade e outros elementos. Sem dúvida, inimigos políticos e adversários ideológicos da Revolução Cubana pretendem que copiemos o modelo de 'democracia neoliberal' . Isto seria um retrocesso inconcebível: implicaria em render culto a uma forma completamente sem conteúdo.

O debate ideológico na esquerda latino-americana

O debate político e ideológico atual da esquerda latino-americana, aborda novamente a antiga polêmica entre o reformismo e o projeto revolucionário. Na definição genérica de “reformismo”, há tendências cuja proposta era o estabelecimento de um capitalismo não-neoliberal, com a visão nostálgica de que o sistema poderia regressar aos níveis relativamente altos de redistribuição de riqueza e participação democrática, alcançados durante o período de pós-guerra nos países capitalistas mais desenvolvidos.

Evidentemente há outra corrente de pensamento que assume a execução de políticas “mais ou menos neoliberais” como uma “necessidade”. Esta última vertente já é cúmplice do centro que tem governado com o programa da direita, tanto na Europa quanto na América Latina, durante os últimos quinze anos (11) Mais adiante, quando falamos de reformismo nos referimos à sua vertente antineoliberal.

As correntes reformistas e as revolucionárias dividem hoje os mesmos cenários de lutas políticas e sociais, coabitam o interior dos partidos que acolhem em seu meio as mais diversas tendências ideológicas e organizações populares e que tomam parte das mesmas alianças e frentes políticas. O Foro de São Paulo, por exemplo, agrupa em seu interior o mais diverso espectro da esquerda latino-americana. Tanto o reformismo quanto o projeto revolucionário propõem-se a construir suas respectivas alternativas ao neoliberalismo, tarefa que pressupõe a combinação das mais amplas alianças de todos os setores afetados e excluídos por este modelo. Em uma conjuntura de afirmação da dominação capitalista mundial e diminuição das possibilidades imediatas de transformação estrutural; onde está a diferença entre ambas dentro do âmbito das lutas políticas institucionais?

O Estado neoliberal se manifesta ainda mais da sociedade, atendendo apenas às elites

Na América Latina, a deterioração da situação econômica impulsiona a criação de enfoques e propostas políticas alternativas ao neoliberalismo nas mais diversas perspectivas, das quais destacamos as três vertentes principais: as que promovem a manutenção do modelo neoliberal de aumento do capital com a introdução de mudanças nas esferas política e social, orientadas à redistribuição de uma parte da riqueza e ao fomento das políticas de desenvolvimento humano; as que advogam o estabelecimento de um capitalismo “não neoliberal” que retome as práticas do capitalismo pré-monopolista; e as que pleiteiam a necessidade de elaborar estratégias de luta em curto, médio e longo prazos, para deter e reverter os ajustes, como um passo intermediário para as profundas mudanças estruturais que a região demanda. O primeiro enfoque é promovido pelos próprios centros do neoliberalismo e pelas instituições financeiras internacionais, preocupados em evitar que a deterioração das condições políticas e sociais interfiram no ajuste. As outras duas abordagens pleiteiam a necessidade de construir um processo alternativo, com perspectivas distintas: uma como parte do próprio capitalismo e outra que necessariamente conduz à formação de um sistema social superior.

A elaboração teórica e prática da esquerda latino-americana, hoje, gira em torno das lutas populares e seu relacionamento – favorável ou adverso – à participação eleitoral e às alianças políticas. O reformismo privilegia a batalha eleitoral e parte da premissa de contar com o “voto cativo” da população despossuída. Seu programa eleitoral é concebido de modo a conquistar votos nas classes médias e nos setores produtivos nacionais que não podem competir com as condições de abertura unilateral e assimétrica, com a promessa de retorno a um passado, no qual representavam os principais beneficiários da política de desenvolvimento e o erroneamente chamado Estado de Bem-Estar (12).

Com relação a esta escala de valores, argumenta-se a necessidade de uma aliança eleitoral e programática entre partidos políticos de “esquerda” e de “centro”. Há um esforço para estabelecer boas relações com o Partido Democrata dos Estados Unidos e com a social democracia européia. Alardeia-se que para chegar ao governo – seja como força principal ou secundária de uma aliança – é necessário fazer “concessões” (13). Isto significa dar garantias de que a política econômica não será alterada substancialmente e que o peso fundamental dos ajustes sobre os setores populares mais sofridos será o modelo mantido. O argumento comum é que isto é o máximo possível.

É inquestionável que a implantação do neoliberalismo coincidiu com o retomo da “institucionalidade democrática” em muitos países da América Latina. A chamada democratização abriu espaço para uma presença sem precedentes da esquerda, nos governos, legislaturas e prefeituras. Sem dúvida, os avanços eleitorais da esquerda ocorrem de maneira paralela ao incremento substancial da exploração da força de trabalho e a um gigantesco retrocesso na distribuição da riqueza, fenômeno que se manifesta inclusive nas nações em que a esquerda governa ou toma parte da coligação governamental. Se a missão histórica da esquerda é a adoção de políticas populares, como é possível que sua participação nos governos de vários países latino-americano não tenha interrompido o retrocesso econômico e social que afeta as maiorias?

O neoliberalismo impõe seu próprio conceito de democracia restrita. Trata-se de um modelo estruturado em função da concentração elitista do poder real (mundial e nacional), que o distancia dos mecanismos de participação e representação da coletividade, para estar sob o controle das instituições supra nacionais e nacionais que promovem a concentração da riqueza e a massificação da exclusão.

Ainda que o capital não faça concessões com respeito ao controle governamental, frente a situações em que se apropriar de um triunfo eleitoral da esquerda seria muito custoso politicamente, ele pode se dar ao luxo de respeitar a decisão democrática dos eleitores, com base em um esquema no qual este governo é privado de tomar decisões que o afetem.

A acumulação institucional que em determinadas circunstâncias se possa conseguir conjunturalmente por meio do reformismo eleitoreiro, repercute na diminuição de forças nas camadas da população que constituem o alicerce natural da esquerda. Este fenômeno, por sua vez, enfraquece a base popular necessária para enfrentar a contra ofensiva dos “poderes permanentes” multinacionais e nacionais, que utilizam seu controle econômico, os meios de comunicação e a máquina governista, para debilitar, desgastar e neutralizar quaisquer modificações da política neoliberal dominante. Esta fórmula poderá levar ao exercício do governo, porém não permitirá transformar o status quo, nem sequer para “voltar” ao “capitalismo humano”, com o qual também deixam de cumprir as promessas realizadas às classes médias e demais setores afetados pelo capital nacional.

A alternativa voltada para a construção de uma sociedade superior ao capitalismo enfrenta obstáculos colossais. Seria um absurdo irresponsável desconsiderar os êxitos do capitalismo e as derrotas do socialismo, assim como ignorar a atual correlação mundial e nacional desfavorável para a realização das profundas modificações estruturais que demanda, não só a América Latina, mas toda a humanidade. O fato da ofensiva continuar em mãos do capitalismo neoliberal não demonstra que seja correta sua tese sobre o caráter eterno e imutável de seu sistema (O Fim da História), nem que todo o planeta irremediavelmente tenha que aceitar o incremento de sua dominação e exploração.

As diversas correntes do pensamento revolucionário coincidem no aspecto de que o neoliberalismo é a modalidade atual assumida pelo sistema capitalista, conforme o desenvolvimento irreversível das forças produtivas. Não há um capitalismo bom e outro mau, tão somente um capitalismo que necessita recorrer aos métodos mais selvagens para assegurar sua manutenção enquanto sistema. Depreende-se disto que a única forma de resolver os problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais que ameaçam destruir a humanidade é a criação de um sistema social que supere o capitalismo.

A experiência cubana resiste ao cerco da globalização neoliberal

Constatar que o capitalismo carece de futuro não significa ignorar que hoje aparenta estar no ápice de seu poderio. Sua auréola triunfante começa a desvanecer, mas a dominação do capital segue firmemente assegurada, conquanto a revolução ainda não ultrapassa a fase de refluxo. A onda que estremeceu a América Latina durante as décadas de sessenta e setenta não cristalizou o triunfo ou a consolidação de outras revoluções posteriores à cubana. Os erros da direção do Movimento da Nova Joya e a intervenção militar dos Estados Unidos provocaram o desaparecimento do poder popular em Granada. Depois de longos anos enfrentando uma guerra cruel de agressão indireta dos Estados Unidos, a Revolução Sandinista cedeu lugar a uma institucionalidade que permite que as forças populares mantenham partes importantes do poder, mas não suficientes para impedir o triunfo eleitoral da direita e a consequente implantação do neoliberalismo. Muitos movimentos revolucionários armados desapareceram, ainda que outros passaram por processos de negociação que transferiram a luta do campo das armas para o terreno institucional. A experiência acumulada pela esquerda latino-americana indica que, em um mundo em que o intervencionismo imperialista se aprofunda, não basta conquistar o poder; faz-se necessário também a capacidade para exercê-lo e defendê-lo.

Os últimos anos confirmam a consolidação de novas formas de organização e luta popular, assim como o ressurgimento e a adaptação das tradicionais. Atualmente destacam-se, de maneira relevante, numerosos grupos defensores dos direitos dos mais diversos setores sociais, ao mesmo tempo em que se generaliza a falta de credibilidade do Estado e dos partidos políticos: será que estamos avançando em direção a uma era em que os movimentos sociais substituirão os partidos de esquerda? Os movimentos populares têm a capacidade de expressar e lutar pelas suas demandas em particular. Essas lutas cada vez mais transcendem o caráter meramente reivindicatório e adotam formas e expressões políticas. Sem dúvida, a função de mediação política é hoje ainda mais necessária. É preciso que haja um instrumento capaz de assimilar, compatibilizar, sintetizar e dar uma expressão política, teórica e prática a este conjunto de reivindicações e demandas diversas, de forma a converte-Ias em um programa geral de luta que permita somar esforços e construir a unidade do povo: essa deve ser a função de um partido revolucionário.

Enquanto não estão criadas as condições necessárias ao triunfo e consolidação de novos processos da construção socialista, é imprescindível que a esquerda concentre seus maiores esforços nos pontos nevrálgicos capazes de contribuir para o maior acúmulo de forças possível. Nas atuais circunstâncias, o vértice da luta se localiza no enfrentamento das conseqüências do neoliberalismo em cada país (o que contribui para destruir o mito de que é um modelo de democracia e desenvolvimento) e a consolidação de um novo conceito de internacionalismo da classe trabalhadora e demais setores explorados e excluídos (que seja capaz de enfrentar a globalização neoliberal) (14). A esquerda tem a possibilidade de unir esforços com os movimentos populares e sociais mais combativos a fim de construir a unidade democrática dos excluídos do modelo dominante. Isto implica a necessidade de avaliar e reavaliar as possibilidades e os limites das lutas populares em cada conjuntura, para não superdimensionar, nem tampouco subestimar as possibilidades de acumulação em cada etapa. A base dessa luta comum é a certeza de que somente esta unidade – alicerçada sobre o reconhecimento de que a diversidade das formas particulares de exploração determina uma grande amplitude de reivindicações específicas – poderá fundar as bases de um poder popular capaz de satisfazer as aspirações e necessidades de todos.

O Foro de São Paulo agrupa em seu interior o mais variado espectro da esquerda latino-americana

O terreno eleitoral é um âmbito legítimo e necessário para a luta dos partidos de esquerda, mas sempre que o acesso ao governo ou a ocupação de espaços institucionais não se convertam em um fim em si mesmo, que conduza a assumir como própria a execução das políticas neoliberais, como o “preço” que se deve pagar para contar com a tolerância do sistema. A esquerda pode aproveitar ao máximo as possibilidades que surgirem no terreno eleitoral em qualquer país da América Latina, porém pretender que seu objetivo final seja chegar ao exercício do governo dentro do sistema capitalista significa desconhecer a natureza do poder.

A ascensão ao governo e a ocupação deste e outros espaços do sistema, só têm sentido como parte de uma ampla e dialética combinação de todas as formas de luta, adequadas às condições de cada país e de cada conjuntura, de maneira a servir como instrumento de acumulação social para a conquista do poder. A exclusão dos crescentes setores sociais por parte do sistema, que já engloba as classes médias urbanas, os pequenos e médios empresários, os camponeses e, inclusive, a grande indústria nacional, cria efetivamente as bases para uma ampla aliança contra o neoliberalismo, mas uma coisa é aglutinar os “novos excluídos” na luta contra este modelo e outra é lhes prometer a volta à modalidade de capitalismo pré-monopolista ou de livre concorrência, que já não correspondem ao desenvolvimento atual das forças produtivas. Um elemento fundamental é que os partidos de esquerda não concorram como “o último vagão” a uma aliança eleitoral entre dirigentes partidários, mas sim como um participante ativo e decisivo do bloqueio nacional que, mediante a síntese das reivindicações setoriais, construa um programa próprio com capacidade de convocação e mobilização social, cuja plataforma poderá ter certa margem para a negociação e acertos com outras forças antineoliberais, mas que não possa ficar irreconhecível nem preterida.

O acesso da esquerda ao governo, em meio à globalização neoliberal, implica em vencer os obstáculos à adoção de políticas em benefício popular e a tentativa de provocar seu desgaste. O ponto-chave é que a acumulação eleitoral se converta também em acumulação de poder popular, de construção de uma unidade democrática de todos os explorados e excluídos pelo sistema, como suporte indispensável para conquistar o poder estatal.

Idéias para um debate

O neoliberalismo não é uma variante do “capitalismo selvagem”, frente à qual se possa criar uma alternativa de “capitalismo com uma face humana”. A luta genuína e consequente contra o neoliberalismo leva a desafiar o capitalismo como sistema. A alternativa independentemente das particularidades que se adotem em cada nação, há de se basear na defesa da soberania e da independência; o fortalecimento constante da unidade nacional; o controle efetivo dos bancos e dos seguros, da indústria, da agricultura e dos recursos naturais; o projeto e execução de uma estratégia integral de desenvolvimento, que inclua a revalorização do salário, o incremento do emprego e a eficiência econômica; a geração de capacidades científicas e técnicas próprias; a aplicação de uma política genuína de desenvolvimento humano e social; o funcionamento de um sistema político participativo e representativo; o crescimento do sentimento de solidariedade e cooperação humanas e, a mais ativa promoção da unidade e integração da América Latina e do Caribe, em estreita inter-relação com todas as demais nações subdesenvolvidas e com os setores cada vez mais desfavorecidos do chamado Primeiro Mundo. Nenhum destes critérios é aceitável para o capitalismo, que fará tudo o que for possível para frustrá-los. Por esta razão, somente um projeto firmemente baseado no poder do povo pode ter a capacidade de executar este programa e enfrentar com êxito a reação do sistema. A única alternativa ao neoliberalismo é o socialismo.

O plano internacional tem importância crescente. De acordo com a internacionalização e concentração da economia, os centros propulsores do capitalismo estabelecem, de forma cada vez mais imperativa, o código de conduta que deve reger todas as nações, assim como as penalidades e mecanismos para aplicá-lo. A democracia nas relações internacionais não foi iniciada. Na mesma medida em que o poder político, econômico e militar se concentra e se internacionaliza, a luta dos explorados e excluídos enfrenta a necessidade de adquirir um caráter mundial, por meio do surgimento de um novo internacionalismo entre os povos. O processo de criação de uma democracia pode e deve começar no país, mas não se completará até que se estenda e consolide em todo o mundo.

O neoliberalismo impõe seu próprio conceito de democracia

Muito se tem escrito, dos mais diversos pontos de vista, sobre as conseqüências de que não se tenha cumprido o presságio marxista do triunfo da revolução proletária nos países desenvolvidos e sua incidência nos processos de construção socialista conhecidos até hoje. Este tema ultrapassa os limites deste artigo. Os desafios do socialismo são grandes, mas que outra alternativa racional tem a humanidade? Os problemas do socialismo se ampliam ao se utilizar a imagem do Estado de Bem-Estar como parâmetro de comparação. Diante desta imagem se pretende medir as experiências fracassadas e as atuais de construção do socialismo. Com este nivelamento pretende-se argumentar a inviabilidade do desenvolvimento de experiências futuras; o capitalismo é sinônimo de “Estado de Bem-Estar”? É sinônimo de sociedade opulenta de consumo? O capitalismo realmente alcança, como sistema mundial, a média de êxitos da construção socialista? Os cidadãos da antiga União Soviética e demais países do chamado socialismo real vivem atualmente no “capitalismo real”? Por acaso desfrutam do “Estado de Bem-Estar”? Caminham em qual direção? O socialismo resulta incompatível com a riqueza e o consumo suntuoso das elites e com a miséria das grandes maiorias. Seu objetivo é a satisfação das necessidades de toda a humanidade e isto implica avançar em direção do desenvolvimento equiparado e sustentável.

O agravamento da crise do capitalismo provoca que a tendência política mundial comece a se deslocar da onipotência do neoliberalismo, para o fortalecimento das correntes reformistas. Enquanto que o sistema aprofunda inevitavelmente suas próprias contradições, sabemos que as condições para a revolução foram novamente criadas, ainda que hoje não possamos precisar quando, como, ou onde. Nestas circunstâncias, os pontos principais para a orientação do rumo da esquerda revolucionária, acerca dos quais torna-se urgente a unificação de esforços nacionais, regionais e mundiais, são três: primeiro, demonstrar a possibilidade e necessidade de derrotar o capitalismo; segundo: determinar os objetivos e táticas das lutas em cada conjuntura e, terceiro: aproveitar a experiência histórica do movimento revolucionário para abordar criativamente os problemas teóricos e políticos que se apresentam, entre os quais pode-se destacar: a conquista e a defesa do poder político, a construção de uma democracia socialista e a garantia da viabilidade econômica do projeto.

* Coordenador da Equipe de Análise da Área da América do Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista de Cuba.

Notas

(1) "É a direita que define o que se conhece, o que se discute, dentro de quais parâmetros teóricos, com que concepção de sociedade, sem que a esquerda possa confrontá-la com bases ideológica e teórica próprias. Parte deste vazio é o que explica uma hegemonia sem comparação da direita neste século, pois se impôs como princípio científico, a noção de que a desigualdade é um motor inevitável do funcionamento social e, portanto, um objetivo sempre desejável, na medida em que é imprescindível para recuperar o dinamismo do sistema". Beatriz Stolowics, Pesquisadora da Universidade Autônoma do México. México, DF. Manuscrito.
(2) Ver: VILAS, Carlos. Estado y políticas sociales después del ajuste: debates y alternativas. A.A.VV. Edição a cargo de Carlos Vilas, Nueva Sociedad, 1ª ed., Caracas, 1995.
(3) Ver: AMIN, Amín e CASANOVA, Pablo Gonzalez. La nueva organización capitalista del mundo vista desde el Sur (I e II). A.A.VV. Edição a cargo de Samir Amín e Pablo Gonzalez Casanova. Artrapos. Londres, 1ª ed., 1995.
(4) MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. El Manifesto Comunista (1847). Ciencias Sociales. Havana, 1991, p. 36. (5) "O Estado capitalista pode ser concebido como relativamente independente dos partidos políticos, dos grupos sociais ou de interesse, como o cenário em que são desenvolvidas as estratégias de poder, ou como o referente ou destinatário das mesmas, mas não é independente com relação ao caráter do sistema socioeconômico do qual emerge e das relações de poder que o expressam; portanto, não é autônomo nem neutro às tensões e crises que ameaça, minar o caráter de tal sistema", VILAS, Carlos, op. cit., p. 12.
(6) Ver: KANOUSSI, Dora. "Los princípios dei neoliberalismo". Memoria, n. 91, p. 32-27, México, DF.
(7) "Para algumas pessoas, a democracia deve, ou deveria, ter conotações mobilizadoras e mais idealistas. Em sua opinião, a "verdadeira democracia", significa "liberté, egalité, fraternité", um efetivo controle comunitário sobre as políticas de governo, um governo responsável, honestidade e abertura política, deliberação informada e racional, poder e participação iguais entre outras diversas virtudes cívicas. Estas são, em geral, as coisas boas e, se desejarmos, podemos definir a democracia nestes termos. Pensando assim, sem dúvida, aparecem todos os problemas que acabaram com as definições de democracia por princípio ou pelos seus objetivos. As normas confusas não permitem análises viáveis. Eleições, abertura, liberdade e jogo limpo são a essência da democracia, o infalível "sine qua non". Os governos eleitos podem ser ineficientes, corruptos, decepcionantes, irresponsáveis, dominados por interesses concretos e incapazes de adotar as políticas que ensejem o bem público. Estas características os transformam em governos indesejáveis, mas não em governos não democráticos", HUNTINGTON, Samuel. La Tercera Ola: la democratizacion a finales del siglo XX. Editora Paidós, Buenos Aires, 1994, p. 22-23, 1ª ed., Gráfica da Universidade de Oklahoma, 1991.
(8) "A chamada nova direita, ou neoliberalismo, está constituída por uma mescla de liberalismo econômico e conservadorismo sócio-moralista ligados aos preceitos políticos "da lei e da ordem" (…) Somente um Estado forte e um mercado regulador universal disciplinariam a sociedade. O mercado assume agora vários significados e papéis, é meio de disciplina social, já que põe fim ao desastre estatal-fiscal e às demandas desmedidas das forças organizadas, que sustentavam o consenso keynesiano (…) A relação entre o conservadorismo e o mercado é antiga; a novidade é, sem dúvida, a utilização do mercado para impor os valores e as tendências conservadoras. A primazia do mercado foi integrada à ideologia liberal que o considera fonte de liberdade individual e de bem-estar econômico e, mais ainda, à ideologia conservadora que o tem como instrumento de defesa das instituições "naturais", tradicionais e seus respectivos valores, KANOUSSI, Dora, op. cit., p. 32.
(9) "Um dos maiores êxitos da nova direita é ter socializado a idéia de que é possível praticar a democracia ainda que haja uma profunda desigualdade social, através da imposição da noção de que existe uma autonomia absoluta entre a economia e a política", STOLOWICS, Beatriz, op. cit.
(10) "(…) Empregados, trabalhadores e camponeses descobriram que os direitos do cidadão oferecidos pelo neoliberalismo não têm peso significativo para ensejar políticas que os fortaleçam ou os defendam. Nos países do Terceiro Mundo, a imensa maioria dos cidadãos está vivendo em nível de pobreza ou extrema pobreza; o fato de votar conforme a maioria, e de que seus votos serão eficientes, projeta demandas sociais e problemas de governabilidade, que a classe política e a dominante consideram aceitáveis. Mas, até mesmo a própria democracia eleitoral é imensamente precária, como também o são as liberdades de organização e os direitos individuais", CASANOVA, Pablo González. “Lo particular y 10 universal a fines del siglo XX", Memoria, n. 87, p. 9, México, DF.
(11) Estas idéias aparecem expostas nas intervenções de Felipe González e Ricardo Nufiez no Seminário "Los Desafíos para el Socialismo Democrático Ibero americano", CELARE. Santiago do Chile, 4 de setembro de 1996, p. 11-12; 13-18 e 39-41.
(12) "As classes médias – o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês – todas elas lutam contra a burguesia para salvar sua existência enquanto classes médias. Portanto, não são revolucionárias, mas sim conservadoras. Entretanto, são reacionárias, já que pretendem voltar atrás no caminho da história São revolucionárias unicamente quando têm diante de si a perspectiva iminente de se tornarem proletárias, defendendo assim não seus interesses atuais, mas os futuros, quando abandonarão seus próprios pontos de vista para adotar os do proletariado", op. cit., p. 4.
(13) Ver: CASTAFIEDA, Jorge G. Processo n. 1072, México, DF.
(14) "(…) Hoje na América Latina a batalha prioritária é derrotar o neoliberalismo, porque se não o derrotarmos, desapareceremos como Estados independentes e seremos mais colônias do que jamais foram os países do Terceiro Mundo (…) Derrotar o neoliberalismo seria criar uma esperança no futuro, preservar condições para seguir adiante, porque o limite do nosso progresso estará no capitalismo e não haverá progresso humano, se este não se propõe a ultrapassar as fronteiras do capitalismo, mas isto será uma tarefa para outro momento, não diria de outras gerações", RUIZ, Fidel Castro. Discurso pronunciado na Sessão de Encerramento do IV Encontro do Foro de São Paulo, Granma, 26 de julho de 1994.

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16