Segundo a previsão de FHC, nada de crises: a União faria investimentos da ordem de R$ 8,7 bilhões. Descontada a emissão de títulos, o país arrecadaria R$ 196,5 bilhões, R$ 28,1 bilhões seriam transferidos aos Estados, DF e Municípios e ainda estavam programados R$ 159,7 bilhões em outras despesas. Sem grandes ajustes, o resultado primário seria positivo em R$ 8,7 bilhões. Com inflação controlada e taxa de juros em declínio alcançaríamos o desenvolvimento. Os eleitores poderiam esperar um crescimento de 4% do PIB. No entanto, nada de muitos detalhes que poderiam desviar as atenções dos ouvintes.

Mas não tardaram a cair as máscaras de FHC e sua equipe. Logo após o segundo turno da eleição, no início de novembro, chega ao Congresso uma nova proposta orçamentária. Era o "Orçamento do Acordo com o FMI", uma proposta elaborada seguindo à risca os ditames do Fundo. Agora sim a sociedade poderia conhecer os desatinos da aventura de FHC, que quebrou o país com a sua política baseada no crescente endividamento. Ao invés de crescimento, queda de 1 % no PIB. Sem muito alarde, a proposição embutia um grande arrocho fiscal, aumento voraz da carga tributária e corte radical nos investimentos e gastos sociais. Silêncio absoluto sobre a falência de um modelo que persiste na ilusão de financiamento externo abundante e barato, capaz de sustentar todos os desequilíbrios das contas brasileiras.

A previsão era de recessão, o que diminui sensivelmente as receitas públicas. Mas FHC precisava de mais receitas e ainda de cortes em todas as despesas não financeiras. De acordo com o raciocínio do governo. despesas com saúde. educação, reforma agrária saneamento, segurança são pesados fardos para a sociedade. Pagamentos de pessoal e aposentados, então, nem se fala. É papel dos governantes aliviar essas contas, com medidas de ajuste fiscal. Ao contrário, as despesas com juros e encargos da dívida independem das políticas públicas, decorrem tão somente das relações de mercado. O seu custo nem deve ser discutido. Uma síntese desse entendimento pôde ser vista na proposta de lei orçamentária que FHC enviou ao Congresso depois do ajuste. Nela, as despesas com amortização, juros e encargos da dívida constariam na lei, mas apenas formalmente, já que o governo propunha que o Congresso autorizasse gastos ilimitados com esses pagamentos, procedendo as mudanças pelo rito do decreto, sem passar pelo Legislativo.

O Orçamento do Acordo com o FMI

O acordo com o FMI impôs a obrigação do Estado aumentar a arrecadação e gastar menos com as chamadas despesas não financeiras, para poder gastar muito mais com as despesas financeiras: juros, encargos e amortizações da dívida.

Para o governo, a solução para assegurar mais recursos foi majorar as alíquotas das contribuições sociais. A opção de aumentar contribuições sociais ao invés de impostos se justifica porque elas podem ser instituídas e cobradas no mesmo exercício financeiro. Desse modo, mesmo que a publicação das novas leis se dê em 1999, a cobrança das novas contribuições não precisa esperar a virada do ano, bastam 90 dias. Os impostos e as taxas têm de atender ao princípio da anualidade e somente seriam devidos no ano 2000. Outro ponto importante para FHC é que o aumento de Imposto de Renda ou IPI (os dois maiores impostos federais) implicaria na divisão do bolo com os estados e municípios. A Constituição determina que quase a metade desses tributos sejam transferidas a estados (FPE), municípios (FPM) e fundos regionais. Fugindo dessa repartição, FHC agride o princípio constitucional e o pacto federativo. A crise e os altos juros atingem, além da União, estados e municípios; porém os novos tributos ampliam a arrecadação apenas para a União.

Assim, FHC idealizou um aumento de R$ 14,4 bilhões nas receitas da seguridade social (contribuições e recursos próprios dos respectivos órgãos). A proposta enviada em agosto estimava essas receitas em R$ 105,3 bilhões. Esse valor cairia porque não havia mais o cenário de crescimento econômico, mas de recessão, e a inflação ficaria abaixo dos 1,5% previstos. Daí a necessidade de um aumento substancial nas contribuições, o suficiente para ampliar, ainda assim, as receitas da seguridade para R$ 115,2 bilhões. Para compreender a importância desses R$ 14,4 bilhões de novas contribuições basta compará-lo com o superávit primário de R$ 16,3 bilhões prometido ao FMI: 88%.A receita suplementar veio acompanhada de uma contenção nas despesas da seguridade. Os cortes nas programações de custeio e investimentos em saúde, previdência e assistência somaram R$ 2,2 bilhões. Arrecadando mais em contribuições sociais e gastando menos, o orçamento da seguridade que contém as receitas e as despesas com saúde, assistência social e previdência promoveu uma brutal transferência de recursos para o orçamento fiscal, que compreende itens como educação, agricultura, transportes, segurança e dívidas. Esse desvio é conseqüência natural de um esforço fiscal que ampliou as receitas da seguridade, mas na realidade pretende cobrir despesas com a dívida e não melhorias nas condições de vida da nossa sociedade.

Para mascarar essa transferência, o governo falseou na proposta orçamentária enviada ao Congresso as despesas com inativos, ampliando artificialmente os valores em mais de R$ 1,67 bilhão.
Com essa artimanha, aumentou-se o déficit do Plano de Seguridade do Servidor, facilitando o discurso oficial, e ainda escondeu-se da sociedade que as contribuições sociais agora acabariam financiando o orçamento fiscal e as despesas com a dívida.

Também fruto do ajuste, as despesas de investimento caíram quase à metade, para apenas R$ 4,9 bilhões. Somente o transporte rodoviário perdeu R$ 868 milhões e a programação de recursos hídricos outros R$ 426 milhões. Contribuições sociais, como CPMF e COFINS, aumentam, mas do programa "saúde" desapareceu quase R$ 1,5 bilhão. Também é suprimida do saneamento a metade dos recursos, de R$ 645 milhões para R$ 336 milhões, e da assistência foram retirados R$ 500 milhões.

As despesas com ensino fundamental diminuíram R$ 252 milhões e outros R$ 132 milhões foram subtraídos das universidades. A despeito do crescente desemprego, as despesas com proteção do trabalhador perderam mais de R$ 518 milhões, retirados dos programas de qualificação e intermediação, geração de emprego e renda. Esses recursos são do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e não podem ter nenhuma outra destinação.

As maiores alterações se deram no Orçamento da Seguridade. No primeiro projeto, enviado em agosto, do Orçamento Fiscal seriam transferidos R$ 9,6 bilhões para complementar as necessidades com saúde, assistência e previdência. Na segunda mensagem, esse valor caiu para R$ 204 milhões. Mas, quando o Congresso refez as contas descobriu que FHC fraudou as despesas com servidores inativos, ampliando-as em mais de R$ 1,670 bilhão. Descontado esse valor, percebeu-se que, contrariando os preceitos constitucionais, as receitas da seguridade estavam subsidiando despesas do Orçamento Fiscal em mais de R$ 1,466 bilhão.

Tudo para gerar R$ 16,3 bilhões de superávit. Um grande sacrifício para uma população cada vez mais carente. Para o povo, um esforço tão inútil quanto foi o das privatizações.

Por trás da mensagem, um orçamento com privilégio absoluto para os encargos da dívida.
A primeira proposta de lei orçamentária – o “Orçamento da Eleição” – chegou ao Congresso em agosto de 1998. A dívida pública federal, interna e externa já ultrapassava a casa dos R$ 400 bilhões e consumiria R$ 53 bilhões em juros e encargos. Somente a rolagem da dívida interna envolveria R$ 394 bilhões. Além dessa rolagem com recursos da emissão de novos títulos, o governo utilizaria R$ 22,4 bilhões de recursos fiscais, de privatizações e concessões, e ainda R$ 9,75 bilhões de outras fontes financeiras na amortização.

Comparativamente, a conta de juros e encargos era 2,8 vezes superior às despesas com saúde e saneamento, 3,4 vezes maior do que os gastos com educação e cultura, 8,7% superior aos gastos com pessoal ativos e inativos, civis e militares e 10% maior que o pagamento de todos os benefícios da previdência.
Por outro lado, dos R$ 14,4 bilhões que o Ministério da Saúde teria para as ações de saúde, R$ 8 bilhões ainda não existiam e dependeriam da aprovação da CPMF.

A tramitação do orçamento no Congresso

A implementação do ajuste fiscal depende da aprovação de várias leis. A lei orçamentária é apenas uma delas. No geral, o Congresso atendeu cegamente aos apelos do governo. O Deputado Inocêncio de Oliveira chegou a dizer que nesses momentos o dever dos parlamentares é fechar os olhos e votar. Na verdade, fechou os olhos à natureza da crise, à ineficácia das medidas adotadas e às conseqüências sociais do ajuste. No entanto, podemos considerar a participação do Congresso no processo orçamentário como positiva.

Em primeiro lugar porque propicia o debate político sobre o orçamento. Alei orçamentária fornece uma boa imagem da situação do Estado. É possível apreender informações muito precisas sobre quem financia e quem usufrui do dinheiro público. Como e de quem o Estado subtrai parcela da renda e da riqueza e quais são os segmentos sociais e setores econômicos que se beneficiam das despesas públicas, dos incentivos e benefícios fiscais, creditícios e tributários. O orçamento também retrata o processo econômico, a recessão, o desemprego, o endividamento público, a falência das políticas sociais etc. Embora seja pequena a parcela de parlamentares que participa desses debates, é a partir desse momento que a sociedade conhece os números do orçamento. A crise e o desajuste, que desorientam a economia brasileira., canalizam as atenções para as contas públicas, propiciando maiores espaços para essa discussão.

Naturalmente, o governo FHC conspira contra esse debate. Além de sonegar muitas informações, deliberadamente falseia outras. Quando a Lei de Diretrizes Orçamentárias foi promulgada, o presidente vetou diversos dispositivos que determinam o envio ao Congresso de informações complementares.

Mas, em 1998, FHC foi além … Ao substituir o projeto, para atender ao acordo com o FMI, algumas informações e quadros demonstrativos obrigatórios não acompanharam a mensagem. Nem mesmo um pedido de informações formulado e reiterado através do meu gabinete foi integralmente respondido. Assim, o Congresso e a sociedade não podem acompanhar questões como impacto para o Tesouro dos gastos com o PROER, com a federalização das dívidas estaduais e municipais, com a securitização das dívidas do setor rural critérios utilizados para a regionalização dos gastos, demonstrativos sobre a evolução da receita com a série histórica dos anos anteriores e planilhas de cálculo para juros reais e nominais, em regime de caixa e de competência. A maior parte das informações sonegadas dizem respeito à dívida pública, ao processo de sua constituição e à natureza de seus encargos. A dívida para esse governo é realmente uma questão emblemática: ela tem que ser paga a qualquer custo, mas não pode ser objeto de debate.

Um segundo ponto que merece ser ressaltado na atuação do Congresso é a melhoria da regionalização dos investimentos públicos em decorrência das emendas dos parlamentares, das bancadas estaduais e das comissões temáticas. aperfeiçoando, assim, a proposta orçamentária. Para se ter uma idéia.. pela proposta do Executivo, 47% dos investimentos estavam alocados em programações genéricas e a sua aplicação dependeria do arbítrio do governo. Pela proposta aprovada, esse percentual cai para 30%. Ou seja, a lei já determina onde 70% dos investimentos serão aplicados, diminuindo o poder discricionário do Governo na execução da lei orçamentária. Maiores detalhes desta regionalização constam no Quadro 1.

O terceiro motivo que ilustra como o Congresso tem participado positivamente no processo orçamentário é ampliação dos recursos que são destinados para as áreas sociais. Quando o Governo FHC prepara a sua proposta orçamentária, os interesses do grande capital financeiro determinam os resultados. O governo não poupa esforços para satisfazê-lo. Com isso, os setores sociais vêm perdendo recursos ano a ano. A pressão de governadores e prefeitos. de entidades da sociedade civil e até mesmo de dirigentes de diversos órgãos públicos sensibilizando os parlamentares amplia verbas para esses setores. O Quadro 2 dá uma demonstração do efeito das emendas sobre o orçamento. Mas não é possível ter grandes ilusões sobre essas novas programações. Para o governo, aceitar as emendas dos parlamentares é um preço a se pagar para a aprovação da essência do ajuste, já que novas despesas sociais não estavam no seu plano. Grande parte desse acréscimo atende a demandas que os parlamentares trazem de suas bases eleitorais, mas infelizmente, não deve ser executado, pois a lei orçamentária tem efeito meramente autorizativo. Mesmo assim, muitas vezes a grande imprensa e o governo se insurgem contra o Congresso quando exerce suas funções ao alterar o orçamento, para reconhecer esses pleitos.

Vale ressaltar que algumas das modificações têm aspecto genérico e grande alcance social. As universidades, que perderam R$ 132 milhões com o ajuste, recuperaram R$ 81 milhões. Os programas de renda mínima e enfrentamento à pobreza receberam R$100milhões. Na saúde, por exemplo, as programações relativas à assistência médica e sanitária do SUS foram corrigidas para aproximar os quantitativos per capita em cada estado. Na proposição do governo, contra uma média nacional de R$ 52,23, em estados do Norte e Nordeste as verbas chegavam a R$ 29 por habitante/ano (como no Pará), enquanto no Sul e Sudeste ultrapassavam a R$ 65 (como em SP). Mesmo considerando que os serviços prestados têm complexidades diferenciadas, não há porque negar essas condições básicas de cidadania. Uma melhor equalização possibilita um melhor desempenho do SUS nesses estados e ainda elevou a média nacional para R$ 54,41. Mais de R$ 325 milhões foram utilizados nessas correções – veja Quadro 3.

O conjunto das mudanças no Orçamento da Seguridade conseguiu ampliar em quase R$ 1 bilhão as despesas programadas. As transferências para o Orçamento Fiscal caíram de R$ 1,466 bilhão para R$ 489,5 milhões. Entretanto, ainda não foi suficiente para reverter a inconstitucionalidade presente nessa transferência.

Mas a maior vitória alcançada nesse aspecto foi evitar que a lei orçamentária dissimulasse o desvio dos recursos da seguridade. Para falar a verdade, já há vários anos que a oposição afirma que o governo, durante o processo de execução orçamentária, retém os recursos da seguridade, utilizando-os para fazer caixa ou mesmo desviando-os para finalidades mais diversas por meio do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF).

Acontece que como o FMI exigiu que a meta de superávit estivesse presente na lei – e não fosse apenas um resultado de contingenciamentos durante a execução, como no passado – o desvio apareceu já no texto da lei. A presença na lei de um dispositivo inconstitucional abre espaços para medidas judiciais.
Em quarto lugar, porque o Congresso esclarece muitas irregularidades, corrigindo umas, engolindo outras. O Fundo de Estabilização Fiscal tem um papel importante para o governo na produção do ajuste fiscal. Tanto serve para subtrair recursos dos estados e municípios, quanto para desvincular recursos que constitucionalmente ou legalmente têm destinação dirigida, como no caso dos 18% dos impostos que a Constituição reserva para a educação, as contribuições sociais etc. De cada imposto ou contribuição social 20% são alocados para o FEF. Por aprovação de destaque de minha autoria, foi subtraída do FEF a parcela de recursos que se originava da Contribuição de Empregadores e Trabalhadores para a Previdência Social. Esse destaque atende à Reforma da Previdência, que proíbe a utilização dessa verba para outros fins que não dizem respeito ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Com essa medida, a Previdência recuperou R$ 9,8 bilhões, que se não ampliam o montante alocado no INSS, garantem a gestão integral desses recursos para a Previdência. Outra conseqüência é a diminuição do FEF, que cai de R$ 30 bilhões para R$ 21,1 bilhões, afetando a capacidade de manipulação das receitas promovida pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Uma outra irregularidade é praticada com os recursos das receitas próprias dos diversos órgãos. Muitas autarquias, fundações, fundos e as novas Agências reguladoras (telecomunicações, energia elétrica e petróleo) possuem previsão legal para realizar receitas, por meio da aplicação de taxas de serviços, de fiscalização, retomo de aplicações ou mesmo rendimentos financeiros de seus recursos próprios. Para ampliar o controle das despesas e possibilitar o aumento do superávit, o governo se utilizou do seguinte artifício: faz previsão sub avaliada do ingresso desses recursos, justamente porque não há impedimentos para que a receita supere as expectativas, embora exista a proibição para que as despesas ultrapassem os limites da lei.

Além desse desvio, que gera superávit a ser destinado exclusivamente ao Fundo de Amortização da Dívida Pública, FHC ainda não se contenta: aloca recursos de juros e multas cobrados pela Receita Federal, inclusive relativos a contribuições sociais, e das taxas de fiscalização, diretamente para a amortização e pagamento de juros e encargos da dívida.

O Congresso apenas fez correções em algumas situações. Foi o caso do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN) que faz jus a 5% das multas para utilização em campanhas educacionais para prevenção de acidentes de trânsito.

Outra irregularidade presente no projeto foi o uso de recursos do salárioeducação para merenda escolar. A Constituição prevê que a merenda escolar deve ser custeada com recursos da seguridade social. O salárioeducação e os recursos dos 18 % da educação devem ser aplicados na manutenção do ensino fundamental e não podem ser utilizados mesmo em atividades correlatas, como merenda e transporte. No entanto, R$ 12 milhões de recursos do salárioeducação estão incluídos dentro dos R$ 903 milhões que compõem as despesas com merenda. A correção desse desvio aumentaria as disponibilidades do setor.

O caso do Imposto "Verde"

No Orçamento Fiscal, um dos grandes cortes promovidos pelo governo em busca do ajuste atingiu o setor de transportes. Para ampliar esses valores, o Congresso poderia introduzir mais um imposto ou diminuir a previsão de superávit acordada com o FMI. A opção preferida pelos parlamentares do PMDB foi a primeira. Tramita no Congresso há vários anos a proposta de um imposto sobre combustíveis. A lei orçamentária transformou previsão em realidade e incorporou R$ 2,1 bilhões de receitas relativas a esse tributo. Diga-se, de passagem, que inexistem sequer cálculos precisos capazes de justificar esse valor. Dispor sobre a utilização de recursos para os quais não há previsão legal não é novidade. Também constam da lei orçamentária despesas com saúde e previdência que serão cobertos com os R$ 15,9 bilhões a serem arrecadados com a nova CPMF, de 0,38%.

Para o governo, a situação é bastante cômoda. A Lei de Diretrizes Orçamentárias, que determina os parâmetros de elaboração da Lei orçamentária Anual, permite a inclusão de despesas baseadas em novos tributos, mas é taxativa ao determinar que o governo, 30 dias após a publicação da lei orçamentária, deva cancelar todas as despesas que ainda estão sem financiamento definido, ou seja cujos tributos não foram aprovados ou o foram em parte. Assim, a partir da ameaça de cancelamentos, o governo tem um importante argumento para que o Congresso sempre aprove os tributos pendentes.
Naturalmente, o Imposto sobre Combustíveis é wna ficção. A introdução de novos tributos depende de emenda constitucional. Mas, para que a arrecadação desse imposto vigore imediatamente, é preciso quebrar também o princípio da anualidade, para muitos uma "cláusula pétrea", impossível portanto de ser alterada. No caso da CPMF, também há necessidade de alteração constitucional, mas para as contribuições sociais a anterioridade se restringe a 90 dias.

Nos tennos do acordo com o FMI e da Lei orçamentária para 1999, a situação é mais dramática. O acordo exige que as receitas superem as despesas não frnanceiras em R$ 16,3 bilhões. Assim. cada real não arrecadado impõe corte de mesmo tamanho.

A inclusão de receitas de difícil realização mascara o orçamento. Faz previsão de despesas que serão obrigatoriamente canceladas, escondendo as conseqüências do ajuste. Mantidas as condições atuais a não aprovação do chamado Imposto Verde levará o govemo a promover cortes de R$ 2, 1 bilhões nas despesas.

O cancelamento das despesas vinculadas ao Imposto Verde afetará também a regionalização dos investimentos., já que sua programação não é linearmente distribuída. Enquanto para Minas Gerais esse corte totaliza 20% dos investimentos previstos, para São Paulo, significa 12,6% e, para o Rio de janeiro, apenas 4,7%.

Superávit financeiro: FMI exige sacrifícios adicionais para a sociedade

Pela primeira vez, a lei orçamentária vai trazer em seu texto a obrigatoriedade de obtenção de superávit primário, de R$16,3 bilhões. Aliás, mais grave ainda, não existe metodologia definida em lei para esse cálculo, o governo terá total liberdade para alcançar esse valor.

Para muitos parlamentares, a determinação de superávit na Lei orçamentária é uma flagrante inconstitucionalidade. Por determinação da Carta Magna, a Lei orçamentária não poder conter dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, as únicas exceções previstas são autorização para abertura de crédito suplementar e contratação de operação de crédito por antecipação da receita. Naturalmente, a determinação de superávit não se enquadra nas previsões da Constituição.
A redação do artigo foi tão minuciosa que permite ao governo acordar com o FMI superávites ainda maiores, como foi feito no dia 4 de fevereiro, e ainda assim

Um vale-tudo para desviar recursos

O caso da Anatel é emblemático, porque apresenta as duas irregularidades: a sub-avaliação de receita e o desvio de recursos para pagamento da dívida.

Os recursos próprios da Anatel advêm das taxas de fiscalização, que podem ser facilmente calculadas, pois cada empresa ou usuário de telecomunicações paga de acordo com sua capacidade instalada com permissão governamental de uso.A Anatel avalia em R$ 420 milhões a receita das taxas de fiscalização para 1999. No entanto a lei orçamentária prevê apenas R$ 350 milhões e, desses, R$ 180 milhões serão utilizados pela agência e R$ 170 milhões desviados para amortização da dívida. Ora esse desvio subtrai capacidade de fiscalização, facilitando a vida das empresas privadas do setor e, ainda permite que as empresas, administrativa e judicialmente, argumentem a impropriedade da cobrança, já que os recursos não são utilizados dentro de suas finalidades, deixando de ser “taxa de fiscalização” para ser “imposto”.

Para citar outro exemplo, basta ver o caso do Fundo de Defesa para Interesses Difusos (direitos sociais indivisíveis, como direito do consumidor, minorias, questões raciais, infância e juventude e etc). Esse fundo arrecada aproximadamente R$ 1,4 milhão a cada ano. Mas apenas R$ 60 mil estão previstos para as despesas desse fundo. Prejudicando, assim, todas as atividades-fim do fundo, 95% dos seus recursos estarão impossibilitados de ser aplicados, com clara intenção de promover superávit, que vai para o fundo de amortização da dívida. terá prévia autorização para produzir todos os cortes adicionais.

A situação é dramática. Parte das receitas previstas na lei orçamentária não vão se viabilizar. Mas FHC terá autorização legal para realizar os cortes necessários para alcançar o superávit l1Únimo. Diante de uma lei onde as receitas são mera previsão e as despesas não são obrigatórias, mas apenas indicativas, o superávit de R$ 16,3 bilhões é o único número do qual o governo não pode se afastar, muito menos para reduzi-lo. O tamanho do sacrifício necessário sequer pode ser mensurado.
Quando a lei orçamentária apresenta em seus quadros demonstrativos que as receitas superam as despesas em R$ 1 6,3bilhões, ela parte de algumas premissas. O problema é que algumas já estão superadas.

Vários itens de receita não serão cumpridos. O governo calculou que a
CPMF seria cobrada a partir de fevereiro, mas a realidade aponta que não será antes de junho. Perde-se, assim, a metade da previsão. A medida compensatória idealizada pelo governo, já em vigor (aumento do IOF e da CSLL e antecipação das receitas de concessões), não substitui integralmente, deixando uma diferença de R$ 1,4 bilhão. Outros R$ 2,1 bilhões definham juntos com o Imposto "Verde". Maior ainda será a frustração da conta petróleo. Por essa conta, a Petrobrás devolve ao Tesouro parcela de seus ganhos que advém da queda do preço internacional do petróleo, por exemplo.

O governo idealizou em R$ 5 bilhões o tamanho desse repasse. A desvalorização cambial e o aumento relativo do custo do petróleo alteraram profundamente essa relação. E a manutenção da integralidade do repasse exigiria que todos os derivados do petróleo subissem para compensar a queda do real frente ao dólar. Solução que ampliaria a espiral inflacionária. Assim, para manter os preços será preciso contabilizar mais esse rombo. Também haverá queda nas receitas provenientes das contribuições aplicadas aos servidores ativos e inativos; calcula-se que elas serão R$ 1,2 bilhão menor. Para piorar mais ainda as contas, também as receitas de concessões já estão deficitárias. O governo planeja arrecadar mais de RS 8 bilhões em concessões e permissões. Mas, logo em janeiro, uma quebra. Os leilões para as "empresasespelho" das telecomunicações resultaram em deságio de 85%, dos quase RS 900 milhões projetados para as concorrentes de longa distância e Telenorte-leste apenas arrecadaram pouco mais de R$ 150 milhões, arrecadando quase R$ 750 milhões a menos. Vê-se que uma significativa parcela das receitas não se efetivará.

Outro desajuste vem por parte da previsão de despesas. Quando o Congresso aprovou o aumento da COFINS. determinou que o aumento do tributo fosse compensado na CSLL. FHC quis diferente: para o governo esse aumento seria abatido no IRPJ. Caso fosse vitorioso, a arrecadação do IR seria menor, diminuindo as transferências para estados e municípios. Ou seja, FHC queria que as empresas compensassem o aumento no cofre alheio. Perdeu. A Secretaria do Tesouro calcula que despesas com as Transferências Constitucionais serão R$ 1,46 bilhão maiores do que está previsto na lei.

Percebe-se, portanto, que os R$ 16,3 bilhões tais como previstos são fictícios. Logo, FHC terá que promover profundos cortes para alcançá-los. lnimagináveis a dimensão e os efeitos de novos cortes num orçamento já tão depauperado.

Enfim, o orçamento real: a garantia do superávit exige novos e profundos ajustes

O superávit cumpre o papel de limitar o crescimento da dívida frente ao PIB, que o governo queria ver estabilizada em 46% da produção brasileira. Por isso, é preciso que uma crescente parcela dos recursos fiscais sejam utilizados para pagamentos cada vez maiores de encargos, juros e amortizações da dívida.

Depois da desvalorização, o FMI tem exigido do país uma política de juros astronômicos, o que resultará necessariamente num descontrole da dívida pública.
A obtenção do superávit tomou-se a questão fundamental da execução orçamentária. Todos os recursos que foram ampliados na saúde, educação etc. ficam submetidos a esse objetivo. Lamentavelmente, o Congresso cedeu ao Executivo todos os poderes para fazer os cortes nas programações de despesas até atingir o seu objetivo.
Mesmo antes da maxidesvalorização do real, atingir a meta de R$ 16,3 bilhões já exigiria cortar despesas no tamanho de cada receita que se frusta. O que já era uma missão bastante difícil, tomou-se impraticável.

A realidade que se criou após a desvalorização cambial alterou todas as contas. O orçamento para 1999 prevê R$ 17,7 bilhões em despesas com encargos e amortização da dívida externa da União. Se a desvalorização ficar em 50%, pode-se calcular um aumento correspondente nessas despesas. A parcela da dívida interna que está atrelada ao dólar está calculada em R$ 67 bilhões para valores de dezembro de 1998. A mesma desvalorização demandará uma conta extra de R$ 34 bilhões.
Manter a política de altos juros por alguns meses é instrumento do governo para conter a inflação e ainda pagar caro pelos dólares dos especuladores. Os encargos do restante da dívida interna, calculada em R$ 270 bilhões, sofrem a majoração proporcional à alta dos juros, hoje em 39%. A conta sairá muito mais cara.

A solução dada pelo acordo preliminar, acertado dia 4 de fevereiro, estabelece um novo arrocho fiscal. E, nem assim, será suficiente para o acerto das contas. FHC e o FMI falam agora em aumentar o superávit do setor público de 2,3% do PIB para 3,5% do PIB. A parcela do ajuste que cabe ao orçamento da União sobe de R$ 16,3 bilhões para quase R$ 25 bilhões. Apesar de ser um enorme sacrifício e implicar em destruição completa das ações sociais do governo e em redução do limite dos investimentos públicos, pouco significará frente ao aumento das despesas com juros e encargos da dívida. Medidas adicionais relativas à política monetária serão necessárias. Esperamse juros cada vez maiores e aumento drástico da recessão.

Alguns comentaristas econômicos têm afirmado que a inflação prevista para este ano contribuirá para o governo alcançar as suas metas, aumentando as receitas, indexadas, e diminuindo o valorreal das despesas. Na prática é dar um calote nos salários e fornecedores, para salvar os compromissos com o mercado financeiro. É preciso ainda acrescentar as previsões sombrias para o desempenho da economia brasileira. A diminuição do PIB afetará negati vamente todas as receitas públicas e privadas.

Mais desemprego, menores salários, diminutas oportunidades se somarão aos brutais cortes nas despesas sociais desse governo. Tudo para que o governo possa oferecer garantias aos investidores.
Os governistas e seus aliados atacam todas as propostas que se identificam com o rompimento dos contratos da dívida. Moratórias, nem pensar. Nenhum desses acordos pode ser quebrado ou arranhado. É bem verdade que o presidente FHC, o candidato que iria vencer o desemprego, precisou escolher entre quebrar os acordos com os seus fmanciadores ou simplesmente esquecer as suas promessas de campanha, levando o país à maior recessão e ao maior desemprego da história recente. Enganam-se todos os que duvidavam da opção desse governo.

Nem todas as implicações do novo acordo com o FMI sobre o orçamento puderam ser analisadas, mas tomam-se suficientes para demonstrar a importância do tema. O Estado brasileiro foi integralmente colocado à disposição do capital financeiro e o orçamento é um dos instrumentos dessa ação.

* Sergio Miranda é Deputado Federal pelo PCdoB/MG. Colaboraram Flávio Tonelli e Luciana Barreto(RP 2758/13/35/DF). Para obter maiores detalhes sobre os dados constantes nesse artigo ou sobre Orçamento da União, entrar em contato com o Gabinete: [email protected] ou [email protected]

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15