Gênero e revolução cultural: as revoluções na revolução
No plano da estética, via literatura e música, "a revolução na Revolução", como Fidel se referia à questão da mulher em Cuba nos anos 60, o que mais inovou quanto à revolução de costumes foi a contra cultura crítica dos estereótipos. Músicos cubanos redirecionaram, desde os anos 80, sua temática para a reflexão sobre os costumes, ganhando acento erótico, irreverente e eclético.
Em uma de suas músicas o conhecido conjunto musical cubano Van-Van faz uma gozação sobre a titimania – relação de homens de mais de 60 anos com mulheres de menos de 25 – prática comum e crescente não só em Cuba… Mas perde-se o acento moralista e didático, para a tônica de por a nú as idiossincrasias culturais, os costumes.
No verão de 1989, Pablo Milanez, famoso músico e compositor cubano escandalizou o país com uma composição intitulada "EI breve espacio en que no estás" onde cantou uma amada não ortodoxa tanto nas relações amorosas quanto na vida política, pois – segundo "Pablito" – ela "no comparte una reunión mas le fascina Ia canción… yama como se tuviera sólo un dia para amar".
A mesma música ele desabafa que "no le pregunto se si quieda porque temo como respuesta un jamás, e arrisca propota inovadora para os costumes latino-americanos:"la prefiero compartida que tener mi vida esvaciada".
Proposta bem diferente da que é comum nas baladas. on e salsas que pela América Latina mostram as mulheres não Amélias como "perfídia", "Salomé", "mala mujer", "sonrisa fatal", "moneda con cara de mujer" e outras jóias do machismo nuestro.
As músicas de Silvio Rodriguez, Pablo Milanes, e dos Van-Van, entre outros, são formadoras de opinião, tomam-se assunto de esquina em Cuba. São peças de crítica cultural, atentas a temas emergentes. A música "Paladar", de Silvio Rodríguez (1995) ilustra a atenção da produção estético-musical à vida nas ruas. Os 'paladares', denominação popular, tirada de uma novela brasileira, para restaurantes de pequenos proprietários, acessível somente aos que pagam em dólar, é figura desconfortante para o modelo socialista, tal indicador de sociedade de classes, de economia de mercado. Na canção, Silvio Rodriguez se move entre o estranhamento à mercantilização de serviços, gostos, relações sociais, prazeres e a atração, o prazer do café:
"Llego ai club de los cincuenta y una mano trae ia cuenta
… Me pregunto que negócio es este en que hasta ei deseo es un consumo.
Qué me haré cuando facture ei soi? Pero vueivo siempre ei rosto ai este y me ordeno un nuevo desayuno, apesar del costo del amor. "
Já nos anos 70 a temática das relações de gênero, abordada nas artes com os objetivos bem intencionados de combater as desigualdades, pautava-se por dar lições certinhas, mais chatinhas, que não enfrentavam a complexidade das paixões, dos gostos, da carga emocional e cultural que modela a sexualidade e o amor.
Ilustra tal tônica uma canção dos anos 70, que menos que ser criticada deve ser compreendida no espírito da época de inculcar valores patrióticos e pela igualdade entre homens e mulheres, em uma população que vinha de épocas de reificação da mulher, pelas figuras ou da mãe ou da prostituta. Cuba, nas ditaduras de Machado e principalmente de Batista, era conhecida como o prostíbulo, o cassino dos norte americanos. A família cubana branca de classe média e alta estava influenciada por costumes espanhóis: a mulher raramente trabalhava de forma remunerada; o marido mantinha tanto a família legal, quanto uma ou mais queridas.
Em conformidade com o código de moral corrente, ao homem se admitia "qualquer coisa"; o domínio sobre sua esposa e filhos e a conquista de outras mulheres, eram sinais de "masculinidade". (Randall, 1972: 31)
Segundo Randall (1972: 32) e Martínez Alier (1978) em seu célebre livro Colar, Clase y Matrimonio en Cuba en el siglo XIX, a figura da mulher, como mãe era exaltada também na cultura africana, trazida pelos escravos. Muitos homens faziam parte de associações exclusivas para homens, e as mulheres tinham "orgulho pelo seu homem". Em 1961, muitas mães e pais resistiam em permitir que seus filhos e, principalmente filhas, se engajassem na Campanha de Alfabetização e viajassem para lugares distantes. A propaganda contra-revolucionária explorou bem os valores da família superprotetora, e não poucas mães acreditavam que seus filhos seriam levados para a Rússia, onde seriam comidos. Para salvá-los desse destino, os embarcaram para os Estados Unidos. É desse tempo a Operação Peter Pan, articulada por padres católicos que tiravam da Ilha, com consentimento dos pais, crianças de classe média para irem viver nos Estados Unidos, salvar-se da "dissolução da família" e do "comunismo".
A meta básica da Federação de Mulheres de Cuba, nos primeiros anos da Revolução, era engajar a mulher na produção e no sistema de ensino. Um dos principais projetos foi a Escola de Reeducação de Empregadas Domésticas, que tinha como meta inserir as mulheres nas atividades no Estado muitas substituíram os bancários que, junto com os médicos, constituíam um dos mais altos contingentes ocupacionais entre os que abandonaram Cuba no início da Revolução de 1959. No campo de projetos relacionados especificamente à mulher, destacam-se também a Escuela de Campesinas e a Escuela de Ias Clodomiras – para moças com "problemas na família" e outra para reinserção social das prostitutas em outros campos de trabalho. Em 1966 (discurso de 10 de dezembro), declarava Fidel Castro:
"E se nos perguntassem o que de mais revolucionário está fazendo a Revolução, responderíamos que é precisamente isto, ou seja, a revolução que ocorrem entre as mulheres cubanas." (In Randall, 1978: 34)
Faz parte deste ethos social – pela ruptura com o destino cultural que encara como fim exclusivo da mulher ter um lar, um marido e filhos; por sua inserção na construção da sociedade revolucionaria – uma canção dos anos 70 intitulada "Para Una Imaginária Maria del Carmen", de Noel Nicola. Essa canção também indica o que alguns bem intencionados revolucionários idealizavam como "nova mulher":
"Maria del Carmen, tu entrega és total porque a ti Ias mistérios le sacan de juicio.
Maria del Carmen puede conversar sobre Ia economia, y sus ajas son anchos.
Maria del Carmen me mira el anillo en Ia mano derecha y sonrie despacio.
Maria del Carmen no piensa en Ias trapos, ni en lazos, ni en cintas, ni en viejas munecas.
Maria del Carmen olvida a Ias navios, Ia pátria es quien toca de noche en su puerta
Maria del Carmen conoce Ia iglesia, sabe donde está, pero no Ia visita.
Maria del Carmen se asombra com todo, pero si Ia miran, no baja Ia vista.
Maria del Carmen, aunque no te he
visto, podria pintarte en todo tus detalles,
Maria del Carmen será inevitable que un dia tropiece contigo en Ia calle.
Maria del Carmen, si llego a encontra te, tendré de seguro que amarte, que amarte … " (Noel Nicola, "Para una imaginária Maria del Carmen")
A emblemática da guerrilheira heróica, que deixa de lado vaidade, roupas e namorados, que tem na pátria, no público, sua realização, seria um estereótipo que substituiria o tradicional, o da esposinha que, no privado, viveria para o seu homem e para seus filhos. Mas na prática a nova mulher cubana – um constante "vir-a-ser", friso – viria se afastando dos dois estereótipos, em uma identidade múltipla combinando a ocupação de espaços no âmbito público e, o mais problemático e lento, questionando as relações de casal, no doméstico.
Em 1970 e 1971, a pesquisadora norte-americana Margaret Randall entrevistou mais de 100 cubanas. Uma de suas entrevistadas, de 43 anos e com 8 anos de escolaridade, assim respondeu à pergunta:
"Que significou para você a Revolução?":
"Divorciei-me e agora estou casada por amor! Pude casar-me por amor, menina! Não preciso de nenhum homem que me mantenha, pois mantenho-me eu mesma, e mantenho a meus filhos!"
Em 1972, Randall havia perguntado para outra mulher, Tereza Sanchez, da direção nacional dos Conselhos de Defesa da Revolução: "O que você selecionaria como o mais significativo, dos feitos da Revolução?". A resposta de Tereza Sanchez representa a de muitas outras mulheres que vivenciaram a situação anterior à Revolução:
"Olha, considere o meu caso, que é igual ao de milhares e milhares de mulheres: a mulher que se libera econômica e politicamente, porque, 'vaya! '. Eu me casei, como se casavam todas as mulheres aqui. Primeiro, gostava do noivo; mas aos poucos, a vontade de se liberar da família, da casa, da questão econômica … Sim, liberação da família que não te deixava ir nem a esquina. Pois essa era a mentalidade que existia neste país, de que por nada a mulher podia sair só e estar na rua às 10 horas da noite".
A mulher se lançou com amor na Revolução porque sofreu na carne o que era a outra sociedade… Eu nunca vou me esquecer a vida de Aleida Mulet, minha amiga, que era professora e tinha que vender colchas de cama pelas ruas para poder sobreviver. .. Ela nunca pode trabalhar como professora, apesar de ter diploma, porque era negra…. A mulher não valia nada. Era escrava de um homem, no melhor dos casos, quando tinha um marido. Ele era o pai de seus filhos, e ela sabia que ele tinha umas três mulheres, além dela, mas não podia deixá-lo, porque senão morria de fome. Tinha que seguir com ele, agüentar pancada, maltratos, que faze r?" (Randall, 1978: 260).
Para muitas mulheres entrevistadas por Randall, o trabalho remunerado, a escola, a milícia, não foram somente dimensões de uma causa, a defesa e a construção da sociedade socialista, mas também um resgate da auto estima, de estar em uma atividade socialmente reconhecida como necessária. Para muitas, como disse uma das entrevistadas. a Revolução possibilitou liberar subjetividade, "casar por amor".
Mas volto à canção "Para uma Imaginária Maria del Carmen", que ainda bem é imaginária. Já Sara Gonzáles, artista cubana, no início dos anos 80, canta uma outra mulher, ou mulheres, na canção, "Que Dice Usted?", tão patrióticas e públicas como Maria del Carmen, mas "lindas" e nem tão novas na história cubana, ou seja, não imaginadas, mas reais. A música de Sara González se enquadra numa comum idiossincrasia cubana, a ênfase em conceber a Revolução cubana como um processo que se iniciou há 100 anos, com a luta dos mambises (revolucionários cubanos camponeses) contra a dominação espanhola, e que continuaria hoje contra as investidas norte-americanas, em um vir-a-ser sem modelos fixos, que gera uma mescla de cubanismoe-marxismo. O singular da música de Sara Gonzalez é frisar que as mulheres há muito fazem parte dessa história e não necessariamente por novos estereótipos. Na música "Que Dice Usted" as revolucionárias que estiveram em Sierra Maestra podiam ser, friso, "lindas cubanas":
"Que dice Usted? Que una mujer es Ia flor de aquel eden, del duIce hogar;
y para hacer el amor? Si Ia historia nos grita otra verdad.
Qué dice Usted? que una mujer luce bien, en el portal o en el sillón, tejiendo su aburrimiento? Si Ia história nos grita otra verdad.
Ves, hace cien anos comenzó, cuando alzó el machete una mambisa. Ves, y así siguió Ia tradición, siempre que luchar se necesita, por eso, seis, seis lindas cubanas.
Qué dice Usted? que una mujer no és capaz de construir, de analizar, y de luchar por Ia vida?
Cuando Ia história nos grita otra
verdad."
* Mary Garcia Castro é professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisadora da UFBN Centro de Recursos Humanos e pesquisadora associada da Universidade de Campinas/Centro de Estudos de Migrações Internacionais; PhD em Sociologia e Bolsista do CNPq/Governo do Brasil para estudos comparativos sobre gênero, raça e classe nas Américas. Este texto é um excerto de sua palestra no ato do Comitê Feminino Solidariedade às Mulheres Cubanas, Salvador/BA, março de 1998, como parte das atividades para a organização de caravana para participar do I Encontro Internacional pela Solidariedade entre as Mulheres, pela Igualdade, pelo Desenvolvimento e pela Paz, de Havana, entre 13 a 16 de abril de 1998.
Notas
MARTINEZ ALIER, Verena. Marriage, Class and Colour in Nineteenth Century Cuba: A Study of Racial Attitudes and Sexual Values in a Slave Society. Oxford: Cambridge University Press, 1974.
RANDALL, Margaret. Mujeres en Ia Revolución. México: Ed. Siglo XX1, 1978.
Poemas e canções
Pablo Milanés: CD "Querido Plablo Canciones"
Silvio Rodriguez: CD "Domínguez" CDs "Nueva Trova – Seleccion de Exitos" (Los Van Van; Sara González; Noel Nicola e outros).
EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 50, 51, 52, 53