Experiências políticas de um governo democrático e popular
O professor Biplab esteve em nosso país para realizar uma importante palestra em Porto Alegre, no Seminário Século XXI, solidariedade ou barbárie?, organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e aproveitou para abordar o quadro político da Índia e a experiência de governo do Partido Comunista da Índia (Marxista).
"Há muita coisa em comum entre o Brasil e a Índia. Sempre consideramos a Índia como um país muito grande, mas o Brasil é três vezes maior. Existe um aspecto em que somos maiores: a nossa população é seis vezes maior que a brasileira. Mas, de qualquer maneira, em ambos os países não há escassez de recursos, tanto no sentido biológico, quanto mineral, ou, quanto humano. Nos dois países existe a possibilidade de um desenvolvimento econômico auto-sustentável, o que não é possível em países pequenos. Possuímos grandes mercados e também uma mão-de-obra qualificada numerosa; uma variedade de recursos minerais e agrícolas que podem ser importantes para sustentar um desenvolvimento industrial.
O Brasil é mais rico do que a Índia, é considerado como rico mas está um pouco abaixo em relação aos países ricos. Segundo o Banco Mundial, está na faixa superior dos países de renda média. Ao passo que a Índia é um dos países mais pobres do mundo; estamos colocados entre os vinte mais pobres do mundo.
As pessoas na Índia estão muito contentes porque alcançamos Bangladesh e somos mais ricos do que o Nepal e o Butão. Mas, a maioria dos países, mesmo os da Ásia e os da África, são mais ricos do que nós. Todavia, temos certeza e a compreensão de que, com políticas acertadas, a Índia poderia se tomar um país bastante rico porque possui recursos e pessoas para tal empreendimento.
Entendi que vocês têm interesse especial em dois temas: em primeiro lugar, no que está acontecendo na vida política da Índia hoje; e, em segundo lugar, conhecer um pouco mais sobre a experiência dos três governos que são dirigidos por forças marxistas, pelo Partido Comunista Marxista, na Índia.
A Constituição da Índia proclama uma estrutura federal para o país, mas não é tão federal assim se formos comparar com a experiência, por exemplo, do federalismo norte-americano. Temos 26 estados no país, dos quais 16 são bastante grandes; os outros são menores. Em cada um deles há um Parlamento, ou Assembléia Legislativa, e um governo estadual, que presta contas e é eleito pelo Parlamento estadual. Temos também um governo central com um Parlamento nacional e uma Corte Suprema.
O tema das divisões de poderes entre o governo central e os governos estaduais sempre foi extremamente polêmico. A nossa compreensão é que, embora a Constituição preserve características federais, tenha traços federais, de fato ela consagra uma forma de governo bastante centralizado. O poder fiscal é quase todo centralizada pelo governo central. Os governadores estaduais só podem introduzir alguns impostos indiretos, mas que são limitados. São os quadros da burocracia do governo central que ocupam posições nas burocracias dos governos estaduais. Eles vêm do serviço administrativo central da Índia e são alocados nos governos estaduais. Toda a sua carreira, a sua promoção, o seu local de trabalho, são determinados pelo governo central. Embora estejam ocupando cargos altos no aparelho administrativo dos governos estaduais, não estão sob o controle efetivo desses governos. O mesmo ocorre com os cargos dirigentes das forças policiais.
Existe um artigo na Constituição indiana, o artigo 356, que dá poderes ao governo central para cassar o mandato do governador estadual no momento que melhor lhe convier, ou que quiser. Então, há sempre uma espada pendurada sobre a cabeça do governador.
Existem outras dimensões do problema pelos estados não serem independentes entre si. A mesma coalizão de forças das classes dominantes que ocupa o poder no centro também se expressa em todos os estados da Federação da Índia. Não há barreiras à entrada de pessoas ou idéias entre os estados. No restante do país há uma atmosfera de tensões que dizem respeito às divisões religiosas nacionais existentes na Índia – conflitos esses bastante agudos. Em função disso, no estado em que administramos, não ficamos imunes a tais tensões, quer dizer, esse tipo de sentimento de rivalidade também penetra no nosso estado.
Apesar dessa situação bastante complexa e difícil, conseguimos assumir o governo de três estados da Índia. O primeiro estado que administramos foi Querela, em 1957. Mas, em 1959, dois anos depois, portanto, esse governo foi derrubado com base naquele artigo 356 da Constituição indiana. Desde então, temos estado dentro e fora do governo de Querela repetidas vezes. Um outro governo no qual temos tido presença, e governado por muito tempo, foi o estado de Tripora. Mas a experiência mais importante em que estamos envolvidos continuamente no governo – já há 21 anos –, é a experiência de Bengala Ocidental.
Vocês devem ter reparado que tenho dito desde o começo estarmos no governo, mas não no poder. Nós só poderíamos estar no poder se tivéssemos o controle efetivo sobre a polícia, sobre o Exército, sobre a administração, sobre a burocracia e sobre o Judiciário, e não temos controle sobre esses instrumentos de poder. Dada a estrutura semifeudal e semiburguesa que predomina na Índia, não há muito o que se possa fazer a partir da ocupação de governos estaduais, por intermédio das eleições. Há pouco espaço para a iniciativa independente e não podemos ir além dos limites que nos são impostos pela Constituição em vigência. Portanto, não podemos instaurar um regime socialista ou comunista nos governos que administramos. Dessa forma, não podemos resolver, a partir dos governos estaduais, problemas fundamentais da sociedade como emprego, desemprego, distribuição de renda, miséria e outros.
Bengala Ocidental tem uma população de sessenta milhões de pessoas aproximadamente. Na verdade, o que está ao nosso alcance é proporcionar alguma forma de alívio para as massas populares, atuando – através da administração burguesa – de forma mais eficiente do que a própria burguesia. É claro que queremos conquistar o socialismo, mas é impossível fazer isso nos limites impostos aos governadores dos estados pela Constituição. Só podemos fazer essa transformação se capturarmos o poder central em Déli, a capital da Índia. Sem a conquista desse poder operamos, necessariamente, dentro dos limites que nos são impostos pela Constituição indiana.
Por esse ângulo, temos tido a possibilidade de fazer muito pouco, face às necessidades do povo, nos estados em que governamos; e por isso, até mesmo ficamos perplexos e chegamos a nos perguntar: por que as pessoas continuam a votar no Partido Comunista? Nos últimos 21 anos temos vencido todas as eleições em nível de governo, do Parlamento estadual, dos Parlamentos municipais e das representações locais existentes nas áreas rurais. E isso foi possível até aqui porque temos sido muito honestos e francos com o povo. Dizemos abertamente o que podemos e o que não podemos realizar dentro desse sistema. Porém, mesmo com esses constrangimentos, dentro desses limites, temos conseguido fazer algumas coisas importantes que nenhum outro governo estadual na Índia fez.
Nosso maior sucesso tem se verificado nas áreas rurais. Conseguimos eliminar as grandes propriedades em Bengala. Lá, não há mais latifúndios
Nosso maior sucesso tem se verificado nas áreas rurais. Implementamos uma política de reforma agrária que foi tão longe quanto possível, dentro dos limites permitidos pela Constituição. Conseguimos eliminar todas as propriedades latifundiárias no estado de Bengala Ocidental. Não há mais latifúndios grandes propriedades rurais – nesse estado. O que temos são pequenos proprietários de terra. Mas, proprietários não com o significado que vocês têm de camponês. Temos pequenos proprietários de terra, fazendeiros, que vivem na cidade e contratam empregados assalariados no campo para trabalhar nas suas terras, que não são propriamente latifundiários.
Além da questão da propriedade da terra, existem leis específicas que protegem tanto os camponeses quanto os trabalhadores agrícolas, ao contrário de outros estados. Quer dizer, os camponeses que trabalham a terra em regime de parceria, em Bengala Ocidental, não podem ser expulsos de suas terras, como acontece em outros estados. E também há limites fixados bem claros de salários mínimos para os trabalhadores agrícolas.
Com isso, conseguimos dar um fim ao tipo de exploração semifeudal que existia anteriormente em Bengala Ocidental. Eliminamos isso de tal maneira que conseguimos superar e destruir as relações de dependência existentes no interior do campo entre pobres e ricos, e que eram consolidadas anteriormente.
Nosso segundo grande sucesso foi a montagem de governos locais nas áreas do campo, que são formas por um auto-governo da população camponesa. Existem três níveis dessas formas de governo local. O nível distrital, o que reúne 100 vilas e o que congrega 10 vilas. A maior parte dos fundos de desenvolvimento do governo estadual é conduzida por intermédio desses modos de governo local. Há eleições para compor os cargos representativos que surgem dentro desses governos a cada cinco anos. Quer dizer, se as pessoas não estiverem satisfeitas com a condução daquele governo local, o mesmo será revogado no prazo das eleições a cada cinco anos. É comum, por exemplo, as pessoas votarem a nosso favor no nível das 10 vilas reunidas, ou das 100 vilas, mas, votarem contra nós no nível distrital, por entenderem que a condução da nossa política não foi boa. Os habitantes dessas vilas do interior se tornaram muito conscientes dos seus direitos e assimilaram a compreensão de que a cada cinco anos têm condições de mudar o perfil do governo existente nesse poder local. Se a condução desse poder for arrogante; se o nível de vida dos ocupantes dos cargos desse poder se elevar muito; seus mandatos poderão ser revogados na próxima eleição.
Os governos locais, nesses três níveis, deliberam como utilizar os recursos, os fundos para o desenvolvimento. Eles é que decidem se vão construir uma estrada ou uma escola, ou seja, a decisão é tomada a nível desse poder local.
Nos últimos 21 anos temos vencido todas as eleições em nível de governo, do Parlamento estadual, dos Parlamentos municipais e das representações locais existentes nas áreas rurais
Portanto, a combinação dessa forma de democracia popular de base com a implementação efetiva da reforma agrária tem-nos dado uma base muito forte, e sólida, em Bengala Ocidental e nos tem permitido derrotar as tentativas da direita de inviabilizar ou derrubar o nosso governo.
Nas áreas urbanas não temos tido o mesmo sucesso. Para promover a reforma agrária não há necessidade de muito dinheiro; ou mesmo para montar essa estrutura de governo local. O que fizemos foi apenas a decisão de canalizar os fundos de recursos do governo, via essa estrutura. Porém, tudo o que tem de ser feito nas áreas urbanas exige, ao contrário, muito dinheiro. E as necessidades de infra-estrutura numa cidade como Calcutá – que foi construída há mais de 120 anos pelos ingleses, e que se tornou rapidamente uma cidade próspera – exigem um volume de recursos que o governo simplesmente não tem. Há também problemas gravíssimos de desemprego urbano e não temos como resolvê-los.
Existe também o problema da juventude, que, em última instância, sempre adota uma política contra o sistema, anti-Estado, contra o poder constituído, ou seja, contra a autoridade. Os jovens que hoje têm 30 anos não vivenciaram as experiências de governos anteriores. O único governo que eles conheceram durante toda a sua vida é esse marxista. E as suas expectativas de melhoria de vida não podem ser atendidas facilmente por um governo com as nossas limitações.
Em Calcutá se concentra a população mais rica de Bengala Ocidental. É uma camada mais privilegiada que tem um peso muito grande na mídia. E a mídia, em geral, tem sido sempre uma adversária do nosso governo. Então, quanto maior a concentração da população numa cidade, a tendência é que seja menor o apoio que iremos receber nas eleições, por causa dessa reação. Quanto mais próximos estivermos das vilas rurais e do campesinato, maior será o apoio ao nosso governo.
Temos um movimento operário forte em Bengala Ocidental. Contudo, por uma gama variada de razões, as indústrias desse estado não têm tido o sucesso que deveriam ter. A principal razão para isso é uma política de cerceamento econômico exercida contra o nosso estado pelo governo central, que queria transformar Bengala Ocidental num deserto industrial. Os bancos controlados pelo governo central sempre trataram de cercear a concessão de empréstimos para o nosso governo e, também, toda uma gama de instituições financeiras controladas pelo governo central segue tal política (a Comissão de
Planejamento sempre alocou recursos extremamente parcos para o governo de Bengala Ocidental). E, quando uma empresa privada solicita autorização do governo central para fazer investimentos em Bengala Ocidental, o mesmo a bloqueia e sempre manda pedir licença para montar sua indústria em outro estado. Havia um projeto, por exemplo, em que os russos estavam interessados em investir. Eles alocaram recursos para Bengala para um projeto específico. Porém, o governo central afirmou que esse recurso não deveria ir para lá, mas sim para outro estado da Índia. Com tudo isso tem-se cerceado o crescimento da indústria em Bengala Ocidental. Outro problema grave é o do desemprego industrial.
A combinação da democracia popular de base com a implementação efetiva da reforma agrária tem nos dado uma base forte e sólida em Bengala Ocidental
Também sentimos que, quando o partido ocupa o poder por um longo tempo, as expectativas da população em relação ao partido vão se modificando. E se toma cada vez mais difícil preservar e garantir a qualidade dos quadros necessários para o conjunto de tarefas em que o partido está envolvido, seja no governo, seja na própria estrutura partidária, ou, seja na montagem dos governos locais. Quer dizer, as exigências estão além das possibilidades dos próprios quadros do partido. Mas, nos últimos anos têm sido abertas possibilidades de grandes projetos de desenvolvimento industrial em Bengala Ocidental. Em parte porque a agricultura tem tido um desempenho muito bom. Outra razão é que boa parte dos empresários sentem que em Bengala Ocidental há um governo com estabilidade. Eles sabem que somos comunistas, mas, também sabem que é um governo que não pode aplicar uma política comunista, dadas as restrições das quais falei no início.
Tem havido muito desenvolvimento econômico na China e no Sudeste asiático. Sente-se, então, que o sol mais uma vez está se levantando no Oriente. Portanto, nesse contexto, e pelo fato de Bengala Ocidental estar, na verdade, na fronteira oriental da Índia – quer dizer, mais próxima dessa região – começam a se abrir novas possibilidades para o desenvolvimento industrial na Índia.
Vemos o nosso governo de Bengala Ocidental como a subida de um dos degraus dessa imensa escada que precisamos escalar se quisermos chegar ao socialismo, e ao comunismo. Esperamos que a nossa experiência possa se espalhar para outras regiões do país e servir para despertar a consciência revolucionária do povo indiano.
A reforma agrária em Bengala Ocidental
No século XIX uma série de lutadores por reformas sociais travou uma luta muito dura contra o sistema de castas em Bengala Ocidental. Então, na verdade, o que estamos fazendo é levar adiante o legado desses reformadores sociais burgueses do século XIX.
Contudo, ao lado disso, outra chave do sucesso da nossa política diz respeito ao grande movimento de massas que houve no passado. Dos anos 1940 em diante houve uma sequência de importantes lutas agrárias em Bengala Ocidental em defesa dos camponeses e trabalhadores agrícolas, e exigindo a liqüidação do sistema de latifúndio em Bengala Ocidental. Foi um movimento brutalmente reprimido levando à morte milhares de pessoas.
De 1972 a 1977, os cinco anos que precederam a nossa eleição a esse governo, o Partido do Congresso – que estava no governo central – promoveu uma repressão bárbara contra as forças progressistas de Bengala Ocidental chegando a matar 1.200 membros do Partido Comunista Marxista. Portanto, a base da nossa força foi justamente aquela que conseguimos atrair do campesinato, a partir dessas lutas.
O campesinato exigia a reforma agrária. Então, a reforma que fizemos não foi em nome ou a favor do povo; foi, na verdade, uma exigência. E assumimos o governo com um mandato que tinha como responsabilidade principal a realização dessa exigência: a reforma agrária. Contudo, mesmo com essa realização pudemos compreender que, como o volume e o número de terras colhidos para a reforma agrária era limitado, a mera distribuição de terras não tornaria o projeto sustentável. Mas, do ponto de vista psicológico, para um camponês sem terra, ter acesso à terra, mesmo restrita, significava obter 60 ou 70% do seu sustento. O que para ele era muito importante.
Portanto, de fato, a reforma agrária não está conseguindo resolver a questão agrária na Índia mas ela produziu um impacto político importante: uma elevação no nível de consciência das massas camponesas e pobres, em Bengala Ocidental. E as pessoas conseguiram desenvolver, a partir desse processo, um sentido de dignidade e auto-respeito que não tinham antes dessas políticas.
Em termos de arranjos da estrutura de propriedades, infelizmente, não é possível adotar uma exploração comunal da terra porque ainda existe um forte vínculo do camponês com a posse individual da terra. Mas nossa política é justamente a tentativa de montagem de cooperativas a partir desses camponeses. o que lhes permitiria uma economia de escala nos seus trabalhos. E, pela estrutura do poder local, estão conseguindo fornecer fertilizantes e adubos para os camponeses de forma a lhes dar também condições mais viáveis para o desenvolvimento da agricultura. E mais recentemente, conseguimos abrir linhas de crédito em bancos para os agricultores, o que inexistia anteriormente.
E isso não apenas é real, como na área rural foi possível eliminar a fome, na sua forma mais dura. Além disso – o que é fundamental – outro desenvolvimento importante foi que, antes, sempre que ocorria alguma forma de calamidade: inundação, seca, terremoto etc., os moradores das vilas rurais fugiam para a cidade, migravam, esperando lá encontrar alguma forma de ajuda do governo – que era feita diretamente –, como um alívio que lhes seria dado.
Recentemente foi eleito um governo de extrema direita e semifacista mas, felizmente, esse governo não tem maioria no Parlamento. Eles sempre dependem de 22 aliados para poder aprovar as suas políticas
Agora, com a estrutura de poder local, essas formas de ajuda são proporcionadas na própria vila, ou seja, as pessoas não precisam mais sair das suas casas para obter apoio público e enfrentar tais calamidades. Então, se acontecer uma inundação não há mais pânico entre a população. Ela sabe que, via estrutura do poder local, a ajuda vai chegar até lá. No caso da seca a mesma coisa. Ao invés de migrar para as cidades, os camponeses permanecem nas vilas sabendo que via estrutura do poder local vem apoio para ajudá-los a enfrentar o problema. Contudo, um dos resultados disso, por exemplo, foi que as pressões populacionais sobre a cidade, inclusive sobre Calcutá, têm diminuído. O índice de migração diminuiu a partir da implementação dessas políticas.
Quando o governo assumiu Bengala Ocidental esse estado constituía, na Índia, a região que menos incorporava tecnologias à produção agrícola e era a de mais baixa produtividade. Mas, a partir dessas transformações, já é considerado, hoje, o estado de maior produtividade agrícola da Índia.
A contraposição que apresento à experiência de Bengala Ocidental é o exemplo do Punjab, uma outra região do Norte da Índia, onde quem toma a dianteira no processo de desenvolvimento agrícola são os camponeses ricos, e, por isso, não se espalha tão amplamente na sociedade quanto a experiência de Bengala Ocidental, onde quem toma a dianteira da inovação tecnológica são justamente os camponeses pobres, o que registra um impacto social muito mais abrangente.
Uma comparação interessante é que em Punjab se utiliza mais maquinaria da produção agrícola: tratores, etc., cujo uso é menor em Bengala Ocidental. Contudo, apesar disso, conseguimos um aumento da produtividade do trabalho a partir das transformações sociais e das políticas implementadas. Antes da independência, o que predominava em Bengala Ocidental era um sistema de latifúndios. Mas os latifundiários em geral ficavam na cidade e não nas suas terras. Então, eles transferiam o excedente econômico da área rural para as cidades, via essa estrutura latifundiária, o que gerou um grande desenvolvimento em Calcutá, enquanto gerava um nível de miséria absoluta no restante do estado.
Desde os anos 1940 iniciaram-se os movimentos para abolir o sistema de latifúndio e defender os direitos dos camponeses e dos trabalhadores. Contudo, na época, o governo do Partido do Congresso introduziu uma legislação que estabelecia regras em termos de propriedade agrícola. Mas isso ficou apenas como legislação não tendo sido implementado. E também, durante esse período foram aprovadas leis, tanto em nível central quanto estadual, de meios de proteção dos camponeses que trabalhavam em regime de parceria, sendo que o impacto dessa lei em vez de proteger esses camponeses os expulsava das suas terras.
Os setores progressistas tomaram o governo estadual e o mantêm continuamente desde 1977, mas, antes disso, houve uma experiência de governo de frente única de esquerda que durou dois anos: de 1967 a 1969. E nesse governo teve início uma tentativa de implementar esse tipo de propriedade que o próprio Partido do Congresso havia aprovado como legislação, mas não implementado. Na época, o ministro da Polícia usou seus poderes para fazer investigações sobre propriedades ilegais mantidas pelos latifundiários que excediam os limites estabelecidos pela legislação e optaram pela mobilização forte do campesinato em apoio a essas medidas, já naquele período de 1967 a 1969.
E a linha adotada então foi a de que o campesinato não devia se preocupar com a administração central, mas deveria montar os seus próprios comitês de reforma agrária; ocupara terra e distribui-Ia nos seus locais de moradia; o que mobilizou efetivamente o campesinato e grande parte da terra foi ocupada. Porém, o resultado concreto disso foi um colapso no governo de esquerda, levando o partido do Congresso a intervir em Bengala Ocidental, a afastar o governo, e abrir o período que já havia sido vivenciado anteriormente, conhecido como caça às bruxas, ou, caça à esquerda de Bengala Ocidental, que durou de 1970 a 1977. Nesse período eles reverteram grande parte da ocupação de terras que havia sido feita pelo governo do período 1967-69, devolvendo-as aos proprietários anteriores. Mas, houve grande resistência contra essa atitude por parte do campesinato. Então, em 1977, quando houve uma nova eleição, o grande tema para os camponeses foi a recuperação das suas terras as quais haviam ocupado naquele período de 1967-69 e que haviam sido devolvidas aos proprietários, tendo sido isso, na verdade, o que motivou o grande apoio dado por eles ao governo de esquerda conduzido pelo Partido Comunista Marxista. E, é por essa razão que o nosso governo assumiu com um mandato que tinha a responsabilidade de realizar essa reforma agrária que já estava inserida nesse leito de lutas dentro de Bengala Ocidental.
Após 1977, novas leis foram aprovadas em Bengala Ocidental no sentido de dificultar o encobrimento de propriedades e a manutenção de propriedades ilegais por parte dos donos de terras.
Por exemplo, pela lei anterior se a terra fosse doada a um órgão religioso, ou qualquer forma de associação religiosa, essa terra não poderia ser atingida pela reforma agrária. Portanto, muitos proprietários doaram as suas terras a determinado deus porque lá o que mais existe são deuses. Só o povo da Índia possui 330 milhões deles, não sendo difícil encontrar um para doar terra.
Mas, deus não pode se fazer representar na Corte e nem pode assinar documentos. Alguém precisa aparecer para representá-lo. Pela lei, deus é permanentemente como se fosse um menor de idade, quer dizer, uma pessoa não-adulta. Então, o mesmo proprietário que doava terras a deus se tomava seu servo e seu representante para administrá-Ias. Havia vários mecanismos desse tipo como forma de escamotear, de encobrir uma posse ilegal da terra para fugir da legislação que impunha a reforma agrária. Dessa forma, foram passadas novas leis para impedir essa possibilidade, ou, para combater essa forma de posse de terra escamoteada.
E, por exemplo, os acertos estabelecidos entre os camponeses e os proprietários, que trabalhavam em parceria, eram sempre orais e nunca por escrito. Então, o proprietário poderia sempre afirmar que a pessoa que trabalhava na sua terra não era um camponês, mas, um assalariado ao qual pagava pelo trabalho.
Uma das primeiras iniciativas do nosso governo foi a de fazer um censo do campesinato para saber quem eram efetivamente os camponeses de Bengala Ocidental para que não houvesse esse tipo de ação unilateral por parte dos proprietários de terra. Esse foi um dos arranjos que implementamos, com o qual não conseguimos eliminar por completo os grandes proprietários de terra; o que fizemos foi estabelecer um teto sobre as propriedades que poderiam deter, e, operar a reforma agrária dentro disso. Mesmo com essa política, que ainda é limitada, e tão diferente do que a que é adotada nos outros estados, toma-se muito difícil de ser sustentada politicamente dentro de Bengala Ocidental.
A inflação voltou a subir na Índia e é significativa para os nossos termos e tende a crescer já que existe um déficit público crescente, do ponto de vista do orçamento
Houve um pagamento simbólico, não efetivo, porque a Constituição indiana exigia compensação financeira para as terras ocupadas, mas, não dizia quanto. Então, demos uma compensação absolutamente simbólica para os proprietários.
A situação da índia
Recentemente foi eleito um governo de extrema-direita e semifascista, mas, felizmente, para nós, esse governo não tem maioria no Parlamento. Eles sempre dependem de 22 aliados para poder aprovar as suas políticas. E não há muito em comum entre a política do BJP (Bharatiya Janata, ou Partido do Povo Indiano, o partido semifascista que assumiu o poder) e esses 22 aliados que precisam articular para aprovar as suas políticas no Parlamento. Esses aliados só entraram em coalizão de governo porque queriam estar no poder. Mas quando se trata do debate da aprovação de políticas específicas, há muita contradição e muita briga entre eles.
Mas, nesse meio tempo, o que eles estão tentando fazer é penetrar em toda a estrutura administrativa do estado. Já estão se infiltrando no Exército e conseguiram trazer um número importante de generais para o partido deles. Conseguiram, também, atrair para o BJP quadros de direção central da polícia que, a princípio, já tem tendências autoritárias. Então, à medida que identificam isso politicamente no BJP aderem a esse partido, mesmo em Bengala Ocidental.
Por exemplo, o diretor-geral da polícia, que sempre trabalhou próximo de nós no decorrer do nosso governo, no dia em que se aposentou filiou-se ao BJP, o partido semifascista. Isso ocorre também com os altos escalões burocráticos, com os altos escalões do poder Judiciário, e com a mídia. Hoje, eles já conseguiram obter o apoio da maior parte da mídia na Índia. E vão usar isso como base para eleições futuras para voltar ao poder como partido majoritário.
Outra coisa que eles fizeram – e que vocês certamente assistiram pela TV ou leram nos jornais foi o fato de terem ido adiante com os testes da bomba nuclear. É claro que a experiência com bombas nucleares não fazia parte da agenda nacional. Os aliados do BJP no governo não estavam sequer informados de que esses testes iriam continuar. Mas a idéia toda foi tentar conseguir apoio entre as massas populares, por intermédio de uma mobilização chauvinista. No início, tiveram sucesso nessa mobilização, porque criou-se um clima de euforia favorável ao governo e à decisão dele de fazer os testes com a bomba nuclear. Mas, essa euforia se dissipou a partir do momento que o Paquistão também foi adiante com as suas experiências.
Durante um ano e meio, antes da eleição desse governo do Partido chauvinista semifascista, havia um governo de frente única que tinha o apoio do nosso partido, embora não estivéssemos participando diretamente do governo. E esse governo estabeleceu relações amigáveis com todos os países vizinhos incluindo Paquistão e Bangladesh.
Houve negociações e conversações sérias para a montagem de um mercado comum do Sudeste asiático nos moldes do que foi inicialmente o mercado comum europeu e o N afta. Agora, todos esses projetos de integração desapareceram.
Antigamente o governo do BIP (Bharatiya lanata) dizia que para enfrentar as sanções adotaria uma política econômica nacionalista. Hoje, o que ele está fazendo é uma política de abertura para entrada de empresas multinacionais no interior da Índia. Estão oferecendo uma gama enorme de concessões para a atração das empresas multinacionais abrindo a área de seguros, de transportes e várias outras áreas-chave usadas para a entrada do capital estrangeiro. A esperança do governo é que com essas concessões esse setor privado das multinacionais dos países ocidentais se voltaria contra a política de sanções adotada pelos seus governos. Porém, a situação é muito fluida, e o governo atual poderá ou não sobreviver a este ano de 1998.
Com isso, nós temos um problema. O Congresso Nacional de nosso partido está marcado para outubro de 1998; estava agendado anteriormente para fevereiro, mas não pôde ser realizado por causa das últimas eleições. Criou-se uma situação política completamente nova com a eleição do BJP. Tivemos, portanto, de reescrever a nossa resolução política para o Congresso e o convocamos para outubro. Todavia, não estamos seguros de que o governo do BJP sobreviva até lá. E aí haverá nova eleição. Esse é um problema sério que vai emergindo inclusive do ponto de vista da burguesia porque não há um sistema partidário estável na Índia.
Se excluirmos desse retrato os partidos de esquerda, entre os demais partidos há uma flutuação constante de deputados que mudam de partido minuto a minuto; indo de um para outro. Alguns partidos se desintegram, uns se fracionam, e outros se fundem. Esse é um processo constante. Um indivíduo se filia a um partido A pela manhã e depois a um partido B à tarde, e a um partido C à noite. É a política de mercado, como se tudo fosse um grande negócio. Portanto, nesse quadro, bastante fluido, é difícil saber com certeza para onde marcha a situação da Índia.
Estamos tentando construir uma alternativa de esquerda para a crise da Índia. Nos últimos quatro ou cinco anos nossas tentativas de gestar essa alternativa não têm tido muito sucesso. Por exemplo, o governo da frente única que apoiamos de 1996 até as eleições no início deste ano, tinha também o apoio – e se mantinha com ele – do Partido do Congresso, com o qual não temos nenhuma identidade. Então, isso revelava a fragilidade daquele governo ao qual bastaria que o Partido do Congresso retirasse o seu apoio para ser derrubado. Queremos erguer e viabilizar uma alternativa de esquerda na Índia que seja separada do Partido do Congresso e que seja francamente contrária e adversária à política semifascista do BJP”.
* O presente texto constitui parte da exposição de Biplab Dasgupta em São Paulo, em julho de 1998.
EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63