A grande contra-reforma
A Constituição de 1988 foi o momento mais significativo do avanço democrático no Brasil desde o golpe militar de 1964. Sentimentos libertários, demoradamente contidos, e uma visão altiva das potencialidades nacionais – longamente encoberta por ensaiado chauvinismo de grande potência desaguaram na constituinte de 1987, que trabalhou sob os olhares atentos da Nação mobilizada.
Resultou que a Constituição de 1988, intitulada de "cidadã" por Ulysses Guimarães, expressou as linhas gerais de um projeto nacional, incompleto e imperfeito, mas que poderia ser desenvolvido e aperfeiçoado se forças nacionais e democráticas tivessem hegemonizado o processo seguinte. Este, porém, passou a ser determinado no Brasil pelo neoliberalismo emergente, que dissolveu os sentimentos nacionais na onda "globalizante", vale dizer, internacionalizante, desnacionalizante. De cambulhada, direitos sociais e preceitos democráticos passaram a ser negados. O conservadorismo logo procurou reinterpretar o alcance da "revisão" constitucional de 1993, prevista para adaptar o texto da Constituição ao resultado do plebiscito recém efetuado sobre sistema de governo. Defendeu "revisão" ampla e irrestrita, em tentativa de golpe-de-mão sobre a Constituição. Derrotado, desencadeou a panacéia reformista que veio com Fernando Collor e sobretudo Fernando Henrique. A Constituição de 1988 foi considerada o empecilho básico à entrada do Brasil na era global. Reformá-la, era uma imposição do progresso.
Com a sustentação ideológica da mídia, o conservadorismo transmutou-se em modernidade e apresentou-se como reformista, subvertendo todo o glossário reconhecido, chamando de progresso a submissão e, de atraso, o sentimento progressista. Uma verdadeira contra-reforma foi desencadeada com o discurso enganador das "reformas". Desfigurados foram os capítulos fundamentais da Constituição de 1988. Da ordem econômica, quase não sobrou nada. Administração pública, previdência, pacto federativo, direitos sociais, tudo passou pelo crivo neoliberal e as "reformas" foram sendo aprovadas no Congresso, sob o tacão do governo central, sob a pressão do rolo compressor, sob a 'persuasão' do suborno. O ápice dessas mudanças reacionárias foi a esbórnia da reeleição, o triste episódio onde votos de deputados foram comprados para que Fernando Henrique pudesse se reeleger.
Desde o início do primeiro governo de Fernando Henrique duas "reformas" eram tidas como fundamentais: a política e a tributária. A primeira trataria da questão de co organizar o poder, concentrá-lo elitizá-lo, por exemplo. A segunda definiria o problema de "quem paga quanto, a quem, para gastar em quê".
Precisamente porque essas das "reformas" são de fato centrais, relacionadas com a forma de se compor o poder político e de se gerir a economia estatal, a sua execução foi dificultada, dando lugar a outras "reformas" mais fáceis de tramitar, notadamente uma, considerada urgente e decisiva, a da "reeleição". A "grande reforma política" em oito pontos, sugerida por José Serra em setembro de 1992, não andou e foi há pouco, em 1997, reapresentada. A comissão especial criada pela Câmara para examinar a "reforma tributária" desde o início da anterior legislatura, depois de quatro anos, não conseguiu chegar a termo.
Mas, se particularmente a "reforma política" não foi tratada harmoniosamente, em um todo coerente de propostas, batalhas parlamentares importantes foram consecutivamente travadas, como a que redundou na Lei 9.096195, a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, onde esforço tenaz foi desenvolvido pelas forças democráticas, com sucesso relativo, para impedir o prevalecimento de dispositivos cerceadores.
Enquanto questões candentes "reformas" previdenciária, administrativa, ajuste fiscal e outras – ocupavam os trabalhos congressuais, eis que o Senado toma uma iniciativa insólita: cria, em abril de 1995, uma Comissão Temporária Interna com o objetivo de elaborar uma proposta completa de "reforma político-partidária".
O Senado é, segundo a Constituição, composto de "representantes dos Estados e do Distrito Federal", enquanto "a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes ao povo … " (Arts. 46 e 45). A iniciativa de legislar sobre problemas da organização da sociedade – tal como a forma do povo votar ou de se organizar em partido político – naturalmente caberia à Câmara, como de resto sempre aconteceu, pelo menos na história do legislativo das últimas décadas. A iniciativa do Senado foi estranha,já por parecer uma usurpação inesperada e por ensejar a idéia de uma reprovação descabida à Câmara, até mesmo porque esta, bem antes, já tivera também sua comissão especial sobre o assunto. Tudo indica que a iniciativa senatorial buscou um ambiente de trabalho menos tenso, onde os problemas poderiam ser "resolvidos" de forma mais expedita: de fato, enquanto a comissão dos deputados enfrentou o fogo cruzado que decorria das contradições em análise, a comissão dos senadores parece ter se abrigado desses contraditórios pungentes. Seu trabalho encerrou-se em novembro de 1998, formulando oito Propostas de Emenda à Constituição e três Projetos de Lei, essencialmente descricionários e altamente polêmicos, tudo por unanimidade … O relatório informa, em sua apresentação, ter a comissão tomado "depoimentos de personalidades ligadas ao tema", para "realizar um amplo debate" (sic). Coincidentemente, todas as personalidades enumeradas, de resto, apenas oito, estavam a favor das posições defendidas pela comissão. O Relatório Final do senador Sérgio Machado, relator da comissão, é assinado por todos os membros da mesma, inclusive os dois representantes do PT. A comissão trabalhou no modelo do pensamento único …
Característico do Relatório Final da Comissão Temporária Interna do Senado é sua proposta de reduzir o número de partidos políticos no Brasil a uns 5 ou 6, condenando ao desaparecimento os 25 ou 24 restantes. Isto seria conseguindo através da introdução da cláusula de barreira, segundo o modelo alemão, de "5 % dos votos apurados", em "cada eleição para a Câmara dos Deputados", "distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com o mínimo de 2 % do total de cada um deles". Prevaleceria também o sistema distrital misto alemão. com "dois votos desvinculados, um para o candidato de seu distrito eleitoral e outro para o partido de sua preferência", "vedando a coligação partidária nas eleições legislativas". O Senador Fogaça, citado no Relatório, declara que, "no Brasil, são 5 ou 6 as correntes (políticas) que vão sobreviver a um sistema distrital misto”, sem contar o estrago que a cláusula de barreiras faria.
A Comissão Temporária Interna do Senado encaminhou-se, talvez por insuficiência de contraditório, para a idéia de propor a barreira de 5% dos votos apurados, distribuídos da maneira especial prevista, não só para o funcionamento parlamentar, como já estava na lei 9096/95, mas como “critério de acesso às verbas do fundo partidário e aos programas eleitorais gratuitos no rádio e televisão”. Foi além, como na demorada negociação havida na Câmara quando da aprovação da lei 9096/95, a cláusula de barreira de 5% só prevaleceria a partir de 2006, a Comissão decidiu propor a antecipação dos efeito dessa cláusula para a partir de 2002. Seria uma espécie de “barreira já!”
O relatório faz ainda algumas digressões sobre liberdade partidária constante da Constituição brasileira atual. Registra a “liberalidade para se criar partido”, existente no Brasil, mas tranqüiliza a todos enunciando “ optamos pela manutenção da liberdade de criação de partidos”… E é aí que decide dar um choque indireto, e praticamente mortal nos pequenos partidos, através do que chama de “atuação indireta”, “permissão para funcionamento parlamentar”, “acesso às verbas do fundo partidário e aos programas eleitorais gratuitos de rádio e televisão somente aos partidos que…” conseguirem passar pela cláusula de barreira! O partidos pequenos fiariam oscilando entre esses dois parâmetros, a liberdade de ser criado e a impossibilidade de poder existir.
A cláusula de barreira é dispositivo extraído da legislação alemã, assim como o sistema distrital misto. Não aparece no relatório examinado, sequer um esforço de aplicação criadora desses dispositivos teutônicos, à realidade brasileira tão diferente da alemã. Os autores do relatório a despeito da obsessão germânica de que estão possuídos, cuidarão de não fazer a mínima alusão à matriz alemã onde se pautaram. E até o nome cláusula de barreira mudaram . Apelidaram-na de “cláusula de desempenho” Os incautos poderiam até pensar que essas idéias surgiram no Brasil…
Mas, não só a cláusula de barreira não é originária do Brasil, como sua importação não data de hoje. Subsidiou, há mais tempo, o pensamento retrógrado entre nós, nas anteriores tentativas feitas aqui de se diminuir autoritariamente o número de partidos políticos existentes. Já o regime militar, pouco depois de 1964, tomou logo a providência de liquidar os partidos existentes e criar dois. Não vingou, apesar das baionetas. O general Médici fez constar na Carta outorgada de 1967 a cláusula de barreira de 10% dos votos válidos como mínimo que um partido deveria atingir para permanecer em funcionamento. Na Constituição de 1969, esse índice foi reduzido para 5%, permanecendo assim no chamado "pacote de abril de 1977", de responsabilidade do general Geisel. A Emenda Constitucional número 2, de junho de 1982, suspendeu sua vigência para a eleição daquele ano e a Constituição de 1988, finalmente aboliu essa cláusula de barreira, em um conjunto na época chamado de “entulho autoritário”
É na esteira desse pensamento cerceador da atividade partidária, em particular das minorias, que perfilam se os autores do artigo 13 da lei 9096/95 (cláusula de barreira de 5% para funcionamento partidário) e os novos e radicalizados proponentes do Relatório Final da Comissão Temporária Interna do Senado para a “reforma política”. A prevalecer as barreiras que tencionavam à frente dos partidos brasileiros, tomando por referência as eleições passadas, só o PFL, o PSDB, o PT, o PMDB, o PPB, e PDT e o PTB estariam com seus funcionamentos assegurados. Os outros, sem funcionamento parlamentar, sem acesso a rádio e TV, e sem participar do fundo partidário, dificilmente teriam condições de sobreviver. Ademais se não tivesse sido suspensa a cláusula de barreira de 5% para a eleição de 1982, o PDT, o PTB e o PT não teriam funcionamento parlamentar desde então posto que naquelas eleições só alcançaram 4,94%, 3,77% e 3,01% respectivamente.
Em atividade ficariam o PFL, PSDB, o PMDB e o PPB. oposição talvez não tivesse sobrevivido nenhum partido. Alguém estaria satisfeito, mas a democracia" estaria derrotada no Brasil. P algum tempo.
A cláusula de barreira é uma cláusula de exclusão. O partido que não consegue ultrapassá-la é excluí da atividade política, de logo gradativamente. Seus eleitores perdem seus votos, de imediato ou continuidade. Se tomarmos p referência a eleição de 1994, do pequenos partidos, que tivera 11.4% dos votos nominais e legenda. aproximadamente 5 milhões de votos, seriam eliminados pe barreira. Se, no caso extremo que discute. esses partidos não pudesse empossar seus deputados eleito seriam 52 vagas de deputados federais que seriam repartidas entre partidos majoritários, precisamente contra os quais aqueles cinco milhões de eleitores votaram. Seria o confisco seguido de repasse fraudulento de vagas. Se os deputados eleitos pudessem tomar posse m não usufruir de "funcionamento parlamentar", ou acesso a rádio, TV e ao fundo partidário, os mesmos cinco milhões de eleitores não teriam eleito parlamentares completos, mas representantes apenas tolerados, condenados a desempenho sofrível. Seria o voto do povo enfraquecido manobra de "tapetão".
O Relatório Final finalmente foi buscar, mais uma vez na legislação alemã, sua proposição de novo sistema eleitoral, o sistema distrital misto, ou sistema alemão. O eleitor terá dois votos, um, a ser dado candidato do distrito, outro, na lista do partido. O coeficiente eleitoral s definido pelos votos dados nas listas o que garante aos partidos uma participação proporcional ao número de votos recebidos. Mas, se tal acontece, e se o voto dado nas listas organizadas pelos partidos, em convenções e, dependendo, em votação secreta, termina por fortalecer o partido, o voto majoritário que elege um representante por distrito elitizando extraordinariamente o sistema, facilitando a eleição de candidato apoiado pela máquina estatal ou pelo poder econômico. Os "primeiros" votos, ou votos nos candidatos dos distritos, são votos majoritários, escolhem um vencedor, de um distrito que pode ser formado por um conjunto de municípios, situação que em geral os candidato$ menos aquinhoados não têm condições de disputa. O sistema é tal que, em um estado, metade dos que serão eleitos, de saída, são seguramente das esferas dominantes locais. O voto proporcional, que faculta uma representação mais diversificada de eleitos, onde a minoria pode ter acesso, só disputará a metade das vagas.
Também o voto distrital, não o misto, no Brasil, tem uma história. Foi ele adotado em nosso país por 77 anos, desde o Império até a República Velha. Serviu com a maior eficiência às oligarquias do país, sendo extinto pela Revolução de 1930, que instaurou o sistema proporcional, além de Justiça Eleitoral, voto secreto, voto das mulheres, etc. Na época da ditadura militar, o general Figueiredo patrocinou a Emenda Constitucional número 22, de junho de 1982, estabelecendo que "os deputados federais e estaduais serão eleitos pelo sistema distrital misto, majoritário e proporcional", introduzindo no país, aí sim, pioneiramente, o sistema distrital misto alemão. Findo o regime dos militares, a Câmara o revogou, como "entulho autoritário", em maio de 1985.
A proibição das coligações proporcionais surge como mais um casuísmo daqueles que perseguem objetivos definidos, no caso, dificultar arbitrariamente a existência dos pequenos partidos. Evidentemente que havendo a possibilidade de se efetuar coligação partidária esta só ocorrerá se houver decisão política bilateral ou multilateral. É certo que nenhum partido deve ser obrigado a se coligar, como é igualmente certo que nenhum partido deve estar proibido de se coligar com outro, se isto for do interesse de ambos.
O sistema eleitoral brasileiro para eleição de parlamentares, proporcional com listas abertas foi financiado até hoje por particulares sujeito a grande influência das máquinas estatais e do poder econômico , não é benéfico a partidos minoritários de talhe ideológico. Tanto sim que um partido como o PC do B,. através desse sistema, apenas tem conseguido sobreviver e crescer muito moderadamente. A crítica que o conservadorismo faz a esse sistema acentua que ele dificulta a governabilidade e que . constrói maioria instável. Destaca que grande número de partidos políticos nele prolifera e os candidatos por ele eleitos não têm compromissos profundos com suas bases. Propõe o distrital misto, a cláusula de barreira,a proibição de coligações, ou seja, faz a crítica do sistema pela direita, propõe elitizá-lo mais ainda. Para os partidos minoritários, pequenos, sobretudo os chamados ideológicos, tal proposta significa deixar o terreno onde a sobrevivência está sendo possível e um crescimento moderado – às vezes, também – e passar a uma situação onde no máximo o declínio lento é assegurado, havendo o risco da morte súbita. Seria a grande contra-reforma.
Os partidos e as forças democráticas devem partir do pressuposto de que a ameaça que se adensa no horizonte é, em primeiro lugar, à democracia .
Os partidos e as forças democráticas devem partir do pressuposto de que a ameaça que se adensa no horizonte é, em primeiro lugar, à democracia E que a defesa democrática que se identifica com a defesa de um contexto em que partidos políticos, independente de tamanho possam sobreviver , não se identifica com a defesa do status quo legislativo existente. Se o Relatório final analisado inspirou-se no exemplo alemão que tão pouco nos diz respeito, o esforço congressista de enfrentar o problema posto deve valorizar bastante as particularidades brasileiras: seu tamanho extraordinário, sua cultura latina – participativa “quente” ; não germânica (distante “fria”) – sua tradição de contestação constante e irrefreável dos “mandonismos”, sua história de inconformidade com formas impostas como os dois partidos que a ditadura queria, o voto vinculado, o senador biônico, as áreas de segurança onde não havia eleições, as barreiras de Médici e Geisel, o sistema distrital misto do Figueiredo, tudo isto que já não deu certo.
* Haroldo Lima é membro do Comitê Central do PCdoB e deputado federal pelo PCdoB-BA, em quinto mandato.
EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 19, 20, 21, 22, 23