O debate pertence à pauta suscitada, ou ressuscitada, pela crise do socialismo. Envolve várias alas do pensamento marxista. E aflora intermitentemente no Partido Comunista do Brasil, desde o 8° Congresso até agora, no 150° aniversário do Manifesto do Partido Comunista. Questiona-se este trecho:

"À medida que a grande burguesia se desenvolve, desmorona base em que assentou sua produção e sua apropriação dos produtos. A burguesia produz antes de mais nada os seus próprios coveiros. Sua eliminação e o triunfo do proletariado são igualmente inevitáveis" (1).
Os que tomaremos a liberdade de chamar evitabilistas vêem aí um deslize dogmático do Manifesto. Sugerem que se ampute a excrescência do corpo teórico marxista.

Com a palavra Karl Marx

É de justiça começar dando a palavra a Karl Marx, não para invocar o santo nome do fundador da doutrina mas porque ele tem o que dizer a respeito, e disse. O trecho citado não é uma excrescência. O próprio Marx o explicita numa célebre carta a Weydemeyerk:

"No que toca a mim, não me cabe o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna nem a luta entre elas. Muito antes, alguns historiadores burgueses já haviam descrito o desenvolvimento histórico desta luta de classes, e alguns economistas burgueses a sua anatomia econômica. O que apresentei de novo foi demonstrar: l) que a existência das classes diz respeito apenas a determinadas fases históricas. Do desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz, necessariamente, à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura não é senão a passagem para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes" (2).
Engels tem a mesma convicção:

"Estamos agora aproximando-nos de uma fase de desenvolvimento da produção em que a existência das classes não só deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu em um obstáculo à própria produção. As classes vão desaparecer, de maneira tão inevitável como surgiram no passado. Com a desaparição das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado" (3).

A teoria da inevitabilidade

Mas é O capital que expõe uma verdadeira teoria da inevitabilidade do socialismo. Falando da Tendência histórica da acumulação capitalista, Marx examina como a acumulação primitiva resume-se à expropriação do produtor imediato, à dissolução da propriedade baseada no trabalho pessoal. E segue:

"Desde que este processo de transformação decompôs o suficiente a velha sociedade, de alto a baixo, desde que os produtores são transformados em proletários e suas condições de trabalho em capital, desde que por fim o regime capitalista se sustenta unicamente pela força econômica das coisas, então a socialização ulterior do trabalho, assim como a transformação progressiva da terra e dos demais meios de produção em instrumentos socialmente explorados, numa palavra, comuns, a expropriação ulterior dos proprietários privados reveste-se de uma nova forma. Agora trata-se de expropriar não mais o trabalhador independente e sim o capitalista, o chefe de um exército ou uma esquadra de assalariados.

Esta expropriação se realiza pelas leis imanentes da produção capitalista, que conduzem à concentração dos capitais. Correlatamente com essa centralização, com a expropriação de um grande número de capitalistas por um punhado deles, desenvolvem-se em escala sempre crescente a aplicação da ciência à técnica, a exploração conjunta e metódica da terra, a transformação da ferramenta em possantes instrumentos só empregáveis coletivamente, a economia dos meios de produção, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado universal, e com isso o caráter internacional do regime capitalista. À medida que diminui o número dos potentados do capital que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste período de evolução social, crescem a miséria, a opressão, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe operária cada vez maior, mais disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo da produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que cresceu e prosperou com ele e sob seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização de seus meios materiais alcançam um ponto onde eles já não podem caber em seu invólucro capitalista. Este invólucro se estilhaça. Soa a hora final da propriedade capitalista. Os expropriadores são por sua vez expropriados.

A apropriação capitalista, conforme o modo de produção capitalista, constitui a primeira negação desta propriedade privada, que não é senão o corolário do trabalho independente e individual. Mas a produção capitalista engendra sua própria negação com a mesma fatalidade das metamorfoses da natureza. É a negação da negação. Ela restabelece não a propriedade privada do trabalhador, mas sua propriedade individual, embasada nas aquisições da era capitalista, sobre a cooperação e a possessão comum de todos os meios de produção, inclusive a terra.

Para transformar a propriedade privada e parcelada, objeto do trabalho individual, em propriedade capitalista, foi necessário naturalmente mais tempo, esforços e sacrifícios, do que serão exigidos pela metamorfose em propriedade social de uma propriedade capitalista que, de fato, já repousa sobre um modo de produção coletivo. Antes, tratava-se da expropriação da massa por uns poucos usurpadores; agora, trata-se da expropriação de uns poucos usurpadores pela massa" (4).

E, para não haver dúvidas, Marx repete o trecho do Manifesto sobre o triunfo dos coveiros.

Esta passagem oferece mais de um exemplo de como a abstração teórica permite descobrir leis gerais e portanto tendências gerais do desenvolvimento social. Marx deduz, do capitalismo concorrencial do século XIX, sua conversão em capitalismo monopolista, que ele não chegou a viver. Não por acaso, Lênin, após passar em revista a metamorfose imperialista já consumada, torna à tecla em 1916:
"Estamos diante de uma socialização da produção e não de um simples 'entrelaçamento'; (…) as relações da economia e da propriedade privada constituem um invólucro que já não corresponde ao conteúdo; (…) este invólucro deve inevitavelmente se decompor, caso artifícios retardem sua supressão; (…) ele pode permanecer em estado de decomposição durante um período relativamente longo (no pior dos casos, caso a cura do abcesso oportunista se prolongue em demasia), mas (…) apesar de tudo, será inelutavelmente suprimido" (5).

Produção social e apropriação privada

Voltemos a O Capital: Marx deduz sua tese da contradição entre produção social e apropriação privada. A apropriação burguesa nega a apropriação que a precede, do artesão e do camponês que ainda reúnem em si a dupla condição de proprietários e trabalhadores. Mas ela traz em si sua própria negação, pois se apropria de uma produção cada vez mais social. Todo o desenvolvimento do capitalismo é também o desenvolvimento deste antagonismo.

Ora, a socialização da produção avança "correlatamente" com o as forças produtivas que a exigem. Uma e outra são irreversíveis. A hipótese da humanidade desaprender a produção coletiva é tão plausível quanto a da Europa desdescobrir a América. A solução do antagonismo só pode derivar do conteúdo socializado do processo produtivo. A superação do capitalismo não é aleatória. Deriva da natureza deste, de suas contradições internas, está contida nele.

Uma variante evitabilista busca uma saída honrosa diferenciando necessidade de inevitabilidade: socialismo seria necessário, não inevitável. A distinção não se sustenta: em filosofia, necessário significa exatamente indispensável, inevitável, obrigatório. Só num sentido coloquial a palavra quer dizer conveniente, útil, desejável. E a substituição apenas turva a questão essencial: o capitalismo está fadado a perecer, e ceder lugar a um sistema de apropriação social? Ou pode eternizar-se? Ou é possível uma alternativa não socialista que supere o sistema burguês?

Rosa Luxemburgo: "socialismo ou barbárie"? Posta a teoria, vejamos se ela resiste às críticas evitabilistas. A mais usual esgrime o dilema "socialismo ou barbárie", formulado por Rosa Luxemburgo no Panfleto de Junius (1916). Deduz dele que a degradação do capitalismo abriria não uma mas duas alternativas: ou os socialistas cumprem sua tarefa histórica, ou a humanidade vai para a barbárie.
Pobre Rosa, logo ela, inevitabilista já na polêmica de juventude com o evitabilista Eduard Bernstein! (6). Se ela resvala, neste particular, é ao contrário, por catastrofismo, por superestimar a esfera econômica em si e o fator espontâneo. Mas voltemos ao "socialismo ou barbárie": o que afirma o Panfleto de Junius?

"Friedrich Engels certa vez disse: 'A sociedade burguesa encontra-se na encruzilhada, ou da transição para o socialismo ou do regresso à barbárie'. O que significa 'regresso à barbárie' para nossa sublime civilização européia? Até hoje, todos nós provavelmente repetimos estas palavras impensadamente, sem suspeitarmos de sua assustadora seriedade. Neste momento, basta olhar à nossa volta para saber o que significa o regresso da sociedade à barbárie. O triunfo do imperialismo conduz ao aniquilamento da civilização. (…) Trata-se de um dilema da história mundial, ou uma coisa ou outra; a escolha depende da decisão do proletariado com consciência de classe" (7).

Rosa, como Engels, fala em barbárie não como uma hipotética formação social alternativa ao capitalismo e ao socialismo. Denuncia, sim, a guerra, as destruições e atrocidades burguesas, a barbárie capitalista – forma do sistema burguês ao apodrecer.

O argumento do cataclismo

O argumento do cataclismo é pueril, mas fascina, por aparentemente liquidar a discussão: como o socialismo será inevitável, se a bomba atômica pode varrer toda vida da face da Terra?
Eis um típico sofisma. Sim, a humanidade e toda a vida terrestre podem desaparecer, em uma guerra nuclear, um desastre cósmico ou outro fenômeno natural. Sem sociedade humana, deixam de viger as leis de seu desenvolvimento, a determinação da consciência social pelo ser social, a luta de classes, e as leis próprias do capitalismo, a contradição produção social-apropriação privada e sua inevitável superação. Não havendo vida, cessa igualmente a vigência das leis da biologia. E daí? Não seria o caso de internar num manicômio o biólogo que contestasse por isso a lei da evolução das espécies?

Como lembra Lênin, "o desenvolvimento de todas as sociedades humanas ao longo dos milênios, em todos os países, sem exceção, revela uma sujeição geral a leis, uma regularidade e conseqüência" (8). Isto significa que, na contenda filosófica entre deterministas e indeterministas, o marxismo alinha-se inequivocamente com os primeiros, para horror dos evitabilistas, que flertam com o indeterminismo. Por isto o socialismo marxista proclama-se científico. Só no campo do determinismo as ciências sociais merecem o nome de ciências, e não meras coleções de eventos aleatórios, caóticos e imprevisíveis.

Por que mobilizar-se pelo que é inevitável?

Há quem acuse o inevitabilismo de desmobilizador. Afinal, se é certo que o socialismo virá, por que lutar por ele?
A objeção merece primeiro um reparo metodológico. Em ciência, é inadmissível desqualificar uma premissa em nome de seus efeitos indesejáveis. Esse método poderia levar alguém, por exemplo, a negar o papel da violência na história por aversão a matanças e carnificinas. É o que fazem os pacifistas – e têm razão… caso se tome os valores morais e éticos como abstrações a-históricas. Porém a violência nem por isso acaba. E, ao existir, inverte o quadro, tornando justificável, louvável e até obrigatório o seu uso para tomar as Bastilhas e Palácios de Inverno da história.
Quanto ao mérito do argumento, deixemos a palavra ao filósofo G. Plekhanov – para Lênin "o melhor que existe em toda a literatura do marxismo mundial":

"Uma concepção materialista da vontade se concilia perfeitamente na prática com a atividade mais intensa. Lanson faz notar que 'todas as doutrinas que mais exigiram da vontade humana puseram como princípio a impotência da vontade; tiraram o livre arbítrio e entregaram o mundo à fatalidade'. Lanson faz mal em acreditar que toda a negação do que chama liberdade da vontade conduz ao fatalismo. Mas este erro não o impediu de salientar um fato histórico da mais alta importância: a história mostra com efeito que o próprio fatalismo não só não é sempre um obstáculo à atividade prática, mas, pelo contrário, revelou-se em certas épocas a base psicológica indispensável de uma atividade intensa. Basta citar o exemplo dos puritanos, que ultrapassaram de longe em energia os outros partidos da Inglaterra do século XVII, ou os discípulos de Maomé (…). Engana-se quem imagina que basta estarmos convencidos da inevitável realização de algo para nos privarmos de toda a possibilidade psicológica de contribuir para isso ou de nos opormos. A minha atividade própria constitui um elo necessário na cadeia dos acontecimentos necessários? Eis a questão crucial. Se responder afirmativamente, só experimentarei menos hesitação e agirei com mais decisão" (9).

A fragilidade do argumento fica mais clara no exame de outras inevitabilidades, como a da luta de classes, que nossos inevitabilistas admitem. Imaginemos, para efeito de raciocínio, o seguinte discurso em uma assembléia sindical:

– Companheiros! É fato que nosso salário é infame, a proposta patronal parece um tapa em nossa cara e uma greve seria mais do que justa. Mas… eu sou marxista! Estou convencido de que a luta de classes é inevitável! E a noção dessa inevitabilidade me traz uma não menos inevitável desmobilização… Se a luta de classes não depende de mim, que continue assim. Sinto, mas não contem comigo.

O orador por certo iria acompanhar nosso biólogo no manicômio. Salta aos olhos que seu discurso é insensato: a certeza da inevitabilidade da luta de classes, longe de inibir, estimula os trabalhadores. Por que seria diferente com o socialismo?

O determinismo vulgar

A crítica ao evitabilismo indeterminista exige o combate simultâneo no flanco oposto, ao determinismo vulgar que impregnou boa parte da literatura marxista do século. Essa variante empobrecida se condensa em especial na "teoria da roda da história", que supostamente "não anda para trás". O retorno explícito da ex-URSS ao capitalismo desmoralizou essa "teoria", mas há exemplos anteriores de que em certas circunstâncias a "roda" pode, sim, retroceder. É o caso da Restauração feudal-absolutista na Europa após a derrota de Bonaparte (1815); só com a Revolução de 1848 a "roda" voltou a avançar.

O erro da "teoria da roda" reside em aplicar mecanicamente à trajetória concreta das formações históricas as leis gerais do materialismo histórico. Estas são uma imensa descoberta, mas na esfera da teoria, da filosofia da história. Sua ação nas formações históricas depende de cada realidade concreta, sua trajetória, suas incontáveis relações internas e externas. Fugir do árduo labor de analisar concretamente a realidade histórica parece cômodo, mas leva ao erro. A "teoria da roda da história" é uma dessas quimeras simplificadoras, assim como sua coirmã, a "teoria dos cinco modos de produção".

Objetividade e subjetividade da revolução socialista

Aparentemente antípodas, determinismo vulgar e evitabilismo coincidem ao menos em um ponto: ignoram o nexo objetividade-subjetividade. Um exemplo do primeiro tipo é a afirmação de J. Stalin admitindo a possibilidade de se chegar ao socialismo ainda que o fator subjetivo falhe por completo, "assim como um navio, mesmo à deriva, termina por alcançar terra firme". Já o evitabilismo concebe a hipótese da nave social vagar eternamente sem achar quem o pilote.

O equívoco partilhado reside em desconhecer que todo processo social objetivo gera sua subjetividade – ainda que reflexa, deformada, tardia. O desenvolvimento das forças produtivas, os mecanismos do mercado, a luta de classes, passam sempre pela consciência dos seus agentes. Com maior razão uma transformação revolucionária – quando suas premissas e suas forças motrizes objetivas amadurecem – engendra sempre sua consciência de si, seu arsenal de idéias, ideó1ogos, chefes, heróis, aperfeiçoa-os, troca-os, compulsivamente, até cumprir por tentativa e erro o desígnio que a objetividade lhe confiou.

"A humanidade – diz Marx – jamais se propõe senão às tarefas que pode realizar: melhor consideradas as coisas, ver-se-á sempre que a tarefa se apresenta ali onde as condições materiais de sua realização já estão dadas, ou em vias de se formar" (10).

Esta passagem é muito citada em um sentido, o do primado do ser sobre a consciência social, mas tem outro, simétrico: ali onde surgem as condições materiais, tão certo como a noite faz o dia elas gestam quem se proponha a tarefa. Assim, o socialismo não pode nem triunfar sem subjetividade, como na metáfora do navio à deriva, nem se inviabilizar por inexistência ou insuficiência do fator subjetivo, como aventam os evitabilistas.

O pudim subtraído

Assim se colocam as coisas na esfera da teoria marxista. Outra coisa é a sua comprovação empírica.
O pensamento materialista vê na prática o critério da verdade. O materialista inglês F. Bacon (1561-1626) resumiu esta idéia em uma frase incisiva e saborosa, citada por Engels: "A prova do pudim está em comê-lo" (11).

Ora, desde 1917 sentimos nos lábios o doce e macio gosto do pudim. A União Soviética era a prova palpável do futuro socialista. Seu poder mobilizador tinha, entre outros, um sentido comprobatório.
Mas a URSS caiu, passando, prova viva do socialismo, a prova de que este pode fracassar e de fato fracassou. É como se tirassem o pudim baconiano das nossas bocas.

Não por acaso, o evitabilismo emerge precisamente nesta fase, e coincide com a maré pós-modernista. Afortunadamente, nossos evitabilistas estão em política no pólo oposto ao pós-modernismo, ultra-subjetivista, relativista, fragmentador, cético quanto ao valor científico da teoria social até os limites do niilismo e do cinismo. E, no entanto, uns e outros compartem a mesma base indeterminista, a mesma desalentada negação de que o saber humano possa decifrar o enigma dos destinos da humanidade. É evidente a conexão desse desencanto com o colapso soviético e o envenenado ambiente ideológico deste fim de século de Restauração.

O proletariado do século XXI

Já antes de 1917, a fé dos socialistas na vitória se apoiava em outro pilar empiricamente verificável: o crescimento do proletariado. Hoje, também ele está em xeque, abalado pelas mutações da Terceira Revolução Industrial e por três décadas de estagnação do PIB mundial, que levam à redução da mão-de-obra ocupada na indústria, ao crescimento do desemprego e do subemprego.

Muitos marxistas retrucam, às estatísticas, que isso não elimina a centralidade do trabalho e portanto da classe operária. É apenas meia resposta, pois desloca o debate, do crescimento redução para a centralidade-marginalidade, deixando de fora a questão nodal. Afinal, desde o Manifesto o caráter multitudinário, crescente e tendencialmente majoritário dos "coveiros do capitalismo" tem papel-chave na fundamentação do socialismo. Mais que o colapso soviético (explicável por erros e revezes subjetivos), uma reversão da tendência à polarização burgueses-proletários, seria um golpe demolidor nos alicerces do marxismo.

Só se apara o golpe examinando as mutações concretas em curso no perfil de classe da sociedade. O tema excede as ambições deste artigo, mas vale deixar algumas indicações.
O que as evidências atestam é o declínio do que chamaríamos operariado fabril clássico. Este personagem, típico da Primeira e da Segunda Revoluções Industriais, já não o é na Terceira. Mas é um erro conceitual confundir o operariado fabril com o conjunto muito mais amplo do proletariado, que Engels definia como "a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, não possuindo seus próprios meios de produção, são constrangidos a vender sua força de trabalho para viverem" (12).

É preciso redefinir esta classe como ela é hoje, redesenhando as fronteiras que separam (ou separavam?): a) o trabalho produtivo do não-produtivo; b) o trabalho manual do intelectual; c) os chamados setores primário, secundário e terciário; d) as ocupações ligadas à base econômica e à superestrutura. Ao fim do estudo, certamente teremos uma grata surpresa – um "proletariado expandido", abrangendo, além do núcleo fabril, boa parte dos trabalhadores intelectuais, dos serviços, da economia informal, afora a legião "excluída".

Este proletariado do século XXI não possui – ainda – consciência de si. O deslocamento rápido e fluido de suas fronteiras, em tempos de crise, perplexidade e ofensiva ideológica adversa, dificulta a tomada de consciência. Mas vicissitudes na marcha do ser social à consciência social não são novidade: na velha Inglaterra, entre as primeiras fábricas, nos anos 1780, e os primeiros sindicatos, nos anos 1820, o recém-nascido proletariado viveu duas gerações de perguntas sem resposta, luddismo, seitas esotéricas, alcoolismo, impotência e desespero. Se fenômenos similares emergem hoje, quem sabe é a crise da sua adolescência.

Em busca do pudim perdido

Temos, assim, uma classe que já não é como era, e necessita reconhecer-se, em busca de um objetivo que precisa superar a finada experiência soviética. É um duplo desafio à subjetividade, que justifica em parte as inquietudes (mas nunca a conclusão) de nossos evitabilistas. Se o socialismo é inevitável, há que prová-lo, comer o pudim, fazer a nova sociedade.

Isto nos leva de volta da teoria geral da história para a história de carne e osso. Nesta, as leis teóricas atuam entremeadas e intermediadas por outras variáveis, próprias da concretude. Aqui, existe o espaço da casualidade e o da subjetividade. Aqui, os "coveiros do capitalismo" só vencem se souberem forjar seu arsenal subjetivo, sua consciência teórica, programática, estratégica e tática, suas organizações e chefes, sua moral, cultura e arte, suas polêmicas.

Em circunstâncias muito distintas, no pico da crise revolucionária pós-17, Lênin colocou esta questão ao criticar as tentativas de provar que a crise "não tinha saída":
"Isto é um erro. Situações absolutamente sem saída não existem. (…) Não se pode demonstrar que não há absolutamente nenhuma possibilidade de que ela [ a burguesia] adormeça a essa minoria de explorados com concessões, esmague aquele movimento ou sublevação de outra parte dos oprimidos e explorados. Tentar 'demonstrar' de antemão a falta 'absoluta' de saída seria um vão pedantismo ou um jogo de conceitos e palavras. O regime burguês atravessa uma enorme crise revolucionária. Agora falta 'demonstrar', com a prática dos partidos revolucionários, que estes têm suficiente grau de consciência, organização, ligação com as massas exploradas, decisão e habilidade para aproveitarem esta crise a fim de levarem a cabo com êxito a revolução" (13).

Sabemos hoje o quanto a demonstração é mais difícil e tortuosa do que se cria. Ao fim do século, o pudim marxista do socialismo inevitável é, como no Manifesto, uma teoria à espera da prova que só pode ser comê-lo. Ainda assim, temos os melhores motivos para retrucarmos à Santa Inquisição anti-socialista, com a mesma convicção de Galileu ao defender o que era uma mera teoria: "E, no entanto, a Terra se move!".

* Jornalista.

Notas
(1) MARX & ENGELS, Manifesto do Partido Comunista (1848), Anita Garibaldi, p. 43.
(2) MARX, K. Carta a Weydemeyer (05-03-1852).
(3) ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884).
(4) MARX, K. O Capital, (1867), Bibl. de La Pléiade, vol. l, p. 1.238-1.240.
(5) LÊNIN, V. I. “O imperialismo, última fase do capitalismo” (1916), em Obras escolhidas, Progresso, vol. 5, p. 498-499.
(6) LUXEMBURGO, R. Reforma ou revolução? (1898-1899), Global, p. 75.
(7) LUXEMBURGO, R. Panfleto de Junius, http://www.h-et.msu.edul -germanlgtext/kaiserreich/lux.html
(8) LÊNIN, V. I. Sobre o Estado, 1919, op. cit., vol. 10, p. 65.
(9) PLEKHANOV, G. “A propósito do papel do indivíduo na história” (1898), em Obras escolhidas, p. 316-317, Ed. Progresso.
(10) MARX, K. Introdução à Crítica da economia política (1859), op. cit., vol. 1, p. 273.
(11) ENGELS, F. Prefácio à edição inglesa (1892), em Do socialismo utópico ao socialismo científico, Global, p. 12.
(12) ENGELS, F. Nota para a edição inglesa do Manifesto do Partido Comunista (1888), Bibl. de la Pléiade, vol. 1, p. 1574.
(13) LÊNIN, V. I. Informe ao 2° Congresso da Internacional Comunista (1917-1920), em Discursos nos congressos da Internacional Comunista, Progresso, p. 39.

EDIÇÃO 51, NOV/DEZ/JAN, 1998-1999, PÁGINAS 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72