Pertenço a uma geração para a qual a França significou muito. Foi pela leitura dos seus escritores, pelo estudo da sua história e das lutas do seu povo durante a Grande Revolução de 1789 e mais tarde da Comuna de Paris que tomou forma em mim, ainda adolescente, a primeira representação do mundo e da aventura humana.A iniciação francesa – dei – me conta disso muitos anos depois – empurrou-me para a opção revolucionária e para o descobrimento do comunismo. O caminhar pela vida não apagou a minha componente francesa. Voltar a algumas cidades da França é sempre um reencontro com uma parcela do que fui, o retomar do diálogo interrompido com um universo distante e íntimo.

Um sistema de mídia concebido para neutralizar, confundir e perverter a consciência social insiste em difundir a idéia de que a França tem presentemente um governo de esquerda. Essa afirmação, monotonamente repetida, deforma grosseiramente a realidade. Tive recentemente a oportunidade de acompanhar em Marselha e em Paris o movimento dos estudantes do ensino secundário. Somente na capital desfilaram 500.000 pessoas. Independentemente das reivindicações apresentadas, o protesto desse setor juvenil expressou o descontentamento cada vez mais profundo da sociedade francesa. Foi muito bem recebido. As intervenções do ministro Allegre para minimizar o significado do movimento tomaram ainda mais transparente o mal-estar que se alastra num velho e civilizado povo inconformado com o projeto de vida que lhe é imposto.

A política do governo Jospin distanciou-se brutalmente na sua prática dos compromissos assumidos perante o eleitorado.

Na frente do trabalho as coisas vão de mal a pior. A França vive no ritmo dos tratados de Maastricht e de Amsterdam e o governo PS-PCF (Partido Socialista e Partido Comunista Francês) não consegue esconder a evidência: ao aplicar muitas das decisões tomadas no âmbito da União Européia (e do G-7) entra em contradição com princípios que diz defender e estiveram na base da vitória eleitoral do Partido Socialista. Isso porque a política que desenvolve e pretende justificar é, no fundamental, uma política de direita.

A transferência de empresas controladas pelas transnacionais prossegue com graves conseqüências sociais. Os despedimentos maciços são uma realidade. As feridas abertas pelo encerramento da fábrica belga da Renault não cicatrizaram. Entretanto, o governo Jospin, que então criticara a irracionalidade e a crueldade do neoliberalismo recorre a uma argumentação inaceitável e hipócrita para explicar o que acontece no Havre onde milhares de trabalhadores dos estaleiros vão para o desemprego.

No início da primavera de 1997, o abandono dos processos de privatização da France Telecom, da Thomson e da Air France, bem como de outros gigantes, era um dos poucos compromissos concretos da Declaração Comum PSPCF, de 19 de abril, recebida com esperança pelos trabalhadores. A promessa, porém, foi logo esquecida. A ThomsonCSF e a Thomson Multimedia foram privatizadas; a Aerospatiale também.

Le Figaro, porta-voz da grande burguesia sublinhou – em 02/8/98 que em dois setores sensíveis o governo reduziu consideravelmente, quase anulou, o papel do Estado que, em ambos, exercia uma supremacia quase absoluta. Na mesma edição um analista econômico escrevia:
"Quaisquer que sejam as reticências do discurso e a terminologia empregada – não se fala agora de privatizações mas de adaptações – os fatos estão aí; em pouco mais de um ano a esquerda restringiu o campo de intervenção econômica do Estado e num ritmo superior ao que fizera o governo de direita que o precedera." "Jospin não tem complexos" afirmava-se no título de um artigo elogioso das privatizações e das aberturas ao capital privado promovidas pelo atual governo, sobretudo nas áreas das comunicações, dos bancos e dos seguros.

Le Monde reconhecia dias depois (08/8/98) que Lionel Jospin tinha, afinal, privatizado mais do que Alain Juppé.

A polêmica em tomo do orçamento de 1999 colocou o governo numa posição muito incômoda. Sobre . Jospin e o seu Gabinete choveram felicitações do grande patronato. O Primeiro Ministro assumira em 97 com compromisso de alterar o imposto que favorecia os privilegiados, corrigindo uma iniciativa ostensivamente reacionária e classista de Juppé. Mas nada fez nesse sentido.
O orçamento militar foi mantido no nível de 200 bilhões de francos. Nada menos de 100 bilhões serão destinados num período de cinco anos às armas nucleares. Obviamente a imprensa de direita rejubilou com essa decisão.

Enquanto as verbas sociais permaneciam bloqueadas não faltou dinheiro para armamentos atômicos e para uma reforma do Exército – o quarto do mundo – que favorece a criação de unidades especiais preparadas para intervir na Bósnia, na Albânia, no Iraque, em países africanos ou, eventualmente, no Leste europeu.

Entretanto, o governo suprime empregos nos hospitais, reduz o número de medicamentos comparticipados pelo Estado, elimina milhares de postos de trabalho no setor da educação.
O Partido Socialista anunciara durante a campanha a criação de 700.000 novos empregos. No final de agosto informou (através de Martine Aubry) que o número de contratações de novos trabalhadores atingira 85.000 (79% temporários).

No tocante aos salários, o fosso entre o prometido e o obtido é ainda mais abissal. Segundo L'Humanité de 03/3//97, o cimento de uma Política de Esquerda Comum deveria incluir a elevação do salário mínimo (SMIC) para 8.500 francos (cerca de 1.500 dólares). As coisas também aí correram mal. O aumento foi irrisório. O salário mínimo subiu em julho do ano passado apenas 4%, ou seja uma percentagem igual à concedida por Juppé no ano anterior. Considerando o aumento dos preços, o acréscimo real não ultrapassou 87 francos (17 dólares por mês).

O projeto do orçamento para 1999 não incluiu qualquer aumento para os trabalhadores da Função Pública.

A Lei-Quadro sobre a redução do horário de trabalho para 35 horas semanais sem redução de salário – a famosa Lei Aubry apresentada como revolucionária pela propaganda oficial – gerou grandes esperanças pelo mundo afora. Não faltou quem identificasse nela o início de uma virada na política francesa. Cabe dizer que a montanha pariu um rato.

Significativamente a poderosa União das Industrias Metalúrgicas Mineiras, baluarte do Conselho Nacional do Patronato Francês, manifestou em julho a sua satisfação pelos últimos acordos coletivos que abrangem dois milhões de metalúrgicos.

Obtiveram os trabalhadores vantagens importantes? Não. Chega-se à conclusão decepcionante e surpreendente de que nas indústrias metalúrgicas se vai trabalhar mais tempo, apesar da redução (hipotética) dos horários. O novo acordo autoriza, por caminhos tortuosos, um trabalho semanal de 39 a 40 horas. Para os quadros, os engenheiros e a maior parte dos técnicos foi definido um regime especial isento de quaisquer limitações. No tocante a horas extraordinárias o contingente autorizado passa de 94 horas anuais para 180 (205 a partir do ano 2000). Não se encontra no acordo, registre-se, qualquer referência à criação de novos empregos.

As ambigüidades na área da política exterior são menores do que nas frentes do Trabalho e da Economia. O duplo discurso é aí desnecessário. O governo de Lionel Jospin tem sido de uma grande docilidade no diálogo com os Estados Unidos; submete-se às imposições de Washington e não cria dificuldades à política expansionista e intervencionista da OTAN.

Não é, entretanto, sem sentimentos de amargura e alguma inquietação que os franceses das camadas médias acompanham o desenvolvimento de uma situação que há dois anos ~ra imprevisível.
A França foi nos últimos quarenta anos o parceiro mais íntimo da Alemanha. A ponte da solidariedade Paris-Bonn exibia uma solidez granítica. Todos os governos franceses foram mimados pelos políticos alemães desde KonradAdenauer. Essa relação aparece hoje fragilizada. Os recentes acordos financeiros anglo-alemães foram recebidos com surpresa e desagrado em Paris. Os franceses apercebem-se de que muitas decisões importantes começam a ser tomadas na Europa sem intervenção sua: ficam de fora. Não há aliados preferenciais no jogo sujo do mercado. novas alianças despontam na Europa dos 15 (União Européia).

No plano militar a França também se sente marginalizada. A Alemanha revê posições e com o social-democrata Schroeder aproxima-se ainda mais dos Estados Unidos. Dialoga com o Pentágono sem consultar Paris. Não é de estranhar o prestígio crescente do novo Chanceler nos meios empresariais e entre os escalões do Corpo de Oficiais do Exército.

A imagem do Partido comunista Francês entre os setores mais combativos da classe operária é, naturalmente, muito afetada pela política do governo Jospin. O Partido está representado no governo por dois ministros e tem uma Secretaria de Estado. O esforço da sua direção para se demarcar dos aspectos mais negativos da política desenvolvida por Jospin obriga-a a uma ginástica cujos resultados são decepcionantes. O discurso oficial condena o neoliberalismo. distancia-se do projeto federalizante do Tratado de Amsterdam, reconhece as ameaças à soberania e à cultura.

Mas o PCF está no governo e é co-responsabilizado pela sua política de direita. Em algumas Federações do Partido cresce o mal-estar. Na festa do L'Humanité o descontentamento suscitado pela estratégia de Robert Hue manifestou-se tão ostensivamente que a imprensa conservadora – Le Figaro em primeiro lugar – chamou a atenção para o fato.

A atitude desses comunistas contestadores reflete um fenômeno que transcende largamente as fronteiras do PCF. Está a acontecer o inevitável. O povo francês deixa transparecer no quotidiano seu desencanto. O amanhã próximo aparece-lhe carregado de incógnitas. Poucos fazem previsões sobre o desfecho, mas aumenta a cada dia o número dos que rejeitam o projeto de sociedade que o governo de Lionel Jospin (aliás, o menos conservador dos altos dirigentes socialistas) ajuda a criar através de sua cumplicidade ativa com a estratégia da globalização neoliberal.

Sombras e luz

No final de outubro, o contato, em Marselha e Paris, com familiares e amigos e o espetáculo da vida permitiram-me uma vez mais repensar o tempo da França e sentir o que ali é permanente e o efêmero que se transforma.

Reencontrei um povo que olha para o futuro com temor.
Na aparência superficial das coisas nada mudou. O visitante de passagem tem alguma dificuldade em se aperceber do mal-estar que invade a França. A serena beleza das suas cidades, a variedade e a qualidade da oferta cultural, a arte de usar os tempos livres como espaço de felicidade e ponte para o enriquecimento da personalidade encantam o forasteiro e levam-no a concluir que, afinal, a França se enraiza numa estabilidade tranqüila, raríssima no mundo contemporâneo. É falsa essa imagem de uma França estática num planeta fustigado pela tempestade global do neoliberalismo. Tudo ali se encontra em movimento. O observador é enganado pelo espetáculo da vida, marcado por contradições nem sempre perceptíveis.

A França conseguiu como talvez nenhum outro dos países informatizados inserir modernidade em estruturas urbanas modeladas ao longo dos séculos por prodigiosas sínteses civilizacionais. A inovação não destruiu ali as heranças culturais; aparecem fundidas. As conquistas do progresso não agridem a mensagem de beleza irradiada por cidades que são museus vivos criados por dezenas de gerações com mundividências diferenciadas. A técnica foi colocada ao serviço da vocação de eternidade da cidade antiga. A continuidade possível no cenário envolvente, a permanência das estruturas físicas que diferenciam as civilizações, não significa, porém, ausência de mudança nas populações que ocupam (e defendem) as cidades geradas e modeladas pelos antepassados.

E são precisamente algumas dessas mudanças que estão a inquietar, direi mesmo angustiar, milhões de franceses. Os efeitos negativos da globalização neoliberal e do pensamento único são percebidos por setores cada vez mais amplos da população em múltiplos quadrantes sociais. O francês habituou-se ao longo da fascinante história do seu país a compatibilizar o amor do universal com a defesa do particular, ou seja, do que é especificamente seu. Nada tem a opor a uma globalização humanista, à perseguição de uma utopia que responda a aspirações antiqüíssima da condição humana; mas rejeita com repulsa as mudanças em cascata, brutais e desumanizantes, que resultam da globalização capitalista, de perfil classista e imperial. Talvez nenhum outro povo tenha adquirido como o francês uma consciência tão viva e dolorosa dos efeitos de um projeto que, fazendo retroceder a humanidade, hierarquiza os países e os homens de acordo com critérios e interesses próprios da irracionalidade de um mercado sacralizado.

Os franceses – com exceção de uma ínfima minoria de beneficiários do sistema – contestam a divinização do capital que coloca o homem a serviço do jogo do dinheiro, robotizando-o. Não é ainda uma contestação bem iluminada. Não me parece fácil definir-lhe os contornos, porque no conjunto da sociedade, quase individualista, do que propriamente da percepção da universalidade da ameaça. Em nenhum outro país, entretanto, as lutas pela preservação de conquistas fundamentais do povo, ameaçadas pela estratégia da globalização – através dos mecanismos de Maastricht, do AMI (veja pág. 34) e outros – assumiram a intensidade e a dimensão que apresentam atualmente na França.

A dispersão dessas lutas, a imprevisibilidade do seu desenvolvimento e desfecho, a sua frágil organicidade e o seu caráter por vezes quase espontâneo levam muitos analistas, mesmo os bem intensionados, a subestimar-Ihes o significado e o alcance. Para a incompreensão das tensões que atingem hoje a sociedade francesa contribui também o resultado de sondagens que atribuem uma popularidade a rondar os 56% a Chirac e os 54% a Lionel Jospin. O simples fato de o Presidente da República e o Primeiro Ministro serem personalidades representativas de quadrantes do eleitorado muito diferentes vale por um convite à reflexão. Ambos – e isso os aproxima – utilizam discursos paternalistas, ambos fogem ao debate sério dos grandes problemas.

É um fato que a grande maioria dos franceses se distancia de posições radicais. Seria uma ingenuidade esperar das vítimas do sistema uma combatividade ligada ao desejo (inexistente) de rupturas revolucionárias. Não é esse o estado de espírito na França. Mas a recusa do projeto de futuro que o atual governo, tal como o anterior, insiste em impor (submetendo-se à engrenagem neoliberal) pode vir a gerar na sociedade francesa movimentos sísmicos de desenvolvimentos explosivos. Não é somente a política sócio-econômica traçada em Bruxelas que gera insegurança e repúdio. A chamada Mc World Cultura – a anticultura exportada pelos EUA com ambição de universalidade – faz sentir muito negativamente os seus efeitos na sociedade francesa, sobretudo entre a juventude. Encontra, porém, uma oposição muito forte na intelectualidade. Esta não aceita a postura arrogante e beócia da administração Clinton, segundo a qual a cultura deve ser tratada como uma mercadoria igual a qualquer outra, na expressão do falecido secretário do Conselho Externo, Mike Kantor.

Falando em Marselha com amigos, professores de filosofia, impressionou-me o que disseram a respeito do desencanto da sociedade francesa. Nela pouco resta do antigo sonho europeu. As políticas da globalização neoliberal, trituradoras, desfizeram em brancas nuvens as esperanças de uma Europa dos povos, caminhando solidária, mas sem pressa, para uma democracia avançada.
Está a ocorrer precisamente o contrário. As grandes decisões que mudam a vida são tomadas em nível supra-nacional no âmbito de engrenagens comandadas pelo grande capital transnacional. Esse poder difuso escapa totalmente ao controle da soberania popular.

No final do milênio a democracia é na França, como em toda a União Européia, ficcional. Os povos dos 15, agrupados na União, são na prática, excluídos de uma participação minimamente significativa nas tarefas da construção de presente e da participação do futuro.

Comentando a fase de indefinições e insegurança que a França e a Europa Ocidental vivem, o professor Etienne Balibar, num ensaio largamente debatido, concluiu que a única certeza é a da imprevisibilidade do acontecer nacional. Admite, contudo, que a fúria e a irracionalidade do neoliberalismo possam gerar situações de caos social e econômico, não sendo de se excluir que sobre as ruínas do Estado tradicional venham a surgir estados autoritários de tendência imperial.
Os fatos confirmam no dia-a-dia que a utopia neoliberal no seu esforço para inflectir o movimento da história emerge como antítese, como negação da utopia humanista. O que vemos? Nas próprias sociedades informatizadas (1) a pobreza alastra como um câncer.

Conforme nos recorda Pierre Bourdieu, do Colégio da França,
"o enorme aumento dos desníveis das rendas, o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural, cinema, edições, etc, pela imposição abrupta dos valores comerciais, mas também e sobretudo a destruição de todas as instâncias coletivas capazes de travar os efeitos da máquina infernal, e, em primeiro lugar, o Estado, depositário de todos os valores universais associados à idéia da coisa pública, e a imposição por todo lado, nas altas esferas da economia e do Estado, ou no âmbito das empresas, dessa espécie de darwinismo moral que, com o culto do vencedor, formado em matemáticas superiores, instaura como norma de todas as práticas a luta de todos contra todos e o cinismo." (2)

É, portanto, legítimo esperar que o enorme sofrimento acumulado pelo funcionamento da engrenagem político-econômica do neoliberalismo seja fonte de uma resposta que detenha a corrida para o abismo.
O neoliberalismo, que é, afinal, o capitalismo selvagem do fim do milênio, está condenado. Não terá longa vida. Começa a amedrontar os seus próprios teólogos e beneficiários e apresenta os primeiros sintomas de desintegração. Mas não temos idéia de como e quando acabará. A crise na Ásia Oriental, envolvendo já o Japão, pode vir a ser espoleta de outra, mais ampla e grave, com epicentro no Brasil, a qual arrastaria toda a América Latina, com efeitos devastadores nos EUA e na Europa.

Encontramo-nos perante grandes desafios e interrogações sem resposta. Creio que, mais uma vez, a França se apresenta como laboratório da Europa.
Não sabemos qual será o perfil do mundo nas próximas décadas, mas sabemos para onde não queremos ir. Estamos ainda longe de uma alternativa capaz de mobilizar todos quantos – e são a esmagadora maioria – rejeitam a globalização neoliberal.

Devemos arregaçar as mangas e estar preparados para um combate em que está em causa a própria continuidade da aventura humana.

* Miguel Urbano Rodrigues é jornalista.

Notas:
( 1 ) A designação de países informatizados parece-me preferível à de países industrializados, numa época em que a participação da produção industrial no PIB, em queda, é muito inferior à dos serviços e quando o nível da informatização da sociedade aparece como indicador do seu nível de desenvolvimento e poder real.
(2) Pierre Bourdieu, "L'essence du neoliberalisme". In: Le Monde Diplomatique, Paris, março de 1998.

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32, 33