O velho conflito entre a modernidade e o atraso
A história da política econômica no Brasil é a crônica do conflito permanente entre dois caminhos opostos para o país – um deles é a via da autonomia e independência nacional; o outro, que tem sido triunfante, é o caminho da integração subordinada ao mercado mundial.
Hoje, quando a exigência de mudanças profundas se recoloca principalmente em eleições presidenciais, esse conflito está presente de maneira aguda. Na eleição deste ano, Fernando Henrique Cardoso continua no caminho aberto por Fernando Collor, de atualizar a velha opção pelo atraso e pela dependência. Do outro lado, Lula e a União do Povo – Muda Brasil são herdeiros das tradições avançadas que, desde a Independência, defendem um projeto de desenvolvimento baseado no trabalho dos brasileiros e voltado ao atendimento de seus interesses e necessidades.
Os apologistas neoliberais dão-se a si próprios o título de modernos, e encaram o respeito aos interesses do país e do povo como marcas do arcaísmo. É uma "modernidade" de propaganda. Se o neoliberalismo tivesse as virtudes que dizem, o Brasil teria vencido o atraso há muito tempo, pois idéias dessa espécie são aplicadas, com poucas exceções, desde a Independência. O conhecimento da história depõe contra os neoliberais e revela a cuidadosa construção do atraso através das opções econômicas danosas ao país e ao povo brasileiro que adotaram ao longo do tempo. Como em 1898, há cem anos portanto, quando Campos Sales acertou o funding loan com os banqueiros ingleses, em que a dívida externa do país foi renegociada tendo por garantia as receitas dos portos brasileiros, da Estrada de Ferro Central do Brasil e do serviço de abastecimento de água do Rio de Janeiro. O historiador José Maria Bello mostra as condições impostas na época pelos credores, semelhantes às do atual receituário neoliberal, do FMI e demais agências internacionais:
"Frio, cético, homem de negócios, darwinista de instinto e de educação", diz ele, "Joaquim Murtinho era o mais coerente consigo mesmo dos ministros da Fazenda que tivera a República".
Em 1898, como garantia do funding loan, Campos Sales penhorou as alfândegas, a Central do Brasil e o serviço de água do Rio de Janeiro
Ele fazia o diagnóstico da vida brasileira "e indicava também a terapêutica a ser aplicada. Mas, habituado, como médico homeopata, a tratar dos sintomas, trazia para a direção das finanças brasileiras a mesma técnica. Residia no equilíbrio do Tesouro o problema essencial do Brasil. Para resolvê-lo, eram medidas indispensáveis: a deflação, a implacável compressão das despesas, o aumento dos impostos, o abandono das obras públicas, o melancólico retorno aos campos, o afastamento do Estado de qualquer atividade industrial, que somente poderia frutificar pela livre iniciativa do indivíduo. Na sua rígida compreensão da economia liberal, Murtinho desassociava a questão financeira da questão econômica; desde que o governo conseguisse sanear a moeda, elevando as taxas cambiais e equilibrando os orçamentos, a reconstituição das forças econômicas se operaria automaticamente, livre da perigosa interferência oficial".
Pois é, qualquer semelhança com o que vivemos hoje não é mera coincidência! O presidente Campos Sales e seu ministro Joaquim Murtinho sinalizaram o retorno, depois de uma década republicana de lutas democráticas e nacionalistas, da hegemonia liberal que vinha do Império e se manteria, com altos e baixos, através da República.
Os esforços do setor agroexportador (isto é, o latifúndio, o grande capital mercantil e o imperialismo) contra o progresso do país não eram novos. Mais de um século antes, na década de 1770, comerciantes do Rio de Janeiro queixavam-se ao vice-rei do Brasil, Marquês de Lavradio, contra a fabricação de tecidos em Minas Gerais, que estaria prejudicando as importações. Queixas como estas podem estar na origem da decisão que levou a rainha Maria I a proibir, em 1785, a existência de manufaturas na Colônia.
União do Povo*
Qual a principal crítica que o senhor faz ao governo de Fernando Henrique Cardoso?
Lula: O governo FHC não cumpriu 20% do que prometeu em seu compromisso durante a campanha eleitoral de 1994. Basta olhar nas ruas e verificar os indicadores sociais para ver que o fato é realmente verdadeiro. O desemprego é alarmante; a seca, apesar de pré-anunciada, vem vitimando milhões de nordestinos; a violência não poupa mais ninguém, a falta de educação impossibilita milhões de desempregados a entrar novamente no mercado de trabalho entre outros problemas.
Quem mudou? Fernando Henrique, que já teve forte ligação com os setores progressistas e democráticos, seus atuais aliados da direita, ou seus antigos companheiros do campo progressista?
Lula: FHC traiu seus princípios de homem de esquerda que foi. E o mais decepcionante é que muitos dos que tiveram esta mesma visão aderiram descaradamente às benesses do poder. Infelizmente, para este pessoal, a noção de solidariedade foi substituída pela do mercado.
Qual será a marca do governo da frente União do Povo – Muda Brasil?
Lula: As grandes marcas do governo da União do Povo – Muda Brasil serão a solução das questões sociais no Brasil. Queremos realizar uma verdadeira reforma agrária; possibilitar o acesso à educação a todas as crianças do Brasil; colocar a soberania nacional em primeiro lugar ao invés de entregar tudo de bandeja ao capital internacional, como vem ocorrendo com a Telebrás, permitir acesso ao sistema de saúde pública de qualidade; organizar uma política industrial que possibilite a criação de mais emprego; garantir financiamentos e escoamento para os produtores de pequenas. propriedades rurais e para os pequenos e médios empresários.
A transição entre o atual modelo, neoliberal, e outro, mais avançado e preocupado com o bem-estar do povo e do país, pode ser complexa. Quais as primeiras medidas de seu governo, e como enfrentará o problema da transição entre estes dois modelos?
Lula: Nossa proposta para que este novo modelo de sociedade ganhe espaço no Brasil é o que venho chamando de um novo contrato social, que se fundamentará numa nova hegemonia democrática, capaz de, efetivamente, construir a nação brasileira para todos.
Dizem que a frente vai abandonar o Real e trazer de volta a instabilidade monetária. Em sua opinião, a atual moeda é realmente estável?
Lula: Em minha Carta-compromisso que lancei para a nação deixo claro que defendo a estabilidade monetária, mas também a estabilidade econômica e social.
Como o novo governo vai garantir a estabilidade da moeda?
Lula: A estabilidade será garantida sem o desemprego e a insegurança social O governo FHC trouxe várias distorções que ameaçam o país, como o aumento da dívida externa que atingirá este ano US$ 220 bilhões, a dívida interna mobiliária ultrapassará US$ 300 bilhões, o que equivale a quase metade da riqueza produzida pelo país esse ano, o crescimento da economia tem sido medíocre e em 1998 ficará abaixo de 2%, entre outras ameaças.
Como serão as relações entre seu governo e o movimento social?
Lula: Minhas relações serão de muito diálogo e participação. Quero que os companheiros sindicalistas participem ativamente dos órgãos que serão abertos para a sociedade opinar e decidir sobre rumos do país.
A reforma agrária é uma exigência de toda a sociedade brasileira. Ela será feita em seu governo? Como será implementada?
Lula: A reforma agrária será feita como assentamento de 1 milhão de famílias, estímulo à elevação da produção e da produtividade de 4 milhões de propriedades familiares, com crédito favorecido, garantia de preços, seguro e apoio tecnológico; programas de irrigação para pequenas e médias propriedades; combate à violência no campo e fim da impunidade; estímulo à criação de cooperativas e l00 mil pequenas e médias agroindústrias; e demarcação imediata das terras indígenas, com solução negociada dos conflitos pendentes.
Outro problema é a retomada do desenvolvimento: a criação de empregos, a retomada do crescimento industrial, o incentivo à produção de alimentos etc. Como o senhor pensa enfrentar estes desafios?
Lula: Com relação à retomada do desenvolvimento vamos defender, entre outras coisas, fortalecer a autonomia nacional, defendendo a produção e o emprego; fazer da educação prioridade nacional; assegurar uma saúde digna; defender e renovar a produção industrial; apoiar a criação e o desenvolvimento de micros e pequena empresa; ampliar a competitividade e incrementar a pesquisa científica e tecnológica; dirigir a política de crédito das agências públicas como o BNDES e o Banco do Brasil para o fortalecimento da economia e do desenvolvimento social, promover a formação de bancos do povo, desenvolver programas de habitação popular,saneamento e desenvolvimento social; e aumentar a participação dos salários na renda nacional, por meio da elevação dos salários mais baixos.
De onde vão sair os recursos necessários a essa retomada?
Lula: Os recursos necessários sairão das várias fontes de financiamentos do governo como o FAT, o BNDES, por exemplo. Além disso, vamos buscar a racionalização da máquina pública e dos próprios recursos das áreas. Se o governo foi capaz de salvar os banqueiros, através do Proer, no meu governo vou criar recursos para o social.
E o papel do Brasil no mundo, como será? Quais os aliados preferenciais do Brasil, na sua opinião?
Lula: No meu governo a política externa será fundada nos princípios da autodeterminação, com a convivência pacífica com todos os povos. Lutaremos por mudanças profundas nos organismos políticos e econômicos mundiais, fortaleceremos nossas relações com os países do Sul, em especial com os da América Latina, da África meridional e os de expressão portuguesa. Defenderemos uma ampliação e reforma do Mercosul que reforce sua capacidade de implementar políticas ativas comuns de desenvolvimento e de solução dos graves problemas sociais da região.
É possível construir um Brasil para os brasileiros?
Lula: Sim, neste final de milênio, chegou a hora de rompermos com a tradição de poder das elites brasileiras. Elas fracassaram na tarefa de fazer deste grande país uma grande nação. Chegou a hora de colocar o poder a serviço da dignidade de todos os brasileiros, com iguais direitos e deveres. Vamos fazer crescer esse movimento que vai abrir uma nova página na vida desse nosso povo solidário e mágico, trabalhador e místico, responsável e alegre, valente e generoso.
* Entrevista com Luís Inácio Lula da Silva. O visconde de Cairu, no começo do século seguinte, destacou-se como campeão dos interesses mercantis, principalmente ingleses. Ele introduziu, em 1811, a distinção entre indústria natural (que usa matérias primas, equipamentos e tecnologias já existentes no país) e contranatural (que se desenvolvesse protegida por tarifas alfandegárias), distinção que teria longa carreira como argumento contra a indústria nacional. Para ele, a proteção à indústria levaria à diminuição das importações, prejudicando o capital mercantil e os latifundiários, pois as exportações poderiam também diminuir.
Cairu era ligado aos setores dominantes, que prosperavam com o colonialismo, o tráfico de escravos e o papel atribuído ao Brasil na divisão internacional do trabalho, o de fornecedor de produtos agrícolas para o comércio europeu e de consumidor de manufaturados, principalmente da Inglaterra.
Campos Sales, em 1899: exportar tudo quanto produzimos em melhores condições que outros povos, e importar o que eles produzem em melhores condições do que nós
Contra essas idéias, José Bonifácio, que foi o primeiro chefe de governo brasileiro, queria construir um novo país, autônomo e capaz de defender seus interesses. Ele preconizava o fim da escravidão, a distribuição de terras a ex-escravos, imigrantes, índios e lavradores pobres; o fomento da agricultura de alimentos e matérias primas para o consumo nacional; a proteção às fábricas nacionais, a construção de estradas para interligar o país; investimentos para elevar o nível de educação do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, combatia o predomínio das finanças sobre o governo ("Infeliz o governo cuja administração econômica é seduzida, e dominada pelas finanças: três vezes infeliz aquele onde se diz a alta finança", escreveu).
Mas suas idéias não prevaleceram. Os colonialistas venceram. Os latifundiários e o grande capital mercantil juntaram-se aos ingleses, formando o bloco agroexportador, cujos interesses foram expressos pelos tratados comerciais de 1810. Logo após a Independência, José Bonifácio foi afastado do governo, abrindo caminho para a manutenção da arcaica estrutura social do colonialismo, baseada no latifúndio, na escravidão e no comércio externo. Começava afirmar-se a idéia da vocação agrícola do Brasil. Nesse sentido, já em 1825, Bernardo Pereira de Vasconcelos criticava os que queriam o desenvolvimento industrial. Aqueles tratados comerciais só foram substituídos por uma política alfandegária favorável aos interesses fiscais e à indústria em 1844, pela tarifa do ministro Alves Branco, que a justificou dizendo que a "indústria fabril interna de qualquer povo é o primeiro, mais seguro e abundante mercado de sua lavoura; a lavoura interna de qualquer povo é o primeiro, mais seguro e abundante mercado de sua indústria." Ela permitiu o primeiro surto de industrialização do país; Mauá, já um grande empresário, construiu o estaleiro de Porto de Areia, cuja história é emblemática de contradições ainda hoje não resolvidas.
Ao contrário dos liberais, José Bonifácio queria um programa para a autonomia e desenvolvimento do país, baseado na indústria e na distribuição de terras
A reação liberal não demorou, e o protecionismo foi abandonado com as reformas alfandegárias de 1857 e 1860, que eliminaram as taxas para a importação de produtos manufaturados. A indústria nascente foi severamente prejudicada. O estaleiro de Ponta de Areia foi destruído, impotente para enfrentar a importação de navios livres de direito, como Mauá registrou em sua Exposição aos credores, de 1878. “A concorrência com os produtos similares do exterior tomou-se impossível e o estabelecimento decaiu", escreveu.
O ataque à indústria e ao desenvolvimento autônomo precisava, como hoje, ser apresentado como expressão dos interesses do país, que não teria outra alternativa de desenvolvimento. Assim, o principal argumento que mascarava os interesses dominantes era a defesa do consumidor, que já aparecia em 1857, pela voz de José da Silva Paranhos, o futuro Visconde do Rio Branco. Em 1883, comerciantes de Porto Alegre diziam que a proteção à indústria nacional obriga o “consumidor a pagar caro o que podiam comprar barato”.
Mas o próprio crescimento da economia induzia ao aparecimento das indústrias que o setor agroexportador queria evitar. O sucesso da produção cafeeira impulsionou as cidades, onde surgia uma população desligada dos interesses oligárquicos. Não foi sem razão que os últimos gabinetes "do Império esboçaram uma política, tímida, de amparo às fábricas nacionais, fortalecida nos dois primeiros governos republicanos, que foram claramente protecionistas. A lei do Similar Nacional, de 1890, dificultava a importação de bens já produzidos no país, e indicava essa opção. Ela atravessou todo o período republicano e foi revogada por Fernando Collor de Mello.
A primeira década republicana foi marcada pelo conflito entre os dois modelos. O esforço inicial do novo regime de construir uma nação autônoma ameaçou os interesses colonialistas. O empenho de Rui Barbosa, ministro da Fazenda do Governo Provisório, era aumentar a riqueza do país para dar um fundamento sólido à democracia que a República prometia. Sem ser propriamente industrialista ou protecionista, diz a historiadora Nícia Vilela Luz, ele "reconhecia a necessidade de desenvolver a indústria nacional, vendo nesse desenvolvimento uma questão política – a consolidação do novo regime".
Rui Barbosa foi autor de uma reforma bancária – o primeiro pacote da República – para democratizar o crédito, apoiar a produção e, principalmente, fomentar as indústrias. Um aspecto notável desse pacote é sua reforma monetária, que previa a emissão da moeda garantida por títulos do Tesouro, ancorada portanto na produção nacional e no crescimento da riqueza do país. Anos depois Rui Barbosa escreveria, em defesa dessa política, "que as finanças do Tesouro dependem radicalmente da atividade produtora das forças nacionais, e que não podem ter desenvolvimento sem instituições que impulsionem o trabalho, ministrando-lhe os instrumentos da expansão".
Para os metalistas, ligados ao comércio externo e ao latifúndio, Rui Barbosa cometia uma heresia contra a teoria clássica da moeda, cuja âncora só podia ser o câmbio. A emissão da moeda – esse era o dogma – deveria estar lastreada em ouro, obtido no comércio externo, e nunca em papéis garantidos pelo governo. Hoje, quando o dólar substitui o ouro como lastro para o real, os neoliberais continuam presos a esse velho dogma, apresentado como novidade.
Estas alternativas (a metalista e a papelista, como ficaram conhecidas) estão ligadas às opções programáticas pela defesa da autonomia ou da manutenção da dependência. A emissão garantida pelo governo induz, por sua própria natureza, ao desenvolvimento da riqueza do país pois, no mercado interno, as transações são pagas em moeda nacional e não em divisas, sejam elas ouro, como no passado, ou dólar, como hoje. Desvinculado das imposições do comércio externo, o crédito pode ficar mais fácil e acessível, e as divisas obtidas pelo comércio externo são necessárias apenas para pagar as importações de bens e serviços.
Os partidários da dependência, ao contrário, precisam de resultados favoráveis no setor externo, através de superávits na balança de pagamentos ou da entrada de capitais estrangeiros, mesmo especulativos (hoje expressos no enorme volume de divisas da reserva externa exibida pelo governo de FHC) pois sua prioridade não é o desenvolvimento do país mas obter recursos para atender aos compromissos externos. Eles constituem o alto preço da dependência pois só podem ser pagos com dólares obtidos nas relações comerciais e financeiras com os demais países, e nunca em moeda nacional, por mais que a propaganda do governo diga que o real é uma moeda forte.
Apesar da oposição ferrenha enfrentada por Rui Barbosa, a política de desenvolvimento continuou até o governo de Floriano Peixoto, sendo abandonada por seu sucessor, o líder oligárquico paulista Prudente de Moraes, que iniciou a mudança consolidada depois por Campos Sales e o ministro Joaquim Murtinho, de apoio à agricultura e ao comércio externo e desencorajamento da indústria.
Já no século passado os liberais e os propagandistas do grande capital comercial diziam defender o consumidor, que estaria sendo explorado por indústrias protegidas pelo Estado, e cujos produtos eram caros e de má qualidade
Tratava-se da aplicação dos "sãos princípios econômicos" que Campos Sales invocou em 1899: "tratar de exportar tudo quanto pudermos produzir em melhores condições que os outros povos, e procurar importar o que eles possam produzir em melhores condições do que nós".
Apesar dessa opção pelo atraso ter dirigido a economia brasileira durante toda a República Velha, as vicissitudes da política agrária criaram condições para o florescimento da indústria, favorecida pela política cambial de proteção do café: a taxa de câmbio que permitia a remuneração dos cafeicultores, desvalorizando o mil-réis, encarecia a importação de manufaturados, exercendo involuntariamente o papel de barreira alfandegária.
Além disso, ao desorganizar o comércio internacional, a Primeira Guerra Mundial funcionou como poderosa barreira protecionista, deixando o mercado interno para a indústria nacional. Mas foi preciso esperar pela revolução de 1930 e, principalmente, pelo Estado Novo de 1937, quando Getúlio Vargas rompeu com os princípios liberais, para que o velho modelo agroexportador fosse para segundo plano e as relações entre a indústria e o governo se tornassem cordiais. Vargas adotou medidas de forte impacto econômico e social, promovendo o intervencionismo estatal que estimularia, por exemplo, a criação da indústria siderúrgica. Com a Segunda Guerra Mundial, a produção nacional cresceu e diversificou-se, e a Companhia Siderúrgica Nacional foi um marco dessa nova era.
Com o fim da guerra, o debate sobre o papel do Estado no incentivo à industrialização foi retomado, destacando-se o industrialista Roberto Simonsen, que combatia as idéias retrógradas de Eugênio Gudin, defensor radical dos interesses agroexportadores.
Colhido no fogo cruzado da luta ideológica que opunha, de um lado, nacionalistas, comunistas e demais forças progressistas e, do outro, conservadores, liberais e livre-cambistas, Vargas oscilou entre os dois pólos no seu segundo período de governo, iniciado em 1951, que transcorreu em clima de crise e evoluiu para um desfecho dramático, o suicídio do presidente em 24 de agosto de 1954.
A equipe econômica do sucessor de Vargas, Café Filho, foi comandada pelo economista liberal Eugênio Gudin. Para o jornal The New York Times, era "the right man, in the right place, at the right time" ("o homem certo, no lugar certo, na hora certa"). Aquele era o governo dos aliados internos do imperialismo, claramente antiindustrialista, opção que Gudin nunca disfarçou. Suas idéias tinham também a forte marca racista das classes dominantes brasileiras. Edmundo Macedo Soares, um dos criadores da CSN, conta – no filme Memória do Aço, de Sílvio Tendler – que toda vez que se encontrava com Gudin, "ele dizia que meu grande erro foi ter feito uma indústria. O Brasil, segundo ele, não é país para ter indústria siderúrgica, mas sim para desenvolver a agricultura e a indústria têxtil. Siderúrgica é para povos brancos, dizia ele" (grifos meus, JCR).
Para The New York Times, Gudin no Ministério da Fazenda era “o homem certo, no lugar certo, no tempo certo”
Gudin repetia, contra a indústria, argumentos antigos (a defesa do consumidor por exemplo), ou chavões que ainda circulam, como a alegação, de 1959, de que ela "é a indústria do desleixo, da incapacidade e da improdutividade", que só existe pela proteção "contra a concorrência estrangeira por uma barreira aduaneira intransponível".
No governo, Gudin criou a malsinada Instrução 113, da SUMOC (o Banco Central de então), dando às empresas estrangeiras o direito de trazer equipamentos sem pagar taxas de importação, enquanto os industriais brasileiros eram obrigados a pagá-las, e à vista, para importar máquinas ou matérias primas.
Como, contudo, o impulso pela industrialização era inelutável, os conservadores viram no capital estrangeiro a salvação de seus interesses. Esse foi o espírito da Instrução 113. Fazia sentido para gente como Gudin: para eles, a industrialização com capital estrangeiro não significaria uma alteração profunda nas relações sociais do país, e ela poderia florescer sem ameaçar a arcaica estrutura social, além de ser uma opção de financiamento que – esperavam – não desviaria capitais da agricultura.
A instrução 113 foi assim o certificado de nascimento do modelo associado-dependente, fortemente impulsionado pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek e aprofundado pelos governos militares após 1964.
Eugênio Gudin é o “elo perdido” entre os neoliberais de nosso tempo e seus ancestrais do século passado
Eugênio Gudin é o elo perdido que liga os neoliberais de nosso tempo a seus ancestrais da República Velha e do Império: foi dele o sinal para o início da atual campanha antiestatista, com o discurso que pronunciou ao receber o título de "Homem de Visão" de 1974 da revista Visão, onde denunciou o crescimento das empresas estatais sob os governos militares.
Hoje, a opção entre os dois caminhos está recolocada, e os brasileiros têm a chance de expulsar do comando da República, na eleição presidencial, os homens que insistem em impor ao país o velho caminho do atraso e da dependência.
O governo de FHC insiste nestas teses experimentadas durante mais de um século, cujo resultado foi um país dependente e pobre, subordinado aos interesses do imperialismo e do grande capital nacional e estrangeiro. Fernando Henrique Cardoso manifesta a intenção, desde o começo de seu governo, de acabar com a "era Vargas", afirmação que significa a decisão de romper com o nacionalismo e a legislação social daquele modelo para impor, de forma completa e acabada, o caminho da dependência.
Contra ele, o novo caminho de desenvolvimento que o país precisa tem, entre seus antepassados, gente como José Bonifácio e Rui Barbosa. É aquele que pretende construir uma nação verdadeiramente moderna, voltada para o bem estar do povo e para a saúde da economia. É o caminho indicado pela candidatura de Luís Inácio Lula da Silva e a da frente União do Povo – Muda Brasil (veja entrevista de Lula nesta edição), uma via que prevê o enfrentamento decidido da crise social que o país vive, afastando os obstáculos estruturais, ancorados no passado colonial, que impedem o desenvolvimento do país.
Um novo governo, apoiado na mobilização do povo e nas forças progressistas, nacionalistas e democráticas do país, deve fortalecer a autonomia nacional; defender a produção e o emprego; fazer a reforma agrária; assegurar educação e saúde para todos; defender e renovar a produção industrial e agrícola, ampliando a oferta de bens de consumo popular e de alimentos, medida essencial para o combate à fome; apoiar as micros e pequenas empresas; ampliar a competitividade e incrementar a pesquisa científica e tecnológica; estimular as exportações, sobretudo de produtos industrializados, e restringir as importações predatórias; modificar o sistema financeiro, garantindo crédito a juros acessíveis; voltar a política de crédito de agências públicas de financiamento como o BNDES, o Banco do Nordeste do Brasil, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, para o fortalecimento da economia e o desenvolvimento social; criar Bancos do Povo; desenvolver programas de habitação popular, saneamento e transporte urbano; favorecer negociações transparentes com os trabalhadores; aumentar a participação dos salários na renda nacional – enfim, um programa para criar um Brasil novo e soberano, avançado e democrático.
A disputa político-eleitoral é uma forma pacífica, institucionalizada, da luta de classes, onde cada personagem traz um conjunto de idéias sobre o governo, as prioridades de investimento, as políticas que serão implementadas, etc, refletindo, com grau maior ou menor de consciência, o programa e os interesses da classe a que estão ligados.
Muitas vezes – e a propaganda conservadora contribui para isso – pensa-se que os programas dos candidatos, principalmente os que disputam os cargos de governadores ou presidentes da República, são meramente formais, demagógicos, pura propaganda para iludir o eleitorado e, depois da posse, serem esquecidos. É um engano. O conhecimento dos programas de cada candidato é fundamental. Não o conhecimento das superficiais declarações de intenção, instrumento de propaganda, mas das idéias que o candidato defendeu durante sua vida pública, ou que transparecem nas alianças feitas para chegar ao poder. Por isso, numa eleição presidencial como a deste ano, o povo precisa conhecer a qual destas duas linhas fundamentais, em luta desde a Independência, o candidato se filia – a linha da autonomia nacional e defesa dos interesses do povo brasileiro, ou a linha da capitulação às imposições do imperialismo e aos ditames do grande capital brasileiro e estrangeiro.
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