A ciência econômica, compreendida como conjunto de regras operacionais, como técnica de aplicação universal e a-histórica, é a área do conhecimento onde as teses apologéticas surgem com a mesma rapidez dos acontecimentos. O que vem ocorrendo com o corpo de idéias conhecido como neoliberalismo é um exemplo disso. Os sinais de seu esvaziamento multiplicam-se. Um dos mais enfáticos foi o artigo do megainvestidor George Soros publicado na revista americana The Atlantic Monthly em fevereiro de 1997, onde ele confessava o temor de que "a desenfreada intensificação do capitalismo de laissez-faire e a difusão dos valores do mercado em todas as áreas da vida estejam colocando em perigo nossa sociedade aberta e democrática. O maior inimigo da sociedade aberta, eu creio, não é mais o comunismo, mas a ameaça capitalista.".

A intervenção de Joseph Stiglitz, vice-presidente do Banco Mundial, nesse debate mostra que esse confronto de idéias deu alguns passos novos. Stiglitz fez uma conferência, no começo do ano, em Helsinque, na Finlândia, com críticas sérias ao chamado Consenso de Washington (trechos publicados pelo Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 12-07-1998). As políticas propostas pelo Consenso de Washington, disse, são "incompletas e, algumas vezes, equivocadas. Coisas importantes foram deixadas de lado: por exemplo, para que os mercados funcionem não basta inflação baixa, é preciso que haja regulação financeira confiável, políticas pró-competição, políticas para facilitar a transferência de tecnologias e transparência nas informações". A respeito da intervenção do Estado, diz que o "governo tem um papel importante: o de responder aos fracassos do mercado"; seu papel é o de complementar o mercado, além de corrigir suas falhas; além disso, "não devemos considerar o Estado e os mercados como substitutos um do outro".

A resistência popular em todo o mundo provoca tentativas de revisão do Consenso de Washington

Stiglitz acaba aceitando que as idéias que vem defendendo estão marcadas pela crise da Ásia. É uma espécie de reconhecimento, não confessado, de que a resistência oposta ao projeto neoliberal em todos os países provoca a revisão de teses até aqui aceitas quase religiosamente. Estes sinais, que aparecem no campo da teoria, são reflexo de outros sinais, muito mais nítidos, que podem ser vistos na vida real, diária, dos trabalhadores e dos povos. A greve da General Motors, nos EUA, que se espraia pelo mundo, é um deles; mas as ações de massas na Indonésia, os protestos de trabalhadores e as greves na Europa (na França, na Alemanha, a greve da Renault, que envolveu vários países), o descontentamento popular na Rússia, os protestos de trabalhadores na Coréia do Sul, são estas as marcas da resistência crescente, no plano mundial, que calça a preocupação de apologetas como Soros ou Stiglitz, que querem reformar o neoliberalismo para manter o domínio do capital.

O Consenso de Washington foi formulado em 1989, no Instituto de Economia Internacional da capital norte-americana. Estiveram envolvidos, em sua definição, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Mundial, o FMI, e representantes dos governos da América Latina e do Caribe. Os representantes brasileiros foram os economistas Marcílio Marques Moreira e Eduardo Gianetti da Fonseca. Naquela reunião foram acertados o conjunto de teses e medidas que seriam a essência do projeto neoliberal aplicado na América Latina: combate à inflação, modernização do Estado, ajuste fiscal, controle monetário, privatização, abertura comercial, fim das restrições ao capital estrangeiro, redução do tamanho do Estado, redução e fiscalização dos gastos públicos, abertura financeira, desregulamentação da economia (principalmente da legislação trabalhista), reforma da previdência social e investimentos em infra-estrutura básica. Foram poucos os países que, sob pressão dos EUA e do FMI, deixaram de aplicar esse receituário, no qual podem ser reconhecidas várias das prioridades do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Esse conjunto de medidas é apresentado como técnicas, como imposições do saneamento financeiro necessárias (como um remédio amargo) para os países alcançarem o desenvolvimento e a prosperidade.

Há 100 anos, Campos Salles renegociou a dívida externa à custa da soberania do país

Entretanto, basta uma breve olhada para a história financeira do Brasil republicano para se reconhecer o engodo dessa ciência inelutável. Em abril deste ano, por exemplo, fez 100 anos que o presidente eleito Campos Salles foi a Londres discutir com os Rotschild a rolagem da dívida externa brasileira, continuando a negociação iniciada por Prudente de Moraes, seu antecessor, e que levaria ao funding loan de 1898. A dívida antiga foi consolidada num novo empréstimo e, assim, empurrada para a frente.

Na época, a presença do Estado na economia e em áreas sociais era nula. Assim, as garantias para o empréstimo não envolveram, como hoje, a redução de gastos públicos e outros itens do receituário moderno. Mas Campos Salles, saudado por Fernando Henrique como um presidente que teria saneado as finanças do país, não teve pejo de dar em garantia do empréstimo a renda da Alfândega do Rio de Janeiro e das demais alfândegas das receitas da Estrada de Ferro Central do Brasil e do serviço de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Naquela época, o caráter neocolonial desses acordos internacionais era mais nítido! Além disso, os banqueiros exigiram medidas de saneamento fiscal (reduzir despesas e aumentar impostos) e monetário, modernização da administração pública, e uma política econômica que simplesmente deixou morrer a indústria nacional que então nascia. Na compreensão daqueles homens, só podiam existir as chamadas "indústrias naturais", isto é, que empregassem matérias-primas, tecnologia e equipamentos brasileiros!

O país precisa abandonar o anacrônico modelo da integração subordinada

Nas décadas seguintes, esse receituário foi seguidamente reiterado. O inglês Otto Niemeyer, por exemplo, que veio ao Brasil em 1931 para examinar as condições da economia brasileira e renegociar a dívida externa do país, fez exigências semelhantes: equilíbrio orçamentário, estabilização da moeda e criação de um Banco Central.

Esse rosário de sugestões, essa cantilena uníssona de todas as missões estrangeiras (após a Segunda Guerra, do FMI) que vieram ao Brasil, é – na essência – a mesma que constou no Consenso de Washington, nas quais Stiglitz quer colocar o band-aid de suas preocupações compensatórias.
Isso é apresentado como modernidade, mas o respeito a esse receituário está na base dos problemas que o Brasil enfrenta como nação soberana e que o impedem de superar a pobreza e o atraso. O país precisa adotar, urgentemente, novas medidas para seu desenvolvimento, precisa abandonar esse velho e anacrônico caminho da integração subordinada ao bloco capitalista, e trilhar a senda de um novo modelo que construa um Brasil para os brasileiros, e não para os magnatas estrangeiros e seus aliados internos.

Comissão Editorial

EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 4, 5