Recentemente o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que "era preciso encerrar a Era Vargas". O que ele quis dizer com isso? Muitos consideraram que se referia ao autoritarismo, ao estatismo e ao corporativismo, sobretudo sindical, que caracterizaram a vida nacional desde então, inclusive no período militar. Contudo, considerando a concepção do governo atual, isto se refere ao modelo de desenvolvimento, em sentido integral. Assim, é preciso refletir sobre o tema, e descobrir o que nele desagrada aos neoliberais, sobretudo com relação ao regime militar.

Sintomaticamente, só se analisa o período 1964-85 quanto ao que ele tem, obviamente, de mais obscuro: a repressão e a política interna. Quanto à política externa e à economia, estabelece-se uma transposição mecânica dos aspectos político-repressivos internos para estes planos, distorcendo a realidade e mostrando a ditadura como meramente “entreguista”. Contudo, minha pesquisa sobre a política externa do regime militar e sua relação com o desenvolvimento, a sair como livro este ano (e aqui apresentada resumidamente), aponta para a continuidade do projeto nacional desenvolvimentista durante este período, apesar de sua inflexão conservadora.

Este projeto, cujas origens ideológico-estratégicas remontam ao movimento tenentista dos anos 1920, foi impulsionado a partir dos anos 1930 com Getúlio Vargas e, com avanços e recuos, prosseguiu durante o período populista entre 1945 e 1964. Apesar do golpe de 1964 encerrar o ciclo nacional desenvolvimentista do populismo, o processo de desenvolvimento industrial prosseguiu sob outras formas. A redemocratização, por sua vez, também não apresentou uma ruptura significativa no modelo, o que só veio a ocorrer em 1990, com a adoção do projeto neo1iberal na “Era dos Fernandos”, este sim descomprometido com o desenvolvimento nacional.

A indicação de Costa e Silva representou uma resposta da burguesia nacional e da “linha dura” nacionalista, contrariando o grupo castelista

Nesta perspectiva, este artigo não se ocupará dos já conhecidos (mas nem sempre lembrados) atos de terrorismo de Estado, assassinatos, tortura, repressão, censura e contenção dos movimentos populares, mas exclusivamente da política exterior e do desenvolvimento. Isto porque a maioria dos militares, à sua maneira, considerava-se “nacionalista” e “desenvolvimentista”, especialmente alguns dos mais duros e repressivos (enquanto “liberais” como Golbery associavam-se mais aos interesses norte-americanos). Hoje, muitos deles se sentem “traídos” pelos tecnocratas, e se opõem firmemente às privatizações, bem como às ameaças à soberania territorial e político-jurídica nacional. Portanto, hoje faz-se necessário retomar a questão nacional, buscando-se novas alianças e fazendo uma análise objetiva do passado recente, sabendo “separar o joio do trigo”.

O regime de segurança nacional e sua consolidação (1964-69)

Com o golpe de 1964, os militares assenhoram-se do poder, marginalizando lideranças civis tradicionais, e passaram a governar apoiados em tecnocratas. Economistas liberais e pró- norte-americanos como Otávio Gouveia de Bu1hões e Roberto Campos (apelidado pelos nacionalistas de Bob Fields), foram colocados à testa dos Ministérios da Fazenda e Planejamento, respectivamente. Uma das primeiras medidas do novo governo foi revogar a lei de controle da remessa de lucros e aplicar um pacote de medidas econômico-financeiras para conter a inflação e o déficit orçamentário: compressão salarial e do crédito, corte nos gastos públicos, desvalorização cambial e redução da emissão monetária.

Paralelamente, os ministros da área econômica chegaram a um acordo com os Estados Unidos para o pagamento das empresas encampadas pelo governo Goulart, como a mineradora Hanna e a AMFORP (energia elétrica), além de promulgar uma lei dando garantias aos investimentos e empresas estrangeiras. Embora o FMI julgasse as medidas “gradualistas”, agências do governo norte-americano (USAID) e instituições sob seu controle (Aliança para o Progresso, Banco Interamericano de Desenvolvimento) socorreram imediatamente os militares brasileiros, liberando centenas de milhões de dólares, que estiveram bloqueados durante a presidência de Goulart. No início de 1965 também o FMI e o Banco Mundial passaram a liberar recursos, enquanto igualmente tinha início o afluxo de novos investimentos (em escala modesta). Assim, estabilizaram-se as finanças, embora num quadro recessivo bastante forte. Isto, aliado à desarticulação dos partidos, sindicatos e do movimento popular, recuperava a confiança da comunidade financeira internacional no Brasil.

Sob Médici, o mercado interno cresceu, mas a pobreza aumentou e os salários caíram

Costuma-se considerar a política econômica do primeiro governo militar como meramente conjuntural e saneadora. Contudo, o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), introduzia também certas reformas de médio e longo prazo, fundamentais para a construção de um capitalismo moderno no Brasil. A reforma tributária centralizava, tornava eficiente e aumentava a arrecadação; criava-se o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional, dotados de amplos poderes; introduziam-se as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN, títulos do governo corrigidos pela inflação) e a Correção Monetária também para as cadernetas de poupança; finalmente, o governo implantava o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o Banco Nacional da Habitação (BNH). O FGTS destinava-se a indenizar empregados demitidos, que a partir de agora perdiam a estabilidade que antes possuíam após dez anos de serviço, o que reestruturava completamente o mercado de trabalho. Os recursos do fundo eram investidos no BNH, fomentando o setor da construção civil. Teoricamente destinados à moradia popular, os recursos acabaram sendo empregados em habitações de classe média, infraestrutura para empresas e em projetos viários urbanos.

No campo diplomático, o governo Castelo Branco representou um verdadeiro recuo, abandonando o terceiro-mundismo, o multilateralismo e a dimensão mundial da Política Externa Independente, regredindo para uma aliança automática com os Estados Unidos e para uma diplomacia de âmbito hemisférico e bilateral. O que embasava tal política era a geopolítica típica da Guerra Fria, teorizada pela Escola Superior de Guerra, com seu discurso centrado nas fronteiras ideológicas e no perigo comunista. Em troca da subordinação à Washington e do abandono da diplomacia desenvolvimentista, o Brasil esperava receber apoio econômico. O Chanceler Juracy Magalhães chegou a afirmar que "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Como prova de lealdade ao "grande irmão do norte", o Brasil rompeu relações com Cuba em maio de 1964 e enviou tropas à República Dominicana em junho de 1965 sob bandeira da OEA, onde também apoiava os Estados Unidos na tentativa de constituir uma Força Interamericana de Defesa.

A ausência de reação séria ao golpe, a recessão econômica, a exclusão e subordinação dos golpistas civis produziram importantes divergências internas no primeiro governo militar, o que se refletiu na escolha do futuro presidente, o general Arthur da Costa e Silva, então ministro do Exército. O segmento da burguesia que dependia do mercado interno, ou que sofreu a concorrência das empresas transnacionais favorecidas pelo governo, manifestavam seu descontentamento através das entidades empresariais, como a Federação Nacional das Indústrias. A eles logo se juntaram os militares da linha-dura nacionalista. Castelo Branco era próximo do grupo da ESG (cujo grande ideólogo era o general Golbery do Couto e Silva), de linha “liberal e internacionalista”, isto é, adepto de uma intervenção política mais limitada e próximo dos Estados Unidos e do capital estrangeiro. Já a chamada “linha-dura”, se era favorável a métodos políticos mais violentos e a uma intervenção mais profunda na sociedade, por outro lado, apoiava o nacionalismo desenvolvimentista, como seus colegas e rivais de esquerda, que haviam sido expulsos das Forças Armadas. Assim, a indicação de Costa e Silva representou uma resposta da burguesia nacional e da linha-dura nacionalista, contrariando o grupo castelista.

Eleito pelo Congresso, Costa e Silva assumiu o poder em março de 1967, tendo como vice um civil da ARENA, Pedro Aleixo, prometendo retomar o desenvolvimento econômico e liberalizar o regime, o que permitiria uma maior participação da burguesia nacional. Contudo, o destino dessa espécie de populismo autoritário-paternalista seria outro. Os Estados Unidos pressionaram pela manutenção da antiga equipe econômica, produzindo-se o primeiro atrito e ameaças veladas. Aliás, em junho de 1966 ocorreu um atentado à bomba no aeroporto de Recife, onde o recém indicado Costa e Silva deveria desembarcar.

Hélio Beltrão e Delfim Neto foram nomeados Ministros do Planejamento e Fazenda, respectivamente, e atenuaram a política monetarista de seus antecessores, retomando o desenvolvimento econômico, que atingiu um crescimento de 9,3% do PIB em 1968. O Programa Estratégico de Desenvolvimento do governo estabeleceu o controle dos juros, atenuou o aperto financeiro e favoreceu o setor da indústria pesada e energia. Consolidou-se o papel do Estado na economia, que além de orientar e coordenar no plano macroeconômico, criava empresas estatais nos setores estratégicos, que não interessavam ao capital estrangeiro nem ao privado nacional. Curiosamente, o regime militar, que tinha como um dos seus objetivos reverter o estatismo inerente ao nacional-populismo, acabou lançando mão dos mesmos métodos.

As relações internacionais também representaram uma ruptura profunda em relação ao governo anterior, contrariando frontalmente Washington. A Diplomacia da Prosperidade do Chanceler Magalhães Pinto, enquanto política externa voltada à autonomia e ao desenvolvimento, assemelhava-se muito à PEI, embora sem fazer referência à reforma social. Ressaltava que a détente entre os Estados Unidos e a União Soviética, fazia emergir o antagonismo Norte-Sul, e em função disso definia-se como nação do Terceiro Mundo e propugnava uma aliança com este, visando a alterar as regras injustas do sistema internacional. Tal foi a tônica na II UNCTAD (Conferência da ONU para o Desenvolvimento), onde o discurso do representante brasileiro valeu-lhe sua indicação para o recém criado Grupo dos 77, bem como na recusa em assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP).

Na América Latina, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) passou a criticar a criação de uma Força Interamericana de Paz, propôs a integração regional horizontal e a cooperação nuclear, além de buscar relacionar-se com a Hispano-América através da CECLA (Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana) e não da OEA, dentro de um enfoque que se afastava do pan-americanismo e buscava o latino-americanismo. Tal política agravou as relações com os Estados Unidos, que passaram a criticar Costa e Silva e a estabelecer novas alianças e estratégias para recolocar o Brasil no caminho de 1964. A crise do governo e sua queda, foram motivadas tanto pelo acirramento da luta interna (no grupo dirigente e na sociedade), como por claras pressões externas. Médici e a diplomacia do interesse nacional (1960-74)

A Junta Militar (setembro-outubro de 1969) e o governo Médici caracterizaram-se pela forte repressão à oposição armada e a importantes segmentos da sociedade. No campo econômico, contudo, as coisas eram diferentes. Como havia declarado o novo presidente, "o Brasil vai bem, mas o povo vai mal". Durante o governo Médici, sob o comando do poderoso ministro da Fazenda, Delfim Neto, a economia cresceu em torno de 10% ao ano entre 1970 e 1973, fenômeno popularizado pelo regime como milagre brasileiro. Os governos anteriores haviam criado uma estrutura e preparado o caminho para tal crescimento, especialmente a presidência de Costa e Silva. Consolidava-se o famoso tripé econômico: as empresas estatais encarregavam-se da infraestrutura, energia e das indústrias de bens de capital (aço, máquinas ferramentas), as transnacionais produziam os bens de consumo duráveis (automóveis e eletrodomésticos) e o capital privado nacional voltava-se para a produção de insumos (autopeças) e bens de consumo popular. A indústria automobilística tornou-se o setor mais dinâmico da economia, atingindo uma produção anual de um milhão de unidades. Longe de gerar rivalidade, o tripé estabelecia uma divisão de trabalho e, uma vez que o crescimento era grande, havia lugar para todos.

Apesar do arrocho salarial (Delfim Neto dizia que "era preciso primeiro fazer o bolo crescer, para só depois dividi-lo"), criou-se uma nova classe média de técnicos e profissionais liberais ligada ao “milagre” e fortemente consumidora. Assim, os bens de consumo popular cresceram abaixo da média, enquanto automóveis e eletrodomésticos sofisticados chagavam a crescer o dobro. Além da forte concentração de renda, também ocorreu grande concentração econômica, principalmente no setor financeiro. A poupança espontânea da classe média e compulsória dos trabalhadores (fundos governamentais como o FGTS) carrearam recursos para investimentos, enquanto as aplicações na Bolsa de Valores passaram a ser comuns para os “novos ricos”. Assim, enquanto ocorria a pauperização e redução do nível salarial de parte da população, crescia o mercado interno, de forma estratificada. Mas isto era insuficiente para o nível de crescimento da economia, sendo necessário buscar-se mercados externos para produtos industriais.

Repressivo e formalmente pró-americano, mas por outro lado desenvolvimentista, o governo Médici constitui um fenômeno complexo e contraditório, de difícil explicação. Contudo, ao analisar-se sua política exterior e seu projeto de Brasil Potência, o aparente paradoxo torna-se compreensível. A auto-intitulada Diplomacia do Interesse Nacional do Chanceler Mário Gibson Barbosa promoveu visíveis alterações de forma, em relação à Diplomacia da Prosperidade de Costa e Silva. A solidariedade terceiro-mundista foi abandonada, bem como o discurso politizado (substituído pelo pragmatismo), a estratégia multilateral cedeu lugar ao estrito bilateralismo e à via solitária, e as áreas de atrito com os Estados Unidos receberam maior atenção, estabelecendo-se um relacionamento satisfatório.

Contudo, além de denunciar a tentativa de "congelamento do poder mundial" pelas grandes potências, a nova política externa tinha objetivos ambiciosos, como "o ingresso do Brasil no Primeiro Mundo. Até o final do século (…) construir-se-á no país uma sociedade efetivamente desenvolvida, democrática e soberana, assegurando-se a viabilidade econômica, social e política do Brasil como grande potência". Assim, ao lado da aparente convergência com Washington, o país manteve seus ataques (agora apenas em seu próprio nome) às estruturas do comércio e finanças internacionais, recusou-se a assinar o TNP e avançou o projeto de qualificação tecnológica e construção de uma indústria armamentista nacional. Além disso, a atração de investimentos e tecnologia foi maximizada com o estreitamento de laços com outros pólos do capitalismo, como Japão e Europa Ocidental. Este processo, bem como o desenvolvimento econômico, foram também facilitados pelo desempenho positivo da economia mundial entre 1968 e 1973. Forte impacto simbólico teve a ampliação do mar territorial brasileiro de 12 para 200 milhas em 1970, contra a vontade dos Estados Unidos.

Assim, como foi possível conciliar boas relações com os EUA com um projeto nacionalista-industrializante de grande potência, o que para os governos anteriores fora impossível? Os problemas políticos internos do Brasil (combate à guerrilha) produziram uma forma de solidariedade por parte da Casa Branca, num momento em que governos de esquerda estavam no poder no Chile, Bolívia e Peru, e que a Argentina e o Uruguai conheciam uma confrontação política interna que beirava a guerra civil.

Assim, o Brasil era um aliado necessário para estabilizar a região, principalmente num momento em que a Doutrina Nixon preconizava um desengajamento relativo dos Estados Unidos e a transferência de determinadas tarefas à potências regionais aliadas (Irã, Israel, Brasil, África do Sul, Paquistão). Neste sentido, o Brasil cumpriu com o papel que Washington esperava, ao fornecer apoio aos golpes de Estado no Chile, Uruguai e Bolívia. Existia, portanto, um espaço internacional para a configuração de um projeto de potência média regional e uma conjuntura latino-americana altamente favorável.

Também é importante considerar que a complementaridade econômica entre os dois países era cada vez menor, e que Nixon estava mais preocupado em desengajar seu país do Vietnã e buscar novas estratégias para a recuperação da desgastada hegemonia norte-americana.

Geisel aprofundou o processo de industrialização pela via da substituição das importações

A Diplomacia do Interesse Nacional, preocupada exclusivamente em tirar proveito das brechas existentes no sistema internacional, enfatizou uma estratégia individual de inserção, estabelecendo relações essencialmente bilaterais, especialmente em direção aos países mais fracos. Tal foi o caso da América do Sul e Central e dos países neocoloniais africanos do Golfo da Guiné, com os quais o Brasil assinou convênios culturais, de cooperação técnica e comerciais, abrindo linhas de crédito para a aquisição de produtos brasileiros. Mais ousada e repleta de conseqüências foi a aproximação com os países árabes, devido ao aumento
gradativo do petróleo desde 1971, o que aumentava seu poder de compra e obrigava o Brasil a garantir o abastecimento, buscando simultaneamente compensações ao encarecimento das crescentes importações de combustível (que desequilibrava a
balança comercial). A Guerra do Yom Kippur em outubro de 1973, e o subsequente aumento violento e embargo parcial de petróleo, aprofundarão qualitativamente o problema no governo seguinte.

Geisel e o pragmatismo responsável (1974-79)

O aumento vertiginoso do preço do petróleo no final de 1973 atingiu o Brasil em cheio, não apenas em suas contas externas, mas no próprio cerne do projeto de desenvolvimento. Os governos militares haviam negligenciado o transporte ferroviário e hidroviário, em proveito do rodoviário, e o público em proveito do individual, o que favorecia as indústrias automobilísticas transnacionais e implicava num crescente consumo de petróleo importado. Apesar de Geisel haver herdado um PIB de 133 bilhões de dólares, uma inflação anual de 18,7% e uma dívida externa de 12,5 bilhões de dólares, o “milagre” legara-lhe problemas estruturais, pois apostara num modelo que empregava energia importada barata, dependia do afluxo de investimentos de capitais estrangeiros e da utilização de tecnologia também importada. Além do aumento do preço do petróleo encarecer as importações brasileiras, produzira uma forte recessão nos países industrializados, o que gerou uma queda nos investimentos externos e nas importações de produtos brasileiros por parte destes e de países em desenvolvimento não produtores de petróleo. No plano interno, o mercado consumidor também se reduzia, colocando a produção e o comércio brasileiros em sérias dificuldades.

A redemocratização foi marcada pela continuidade da política anti-popular, e pela resistência do projeto nacional-desenvolvimentista

Desta forma a nova equipe econômica, integrada por Mario Henrique Simonsen no Ministério da Fazenda e João Paulo dos Reis Velloso no Planejamento, precisava buscar alternativas urgentes. O II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), lançado por Geisel em setembro de 1974, longe de adotar uma estratégia defensiva, preparou um aprofundamento do processo de industrialização por substituição de importações, com vistas a tornar-se auto-suficiente em insumos básicos e, se possível, em energia. O governo optou por diversificar as fontes de energia, lançando um ambicioso programa de construção de hidrelétricas, usinas nucleares, incremento da prospecção de petróleo (através dos Contratos de Risco com empresas estrangeiras) e produção de álcool para combustível automobilístico (Projeto Pro álcool). Além disso, foi intensificada a capacitação tecnológica do país em diversas e importantes áreas, como a nascente informática e a petroquímica, com base em esforço estatal. Aliás, o Estado consolidou-se como maior agente produtivo, e possibilitou a reação econômica que o governo estava desencadeando.

Embora tivesse que cortar gastos para controlar a inflação, o governo manteve um crescimento econômico que oscilou entre 5 e 10% ao ano, criou 5 milhões de novos empregos e aumentou as exportações em 50%. Contudo, como as importações continuaram altas, lançou-se mão de uma maior tributação (agravando as tensões sociais) e de empréstimos externos. Como havia abundante liquidez no mercado financeiro internacional, com os petrodólares de juros baixos, contraíram-se empréstimos que, devido a elevação brutal dos juros da dívida nos anos 1980, deixariam futuramente o país em situação desesperadora. Paralelamente, o regime iniciou um processo de abertura política controlada.

A reação econômica do governo Geisel implicava proceder a uma alteração significativa das relações exteriores, pois o capitalismo brasileiro atingira um nível de desenvolvimento que implicava num alto grau de inserção mundial. Isto se tornava ainda mais urgente devido à conjuntura internacional adversa, e ao fato do regime militar haver piorado ainda mais a distribuição de renda, fazendo com que o mercado interno fosse insuficiente para as dimensões da economia. O primeiro passo da diplomacia denominada Pragmatismo Responsável e Ecumênico do Chanceler Azeredo da Silveira foi estreitar vínculos com os países árabes. O Itamaraty permitiu a instalação de um escritório da OLP em Brasília, apoiou o voto anti-sionista na ONU e adotou uma intensa política exportadora de produtos primários, industriais e serviços, em troca do fornecimento de petróleo. Mais do que isto, o Brasil adotou uma íntima cooperação com potências regionais como Argélia, Líbia, Iraque e Arábia Saudita, sob a forma de joint-ventures para prospecção no Oriente Médio através da Braspetro, e para o desenvolvimento tecnológico e industrial-militar (venda de armas brasileiras e projetos comuns no campo dos mísseis).

Com relação ao campo socialista, ocorreu um incremento comercial com os países com os quais já possuíamos vínculos, o bloco soviético, e o impactante estabelecimento de relações diplomático-comerciais com a República Popular da China em 1974. É interessante ressaltar que o Brasil passou a cooperar com estes países também em termos estratégicos, como forma de afirmar sua presença autônoma no cenário mundial. Da mesma forma, a atuação brasileira na ONU e nas demais organizações internacionais conheceu um intenso protagonismo, e isto em convergência explícita com o Terceiro Mundo e suas instituições representativas. Na mesma linha, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo marxista do MPLA em Angola, mantendo também estreitas relações políticas e econômicas com Moçambique e outros Estados da Linha de Frente da África Austral. Aliás, a política africana do Brasil conheceu um incremento espetacular neste período. Mesmo no âmbito das potências capitalistas, Geisel promoveu alterações significativas. Frente ao insatisfatório relacionamento com os Estados Unidos, não hesitou em dar um conteúdo qualitativamente superior ao relacionamento com a Europa Ocidental e o Japão, com os quais incrementou a cooperação comercial, atração de investimentos, transferência de tecnologia e implantação de projetos agrícolas e industriais.

Com relação a Bonn e Tóquio, pode-se considerar que se estabeleceu uma cooperação estratégica, que ultrapassou de longe a tradicional política de barganha expressa pela diplomacia brasileira em outras ocasiões. Quando a Casa Branca recusou-se a colaborar com o projeto nuclear brasileiro, o presidente não vacilou em assinar um Acordo Nuclear com a Alemanha Ocidental. Frente às crescentes pressões americanas para desistir do Acordo, particularmente intensificadas após a emergência da política de direitos humanos da administração Carter em 1977, Geisel rompeu o Acordo Militar Brasil EUA, vigente desde 1952. Também é digno de nota o avanço do programa espacial (foguetes e satélites) desenvolvido pelo Brasil, e que gradativamente será vinculado à cooperação com a China Popular.

Com relação à América Latina, o Brasil procurou estreitar a cooperação, abandonando o discurso ufanista de grande potência. Iniciou conversações com a Argentina para a solução do contencioso das barragens hidrelétricas da Bacia do Prata, obtendo um acordo durante o governo seguinte. O apoio ao regime militar argentino implantado em 1976 facilitou ainda mais a aproximação. Quando na segunda metade dos anos 1970 surgiram rumores de uma possível internacionalização da Amazônia, o Brasil imediatamente reuniu os países vizinhos e com eles lançou a Iniciativa Amazônica, estabelecendo uma estratégia comum para a exploração da região e reafirmação das soberanias nacionais dos países membro sobre ela.

O Pragmatismo Responsável, como não poderia deixar de ser, despertou a ferrenha oposição dos Estados Unidos, bem como de segmentos conservadores da política brasileira. Geisel precisou mediar constantemente conflitos entre o Conselho de Segurança Nacional, que opunha-se a muitos aspectos desta diplomacia, e o Itamaraty que a defendia. Um fato interessante foi que, desde a adoção desta linha diplomática, a grande imprensa internacional passou a atacar o governo com veemência, denunciando sistematicamente a violação de direitos humanos no país, o que só era feito em escala muito reduzida durante o governo Médici, que foi qualitativamente mais repressivo e não propunha uma abertura política.

Figueiredo, a crise da dívida e o universalismo (1979-85)

O último governo militar, ampliado para seis anos, marcou-se pelo aprofundamento da abertura política, em meio a grandes dificuldades, e dos problemas econômicos internos e externos, que pressionavam estruturalmente o modelo de desenvolvimento. A situação econômica e política mundial tornou-se dramaticamente adversa para o Brasil com o Segundo Choque Petrolífero (devido à Revolução no Irã e à guerra com o Iraque) e com o fim da détente em 1979, marcando uma vigorosa reação americana que se aprofundaria durante a Era Reagan. Além disso, durante os anos 1970 processou-se uma rearticulação da economia mundial, através da reestruturação das formas produtivas, do estabelecimento de uma nova divisão internacional da produção e do desencadeamento de uma Revolução Científico-Tecnológica, que voltaram a ampliar a distância entre os países capitalistas avançados e os em desenvolvimento. Coroando esta estratégia, em 1981 Reagan promoveu uma violenta elevação da taxa de juros, tendo como um dos objetivos aumentar a dívida externa dos países do Sul. Assim, a crise da dívida constituía um instrumento de pressão contra a política econômica dos mesmos e um golpe mortal no projeto de desenvolvimento de nações como o Brasil.

Vencida a Síndrome do Vietnam, os Estados Unidos adotaram um maior protagonismo nas relações internacionais, com a Nova Guerra Fria e a Iniciativa de Defesa Estratégica, que além de tentar restaurar a bipolaridade e enfraquecer a União Soviética, criava instrumentos para a subjugação política e extração de recursos do Terceiro Mundo. Enquanto a União Soviética e a ONU enfraqueciam-se como instrumentos de apoio para os países periféricos, os Estados Unidos eliminavam as possibilidades de relações multilaterais, desarticulando progressivamente a atuação coordenada do Terceiro Mundo.

Para completar, o surgimento do neoliberalismo nos países centrais tornava ainda mais difícil a sobrevivência de experiências capitalistas nacional-desenvolvimentistas no Sul.

O regime militar cumpriu dois objetivos básicos: construiu um capitalismo industrial moderno e dependente, e conteve o movimento popular

A América Latina foi atingida em cheio pela crise da dívida em 1981 e, em seguida, pela Guerra das Malvinas em 1982. A maneira como foi articulada e executada a derrota da Argentina e a implosão de seu regime militar, reforçaram a percepção do governo e da diplomacia brasileira de que estava se processando uma rearticulação do sistema internacional fortemente negativa para a autonomia dos países de porte médio do Terceiro Mundo. Isto levou o Brasil a apoiar integralmente a Argentina, inclusive com a venda secreta de aviões de combate durante a guerra, o que solidificou a cooperação entre ambos, a qual continuou crescendo com o retomo da democracia na Argentina.

A política externa do Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro autodenominou-se de Universalismo, e esforçou-se por manter a autonomia do Brasil num cenário crescentemente desfavorável, conservando fortes traços de continuidade com o Pragmatismo Responsável. Definindo o país como parte do Terceiro Mundo, a diplomacia brasileira continuou a atuar nos fóruns internacionais em convergência com o Movimento Não-Alinhado (embora não membro efetivo), denunciando as estruturas políticas e econômicas internacionais. Com a gradativa submissão da Europa Ocidental e do Japão ao rearranjo econômico e diplomático-estratégico da administração Reagan, a cooperação com estes países conheceu uma significativa redução. Na África, o Brasil manteve uma presença importante, mas a recessão da década perdida naquele continente e o aprofundamento da guerra na África austral, limitaram fortemente os resultados de tal cooperação.

Com relação ao Oriente Médio e à China, o Brasil intensificou a cooperação, obtendo resultados relativamente positivos, embora dificultados pelas conseqüências da Guerra do Golfo e dos problemas econômicos internos do Brasil. A indústria armamentista estatal brasileira, tendo atingido elevado grau de desenvolvimento, conseguiu neste período incrementar suas exportações, tanto para os países árabes como, em menor medida, para os africanos e centro-americanos. Apesar de tal atitude nesta última região, o Brasil fez-se cada vez mais presente, apoiando o Grupo de Contadora na mediação do conflito centro-americano.

A implantação da Guerra Fria e a solução militar protagonizada pelos Estados Unidos (conflito de baixa intensidade na Nicarágua e El Salvador e invasão de Granada), levaram o Brasil a integrar o Grupo de Apoio à Contadora, e depois o G-8, convergindo com a diplomacia mexicana, venezuelana e Argentina. A América do Sul, por sua vez, constituía cada vez mais um espaço valorizado pela diplomacia brasileira, incrementando uma cooperação político-econômica, cujo eixo central era o acercamento com a Argentina. Além disso, o Brasil observava com extrema inquietação a crescente pressão americana pela redemocratização no Cone Sul, interpretando o fenômeno como uma estratégia de desarticulação das potências médias e de legitimação do pagamento da dívida externa destas.

A crescente dificuldade das exportações, na medida em que o Estado carecia de recursos para continuar financiando-as, a queda no afluxo de capital estrangeiro e o aumento dos pagamentos para amortização da dívida externa, provocaram uma severa recessão em 1982-83, além de incrementar a inflação, obrigando o Brasil a pedir uma moratória. O ministro Delfim Neto, que voltara à direção da economia, conduziu difíceis negociações com o FMI, o qual exigia a aplicação de um programa ainda mais recessivo para sanear as finanças e liberar novos empréstimos. A estratégia brasileira foi a de ganhar tempo, prometendo e não cumprindo, enquanto aceitava alguns itens do programa mas manobrava para tentar manter o projeto de desenvolvimento. Este, concretamente, ingressava num processo de desagregação, temperado por medidas paliativas e, geralmente, contraditórias. A dívida externa atingirá a cifra de 100 bilhões de dólares e o aprofundamento da crise produzirá o aumento do custo de vida e uma série de impasses na política salarial e nos indicadores sociais.

A redemocratização não apenas foi marcada por traços de continuidade política no sentido antipopular, mas também como resistência do projeto nacional-desenvolvimentista, embora num contexto interno e externo ainda mais adverso. Com o advento dos governos neoliberais nos anos 1990, o governo Sarney aparece mais ainda como uma tentativa de preservar o combalido projeto da “Era Vargas”.

Conclusão

Do início da década de 1960 ao fim da de 1980, a história brasileira foi marcada pela ascensão e queda do regime militar, que permaneceu no poder por 21 anos e alterou profundamente a sociedade brasileira. Estabelecer um balanço deste período é algo difícil, que poucos tiveram a coragem de fazer. Basicamente, o regime militar propôs-se e cumpriu dois objetivos básicos: construir um moderno capitalismo industrial e conter o movimento popular. Quanto ao primeiro aspecto, é preciso considerar que os militares deixaram o Brasil na posição de único país ao sul do Equador dotado de um completo e diversificado parque industrial, ao contrário de seus congêneres do Cone sul, que desindustrializaram seus países. Neste sentido, é preciso reconhecer que o regime manteve um projeto de desenvolvimento e a perspectiva de projeto nacional. Obviamente, como país periférico e em decorrência de ser um projeto capitalista, isto não reverteu a dependência do país, até hoje estrangulado pela dívida externa e marcado por uma série de distorções.

Ao longo deste caminho, as elites tradicionais se modernizaram, e redimensionaram as estruturas de dominação, que seguem vigentes. As desigualdades sociais, por sua vez, tornaram-se ainda maiores, colocando o país na posição de liderança da pior distribuição de renda do mundo. Mesmo tendo atingido a posição de oitava economia do mundo nos anos 80, o Brasil ostenta índices de analfabetismo, pobreza e doenças que o situam entre os mais pobres do mundo. Tendo que manter submissa politicamente e excluída economicamente grande parte da população, e optando por um modelo sócio-econômico dinâmico mas tendente às desigualdades, a burguesia brasileira gerou uma contradição insolúvel, que a obrigou a procurar certos caminhos de autonomia, os quais antagonizavam certas regras da ordem capitalista mundial.

No caminho da modernização (econômica) sem mudança (social), o Brasil vive ainda as mesmas tensões internas de trinta anos atrás, só que mais graves e num cenário mais complexo. Além disso, mesmo as conquistas materiais “nacionais” estão hoje ameaçadas pelo reordenamento internacional e pelo projeto neoliberal, que critica justamente o caráter nacional e industrializante de viés estatal do governo militar (e da Era Vargas), acusando-os de serem a fonte dos problemas atuais. Contudo, os desdobramentos da modernização econômica sem mudança social está criando condições objetivas para a superação das contradições estruturais acima mencionadas. Falta ainda, contudo, amadurecer as condições subjetivas, que dependem da consciência e mobilização de determinados agentes sócio-políticos. Uma das condições preliminares para tanto, é realizar-se uma análise objetiva do regime militar e das transformações sociais que produziu no Brasil, levando-se em consideração sua dimensão nacional-desenvolvimentista, ainda que de viés conservador.

* Paulo Fagundes Vizentine é Doutor em História pela USP, e professor-pesquisador de História contemporânea e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

EDIÇÃO 51, NOV/DEZ/JAN, 1998-1999, PÁGINAS 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65