No começo da tarde do dia 8 de outubro, quando se preparava para deixar Frankfurt – após participar da tradicional feira anual de livros – em direção a Madri, de onde seguiria para a pequena e árida ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, onde mora com sua mulher, a jornalista espanhola Pilar del Rio, o escritor José Saramago recebeu a notícia de que era o ganhador do Nobel de Literatura.

Tornava-se assim o primeiro autor de língua portuguesa a ser escolhido pela Academia Sueca de Letras, desde a criação do prêmio em 1901. "Com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e permanente ironia, Saramago torna tangível uma realidade fugidia", justificaram os acadêmicos suecos.

Autor de uma obra voltada para os valores humanistas, Saramago foi logo cercado por jornalistas de todo o mundo, que o acenavam com rosas vermelhas. E com razão. Comunista – "e serei sempre comunista", faz questão de repetir quando perguntado sobre sua opção ideológica -, Saramago afirmou que o prêmio Nobel não iria salvar a língua portuguesa, mas, sem dúvida, iria protegê-la. Indagado sobre o valor da premiação, US$ 985 mil, disse que não era ambicioso e que o dinheiro seria investido no auxílio de pessoas necessitadas.

A consagração de Saramago foi aplaudida no mundo inteiro, com uma óbvia e única exceção: o Vaticano, que julgou a escolha "ideológica". Talvez por isso, Saramago explicou porque foi viver numa pequena ilha das Canárias, num lugarejo chamado Tais: "Por um problema político, depois de escrever um livro polêmico, O evangelho segundo Jesus Cristo, que foi muito mal recebido em Portugal". Mesmo assim fez questão de afirmar que o prêmio "é muito importante para Portugal porque é preciso entender que uma terra que tem sido tão marginalizada pode começar a se tornar respeitada em todo o mundo pela sua literatura. Isto é fantástico para um pequeno país." Um dia antes, em Frankfurt, por sinal, Saramago havia feito uma palestra sobre o tema "O que é ser comunista". Mas negou ter ganho o prêmio por motivos políticos. "Ai de nós se a Academia fosse motivada por razões políticas", afirmou. "Os critérios dela, espero eu, são meramente literários".

José Saramago, cujo nome de batismo é José de Souza, nasceu em 16 de novembro de 1922 na aldeia de Azinhaga (Ribatejo), no norte de Portugal. Saramago, que é uma plantinha silvestre, era o apelido que os vizinhos davam ao seu pai. Ao ser registrado no cartório, o funcionário resolveu colocar a alcunha ao seu nome. Filho de uma família de agricultores pobres, aos dois anos de idade mudou-se com a família para Lisboa. Devido a dificuldades econômicas, teve de abandonar a escola primária para trabalhar como mecânico. "Até os meus 20 e tantos anos, eu voltava a Azinhaga pelo menos uma vez por ano", ele lembra. "Em Azinhaga estão guardadas minhas impressões fundamentais. Quando eu chegava à aldeia, a primeira coisa que fazia era tirar os sapatos. E a última coisa que fazia, antes de regressar a Lisboa, era calçá-los. Os sapatos, e a ausência deles, se tornaram um símbolo muito forte".

Nos anos 1960, Saramago se junta ao Partido Comunista Português e foi um ativo combatente na luta contra a ditadura de Salazar. Nessa época, já atuava na literatura. Em 1947, publicou seu primeiro livro, o romance Terra do pecado. A partir daí, fica em silêncio literário por mais de 20 anos. Em 1966, porém, publica um volume de poesias, Os poemas possíveis. Em seguida, edita uma reunião de crônicas e outra de artigos. Em 1975, no entanto, um acontecimento mudaria a vida do escritor. Já com 53 anos, era então diretor adjunto do jornal Diário de Notícias, quando toda a equipe foi mandada embora.

Aproveita o desemprego e passa então a dedicar-se com exclusividade à literatura. Surgem romances como Levantando do chão e Memorial do convento, fazendo dele uma celebridade dentro e fora de sua terra de origem.

Segundo o jornalista Renato Pompeu, "se Saramago é o primeiro escritor em português da história a ganhar o Nobel, ele não foi o primeiro português a ter conquistado esse prêmio. Em 1949, o neurologista António Egas Moniz, nascido em 1874, ganhou o Nobel de Fisiologia e Medicina. Moniz foi o pioneiro mundial da neurocirurgia, em particular da cirurgia cerebral e da psicocirurgia.

O prêmio Nobel, criado pelo sueco inventor da dinamite, Alfred Nobel (1833-1896), já cometeu várias injustiças. Grandes escritores como o inglês Graham Greene, o argentino Jorge Luís Borges e o russo Vladimir Nabokov morreram e não entraram na lista. Também outros como o francês Marcel Proust e o irlandês James Joyce. Brasileiros como Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto foram por várias vezes preteridos. Para Saramago, um grande escritor e ativo combatente das causas humanistas, é bem merecido. Também o que importa é o empurrão à língua portuguesa, cada vez mais massacrada pelo poderio econômico e tecnológico norte-americano. Em Portugal, ao contrário do Brasil, a língua resiste mais. Lá, como exemplo, mouse é rato. Lixe-se Bill Gates. E viva Camões, Eça e Saramago.

* Jornalista e escritor.

A obra completa de Saramago

• Os poemas possíveis
• Provavelmente alegria
• Deste mundo e do outro
• A bagagem do viajante
• As opiniões que o DL não teve
• O ano de 1993
• Os apontamentos
• Manual de pintura e caligrafia
• Objecto quase
• Poética dos cinco sentidos
• O ouvido da noite
• Levantando do chão
• Que farei com este livro?
• Viagem a Portugal
• Memorial do convento
• O ano da morte de Ricardo Reis
• A jangada de pedra
• A segunda vida de Francisco de Assis
• História do cerco de Lisboa
. O evangelho segundo Jesus Cristo
• In nomine Dei
• Ensaio sobre a cegueira
• Cadernos de Lanzarote
• Todos os nomes

Curiosidade: todos os livros de Saramago publicados no Brasil obedecem, por determinação do autor, à grafia de Portugal. Trechos de Cadernos de Lanzarote

"14 de dezembro
Em Oviedo, para um encontro organizado pela Fundação Municipal de Cultura sobre 50 Propostas para o Próximo Milênio. Os proponentes convidados foram cinco: três filósofos (Custavo Bueno, Cabriel Albiac e Antônio Escohotado), um economista e urbanista (Luís Racionero) e um romancista (este). Quando, há uns meses, recebi o convite, pus-me a imaginar o que teria acontecido se, no ano de 995, em Oviedo, ou num destes sítios das Astúrias, a alguém tivesse ocorrido a idéia de reunir cinco letrados (certamente todos teólogos, porque filósofos doutros saberes não os haveria então ali, e os economistas, os urbanistas e os romancistas ainda estavam por inventar), com o objetivo de apresentarem propostas para os próximos mil anos. Independentemente da circunstância de por aqueles dias, na Europa, haver sido posta a correr a voz de que o mundo se acabaria daí a cinco anos, e que portanto de nada iria servir quanto ali se dissesse, é mais do que duvidoso que as eminentes cabeças teológicas reunidas em Oviedo acertassem com uma só das suas propostas. Isto me levou a não pensar mais no milênio que está para chegar e a formular propostas apenas para amanhã, quando se supõe que ainda estaremos quase todos vivos. Permiti-me compará-las a uma ponte que, a meu ver, talvez seja necessário começar por construir, se queremos alcançar a outra margem do rio, lá onde, um dia, virão a ser construí dos os magníficos palácios prometidos nas propostas dos meus colegas.

Limitei-me, portanto, a sugerir: 1) Desenvolver para trás, isto é, fazer aproximar da primeira linha de progresso as cada vez maiores massas de população deixadas à retaguarda pelos modelos de desenvolvimento atualmente em uso; 2) Criar um novo sentido dos deveres da espécie humana, correlativo do exercício pleno dos seus direitos; 3) Viver como sobreviventes, isto é, compreender, de facto, que os bens, as riquezas e os produtos do planeta não são inesgotáveis; 4) Impedir que as religiões continuem a ser fatores de desunião; 5) Racionalizar a razão, isto é, aplicá-la de modo simplesmente racional; 6) Resolver a contradição entre afirmar-se que cada vez estamos mais perto uns dos outros e a evidência de que cada vez nos encontramos mais afastados; 7) Definir éticas práticas de produção, distribuição e consumo; 8) Acabar de vez com a fome no mundo, porque isso já é possível; 9) Reduzir a distância, que aumenta em cada dia, entre os que sabem muito e os que sabem pouco. Na minha décima proposta preconizava um "regresso à filosofia" (apesar de ser leigo na matéria), mas retirei-me quando vi que os meus colegas, felizmente de acordo quanto ao essencial, discordavam resolutamente nos particulares, que é onde as questões realmente se decidem…"

EDIÇÃO 51, NOV/DEZ/JAN, 1998-1999, PÁGINAS 74, 75, 76, 77