Sob o forte impacto do bloqueio militarizado à marcha reformista nacional-democrática-popular, evoluíram variantes historiográficas da formação social brasileira. De alguma maneira, no sentido de turvarem os traços fundantes do nosso desenvolvimento capitalista tardio e dependente. A apreensão das raízes históricas obscureceu-se para toda uma nova geração combatente do socialismo revolucionário. Antes, o Plano de Metas (governo Juscelino, 1956-61) desfechara a “fase pesada” da industrialização. A seguir, alastrou-se o assalariamento capitalista rural e emergiu um “novo” proletariado industrial – adiante em lutas na crise do “milagre” econômico da ditadura. Subjacente, rupturas profundas no movimento comunista internacional.

Caio Prado Jr., influente pesquisador da história e economia brasileiras, passou a principalizar no campo a luta por salários, organização sindical e legislação trabalhista, ao invés da reforma agrária (A revolução brasileira, publicada em 1966) (1). Um espetacular equívoco, mas eivado de coerência analítica: o capitalismo no Brasil, para Caio Prado, datava do período colonial. Em 1978, o conhecido historiador Jacob Gorender divulga O escravismo colonial. Defendendo uma “desobstrução metodológica”, Gorender propõe-se a "arrancar a teoria marxista do atoleiro dogmático em que o stalinismo a mergulhou". Com tal grandeza de objetivos, afirma ele que, no Brasil, o escravismo colonial "emergiu como um modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana" (2).

Tanto na formação histórica, quanto na trajetória do capitalismo brasileiro, sempre foi outra a trilha desbravada por Nelson Werneck Sodré, autor de mais de 50 trabalhos. Não só por tais razões – há síntese, reafirmação e novidade –, o novo livro de Sodré, publicado em 1990, é de leitura obrigatória à interpretação do país. Que apresenta em dois movimentos: a) A formação do capitalismo no Brasil; e b) Vargas e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

No que considero ser a polêmica principal, Sodré introduz notas fundamentais para a metodologia do estudo de Modos de Produção. Escoimando o dogmatismo, especialmente na análise da particularidade da situação brasileira – a “heterocronia” –, um enfoque que exclui o uso de paradigmas e se estabelece em obediência ao método, respeitadas as relações dialéticas entre o universal e o particular. (Os trechos grifados em itálico são transcrições literais de Sodré.) Visualizado na existência de etapas diferentes ao mesmo tempo na história, onde, ainda que apresentando hoje a uniformidade como tendência acentuada, expressaria outra particularidade nossa: a do desenvolvimento desigual.

Na seqüência, clarifica não ter havido aqui a evolução da comunidade primitiva (indígena) ao escravismo, feito à base da contribuição humana africana; há transplantação, marcada a existência colonial dos escravos senão por condições vigentes nas sociedades originárias – vinham, entravam no Brasil na condição de escravos. Desenrolando sua argumentação, evidencia não ser o escravismo brasileiro, de nenhuma maneira um novo modo de produção.

E indo ao centro do (nervoso) debate recorrente, reitera a existência pretérita de relações feudais. Em “A passagem”, aponta dois tipos de relações feudais entre nós: 1) as mais antigas, impostas pelos colonizadores portugueses, condicionadas pelo meio social e até do geográfico; 2) as posteriores, surgidas no colapso do escravismo, antes e depois do ano oficial da abolição, motivadores de deslocamentos de força de trabalho de uma área para outra da zona mineradora para a área cafeeira, nas ruínas da decadência aurífera, pela marcha dos cafezais para outra zona e pelo aparecimento do colono. Localiza concretamente as regiões ocorrentes em relações feudais, onde estas conviveram com o escravismo, as características: Não é possível negar que as relações de produção nas áreas secundárias coloniais eram feudais, afirma (ver especialmente as p. 13-15 e 62-67).

O trabalho de Sodré sobrevoa elegantemente o marxismo de Marx; invoca também o cenário descrito em Grande Sertão: Veredas… Percorre o processo brasileiro de dependência (pelo endividamento) desde 1822. Relembra as alianças das revoluções burguesas do capitalismo central. E desmascara o conceito de “populismo”, que aqui surgiu e começou a se vulgarizar… para estigmatizar a referida aliança (de Vargas com os trabalhadores urbanos), para vê-Ia como espúria manobra… realizando convincente enquadramento histórico-crítico de Getúlio, diz Sodré, entre outras coisas, que o grande malogro de sua extraordinária trajetória política foi não ter sido vitorioso na consolidação dessa aliança.
Sérgio Barroso

Notas:
(1) Ver p. 52-53 e 68, 1ª edição, Brasiliense. É notório que a “práxis” do Movimento dos Sem Terra refutou aquela conclusão de Caio Prado. Em Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1942, escreveu Caio; "Com tais elementos, articulados numa organização produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se manterá dominante através de três séculos" (p. 32, 16ª edição, 1979, Brasiliense). Mas observe ainda Caio Prado em 1966: "O fato é que com a substituição definitiva e integral do trabalho escravo pelo livre, acharam-se presentes no Brasil o conjunto de elementos estruturais componentes do capitalismo" (p. 148). Enorme avanço, para um capitalismo colonial de 300 anos. Ocorre que isso é que se pode chamar de marxismo “de superfície”, pois em 1888, estava longe, muito longe a constituição das bases técnicas que auto determinam o capital, ou mesmo da hegemonia do capital industrial (ver por exemplo O capitalismo tardio, de J. M. Cardoso de Mello). Ainda, J. Gorender, que se opôs à base analítica de Mello ou de Sodré, afirma justamente: "em 1907, cabiam à agricultura quatro quintos do valor líquido da produção física do país, ficando a indústria com o quinto restante. Ora, a agricultura brasileira não se tomou capitalista em seguida à extinção do trabalho escravo" (A burguesia brasileira, 1990, p. 24-25, Brasiliense).

(2) Ver p. 18-55, 1ª edição, Ática. Para fundamentar o volumoso O escravismo colonial, Gorender apresenta as Leis deste modo de produção. Infelizmente, as 5 leis e duas sub-leis arroladas não convencem nem aos orientados pelo raciocínio lógico-formal. Para uma crítica que reputo irrefutável às leis do escravismo colonial, ver, do próprio Sodré, o ensaio As desventuras da marxologia, Temas, São Paulo, 1979, Ciências Humanas.

EDIÇÃO 51, NOV/DEZ/JAN, 1998-1999, PÁGINAS 82