Além de literatura e história, seus temas preferenciais, ele tem livros temáticos, e exaustivos, sobre as classes sociais, os militares, a imprensa, de crítica da ideologia dominante, de geografia etc. Militar cassado pelos generais golpistas de 1964, foi pioneiro no uso do marxismo na análise da sociedade brasileira, professor em academias do exército brasileiro e um dos dirigentes do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão do Ministério da Educação e Cultura que, nos anos 1950 e 1960, dedicou-se ao diagnóstico dos problemas de nosso país, de um ponto de vista nacionalista e democrático. Alguns de seus livros se tornaram clássicos, como História da Literatura Brasileira, Panorama do Segundo Império, Formação Histórica do Brasil, Razões da Independência, Ideologia do Colonialismo, História Militar do Brasil, História da Imprensa do Brasil, e o utilíssimo O que se deve ler para conhecer o Brasil. Chegou a enfrentar as agruras que a ditadura destinava a seus opositores principalmente por ter organizado e dirigido a publicação, no começo dos anos 60, da História Nova do Brasil. Foi um dos pensadores que revolucionou o estudo de nossa história, situando-a no conjunto de conhecimentos que ajudam a compreender a realidade política, social e cultural numa perspectiva das mudanças necessárias para sua modernização autêntica e profunda. Bernardo Joffily, de Princípios, foi ao Rio de Janeiro, ouvi-lo (JCR). O senhor é o decano dos historiadores marxistas brasileiros e, ao mesmo tempo, general da reserva do Exército brasileiro. Como é possível conciliar estas duas facetas de sua atividade intelectual e profissional?

Foi muito difícil enquanto estive na ativa, por diversos motivos, entre os quais a falta de tempo. Mas, como fui também trabalhador noturno e aproveitei os vagares da profissão, que eram poucos, consegui exercer as duas atividades. Em certas fases, a atividade intelectual foi muito prejudicada, sem dúvida.

Quando e como o senhor se tornou marxista?

Tive a sorte de ter, no Colégio Militar do Rio de Janeiro, um professor de História marxista. Ele me deu os primeiros rudimentos do marxismo. Depois, através da leitura, procurei me aprofundar no estudo dos clássicos. Foi uma longa aprendizagem, iniciada na adolescência e continuada pelo resto da vida. Continuo a estudar o marxismo e nunca deixei de estudá-lo.

Sua obra literária e historiográfica cobre um amplo leque de temas – vai da literatura à história das classes no Brasil, à história da formação social brasileira, da imprensa, das Forças Armadas etc. Como foi possível, no decorrer de sua longa carreira de escritor e pesquisador, produzir tantas obras, de valor tão relevante, numa época em que se valoriza muito a especialização?

Fui, e continuo a ser, um trabalhador infatigável. As longas e profundas leituras, iniciadas na infância, me permitiram, com a ajuda de também longas pesquisas, em alguns casos, o levantamento e a narração dos temas a que me propus. Minha base foi o método histórico marxista, sem o qual a minha obra não seria o que é. Sou de uma época em que a formação da cultura tinha base humanista e, portanto, se diferenciava claramente da base em especialização que vem adulterando tanto a cultura, agora. Comecei pela literatura, em 1938, com a História da Literatura Brasileira e, depois, passei à História, em que me aprofundei mais. Na nossa época, no Brasil, e também no mundo "ocidental e cristão", a moda está na especialização. É um dos traços negativos da concepção de cultura peculiar à época em que estamos vivendo.

Como o senhor avalia a situação da história hoje, quando se tornou moda, entre os historiadores, valorizar o quotidiano, o especifico, o micro, em detrimento da compreensão do processo histórico, das grandes sínteses, do estudo das leis gerais da história, da história como ciência?

É um dos traços mais singulares e sintomáticos do baixo nível a que a cultura está relegada hoje. Assinala essa temporária e crepuscular fase que vamos vivendo, quando o objetivo é alienar o homem e atrair as atenções para o menor, para o anedótico. É o triunfo da mediocridade erigida em norma. O horror à História, à História como ciência, que é, dá indicação de quanto ela constitui ameaça ao estabelecido. E o estabelecido não perdoa isso, Marx dizia que só há uma ciência, a História. E ele sabia por quê.

Como são suas relações com a universidade? Há, em alguns meios, preconceito quanto à sua obra. Como o senhor avalia isso?

Na minha mocidade, quando estudei o marxismo, não havia Faculdades de Filosofia, no Brasil, nem havia Universidade. Não me “formei” em História, portanto. Creio que o julgamento negativo do que escrevi é um traço da Universidade de São Paulo (USP), não das universidades, em algumas das quais dei cursos. É um ponto de vista e assinala, a meu ver, diversidade de concepções sobre a História.

O Brasil, sob a Guerra Fria, foi submetido a uma campanha anticomunista intensa e continuada. Essa campanha estava vinculada, profundamente, à necessidade, para o imperialismo

Como foram as suas relações com os comunistas brasileiros? O Partido Comunista teve, a partir de 1962, uma expressão orgânica dúplice, com duas organizações reivindicando a continuidade histórica a partir do partido fundado em 1922. Hoje, o velho partido deixou de existir, e o PCdoB, visto durante muitos anos como dissidência dele, é a principal força comunista do país. Como o senhor avalia essa história?

O Partido Comunista Brasileiro teve uma história tormentosa e não somente por força da reação, mas por razões endógenas. A duplicidade de partidos comunistas não foi uma peculiaridade nossa, apenas. Mas de qualquer forma foi lamentável. Mas isto é passado e a história já apagou essa chamada duplicidade. O fato é que o velho PCB acabou, em congresso, por transformar-se em uma organização partidária não marxista e não comunista. E o PCdoB vai, a cada dia, se destacando como autêntico representante do marxismo e do comunismo. Só posso cumprimentar o PCdoB por esse papel eminente.

Entrando propriamente na história da formação social brasileira, sua obra deu grande impulso à compreensão marxista de nosso passado. Há quem aponte, em seus livros, a influência direta das teses da Internacional Comunista, que se revelaria na idéia de que
aqui se repetiu o esquema de sucessão dos modos de produção (comunismo primitivo, escravismo,feudalismo e capitalismo). Outros, como o historiador Jacob Gorender, pensam que a sucessão de modos de produção ocorreu com uma dinâmica própria, com o capitalismo formando-se a partir da desagregação do escravismo. Como o senhor avalia o estado dessa discussão em nossos dias?

Em primeiro lugar, as teses da Internacional Comunista não tiveram a mínima influência na minha obra. Em meu livro Formação histórica do Brasil, ficou bem claro que a nossa evolução histórica, isto é, a passagem de um modo de produção a outro, diferiu profundamente do esquema rígido mencionado. O que existe, realmente, é uma tabuleta, peculiar aos que não leram aquela obra e nenhuma outra de minha autoria, em particular a relativamente recente, Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, em que o assunto é, mais uma vez, definido, segundo os meus pontos de vista. Discordo profundamente da tese de que o capitalismo brasileiro se formou a partir da desagregação do escravismo.

Outra posição sua que muitas vezes é incompreendida diz respeito aos militares e seu papel na sociedade brasileira. O senhor garante que há um setor democrático no Exército Brasileiro. Se pensarmos na atuação de soldados como Floriano Peixoto, Luiz Carlos Prestes ou Henrique Teixeira Lott (só para citar alguns), essa tese ganha consistência. Entretanto, hoje, depois de décadas de ditadura militar, ela se mantém?

Fui implacavelmente malsinado, depois de 1964, por ter escrito que os militares brasileiros, o Exército particularmente, tinha uma formação democrática. A esquerda da esquerda (e bota esquerda nisso) me acusou até de ter facilitado o golpe de 1964. O que há, e houve, de verdade nisso? Basta lembrar a nossa história: os militares, no Brasil, sustentaram a escravidão e lutaram para a sua abolição, sustentaram a monarquia e derrubaram-na, sustentaram a República Velha e acabaram com ela, derrubaram governos constituídos mas também asseguraram o seu funcionamento. Que quer dizer isso? Quer dizer que os militares, ora tiveram posições democráticas, ora tiveram posições antidemocráticas. Na verdade, os militares não são, essencialmente, democratas ou antidemocratas. Os militares, estando o Exército inserido na sociedade brasileira, acompanham as contradições da sociedade brasileira: ora assumem uma posição, ora assumem outra posição de fazer das Forças Armadas do Brasil, como de outros países, um instrumento para os seus propósitos. E conseguiram, sem a menor dúvida. Hoje, é costume o leitor de jornais deparar com referências à ditadura instalada em 1964 como "ditadura militar". Sim, ela foi exercida por militares. Mas foi a ditadura das forças mais reacionárias da sociedade brasileira, a serviço das quais os militares foram colocados. O militar, aqui, é um cidadão desinformado, alienado, distante dos problemas políticos. Movido pelas ordens, pois estão numa organização vertical, em que o domínio é exercido por quem está em cima e opera por gravidade: o que vem de cima é uma ordem e deve ser cumprida. Hoje, mudou a circunstância, hoje o imperialismo, agora disfarçado de neoliberalismo, pretende que os militares não defendam seu país, mas sejam mera milícia para combater o tráfico de tóxicos. A doutrina do imperialismo, hoje, é que os países latino-americanos não precisam de Forças Armadas e que elas devem ser extintas ou destinadas a outros místeres. Os militares sabem disso, perfeitamente. Conheço muitos militares que participaram da chamada "ditadura militar" e, hoje, sabem que foram movidos por uma campanha que os levou a cometer graves erros. Já estão conhecendo a verdadeira face do imperialismo. E conhecem bem o que o neoliberalismo no governo está fazendo para destruir o nosso país. O neoliberalismo verificou, como os seus mandantes, que não precisam de golpes militares para fazer o seu serviço; ele tem a mídia como instrumento fundamental para isso.

Tanto comunistas como militares têm se destacado, ao longo das décadas, por defender a soberania e a independência da Nação brasileira. Em muitos momentos, chegam mesmo a coincidir sua atuação, como na campanha do petróleo, nos anos 1940 e 1950. Como, em sua opinião, a questão nacional se combina com a defesa do socialismo e com o marxismo?

É interessante lembrar que o PCB tinha, em suas fileiras, um número grande de militares. Foi talvez uma de suas deficiências, pois a estria militar, preponderou em alguns episódios, e negativamente. Militares foram os mais ardentes defensores do monopólio estatal do petróleo – a tese foi formulada por um militar, o general Horta Barbosa – como outras teses essencialmente patrióticas. Acontece que, por formação, os militares são mais afins com a questão nacional do que com a questão democrática. Mas chegarão lá, e logo. Para nós, a questão nacional se combina com o socialismo e com o marxismo. Os militares não precisam chegar ao socialismo e ao marxismo para se portarem como patriotas. Tanto quanto se pode prever, eles não chegarão a esse nível. Que, aliás, não é o único a alicerçar a defesa do povo brasileiro. Essa defesa pertence a brasileiros de muitas tendências e formações e posições. Cumpre reuni-los e mobilizá-los.

Conheço militares que participaram da ditadura e, hoje, sabem que foram movidos por uma campanha que os levou a cometer graves erros

Outra avaliação polêmica sua diz respeito ao modernismo. O senhor já disse que, se o modernismo tem importância indiscutível, não se pode dizer o mesmo da Semana de Arte Moderna de 1922. Como se fundamenta esta distinção?

Eu vivi a época da Semana, em 1922. Ela surgiu de uma blague de Di Cavalcanti. Foi proeza de alguns intelectuais que giravam em torno do velho PRP, o Perrepê da República Velha, e viveu da propaganda. A importância dela foi pequena, quase nula, salvo para os seus protagonistas. O modernismo, ao contrário, foi algo de renovador e tinha sólidos fundamentos. É interessante lembrar que a obra de Carlos Drummond de Andrade apareceu quase uma década depois e o romance nordestino ainda mais longe. Estes foram, realmente, sinais de uma modernidade que se afirmava, essencialmente, pela valorização do que era popular em nós.

Ainda em relação à literatura, o senhor a encara como uma forma de conhecimento. Além de uma forma de prazer, ela é uma manifestação artística que mostra muito da sociedade. O que é que distingue a arte como forma de conhecimento?

Todas as artes, e a literatura com destaque, são formas de conhecimento. Ela se distingue de outras formas, por muitos motivos, que seria longo enumerar e já foram objeto de muitos autores. Entre eles, Gorki, que esclareceu como a arte literária permitia ao homem conhecer a realidade. Marx lembrou, em mais de uma passagem, que os romances de Balzac são a melhor história da ascensão da burguesia francesa. Muitos de seus personagens, aliás, fizeram aumentar o registro civil, e estão mais vivos do que a maioria das personagens políticas da época, reis, ministros, parlamentares etc.

A utopia socialista não morreu. Ela vai ressurgir das ruínas desse mundo podre que o capitalismo gerou

Finalmente, apesar de perder força, a tese de que a história chegou ao fim ainda se mantém em muitos meios. O capitalismo seria a culminação da experiência humana, e nada mais haveria a fazer senão corrigir seus defeitos e criar compensações para aqueles que são, inevitavelmente, prejudicados pelo funcionamento do sistema. Numa situação como a atual, a utopia socialista, o sonho de se alcançar um mundo mais justo, tem que ser abandonado?

Quem inventou essa impostura foi um escriba de certa multinacional norte-americana, e, como convinha aos interessados, ela foi propagada como uma verdade, a verdade dos novos tempos. Não passa de tolice que dispensa comentários. O capitalismo é uma etapa da história humana e não é das mais bonitas, como bem sabemos. Também sabemos de seus defeitos, que seria longo enumerar, mas deles existem no Brasil quadros vivos expressivos, como o dos milhões que estão desempregados, os milhares que dormem em baixo das pontes, os milhares que passam fome, os milhares ou milhões que sofrem enfermidades, apesar do avanço das ciências ligadas à medicina. O capitalismo é um conjunto de mazelas e de torpezas. No Brasil, o neoliberalismo, que é a sua derradeira manifestação, tem mostrado o que é o capitalismo e ainda mais o capitalismo dependente. A utopia socialista, o sonho por um mundo melhor, não morreu. Ela vai ressurgir, com força maior e mais eficaz, das ruínas desse mundo podre que o capitalismo gerou e que está pesteando a humanidade. O seu dia chegará.

* Bernando Joffily é jornalista.

EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 65, 66, 67, 68, 69